domingo, 12 de dezembro de 2010

III



Lembra-te dos banhos em que foste afogado









Acordei com esta cabeça de mármore nas mãos

que extenua os meus cotovelos e não sei onde

pousá-la.

Ela tombava no sonho enquanto eu saía do sonho

a nossa vida uniu-se e será muito difícil separar-se

de novo.





Vejo os olhos; nem abertos nem fechados

falo à boca que continuamente procura falar

seguro as maçãs do rosto que ultrapassam a pele.

Já não tenho força;





as minhas mãos perdem-se e aproximam-se de mim

mutiladas.



Yorgos Seferis. Poemas Escolhidos. Trad. de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis. Relógio D'Água, Lisboa, 1993., p.23
Querida, hoje saí de casa já muito ao fim da tarde


para respirar o ar fresco que vinha do oceano.

O sol fundia-se como um leque vermelho no teatro

e uma nuvem erguia a sua cauda enorme como um piano.

Há um quarto de século adoravas tâmaras e carne no braseiro,

tentavas o canto, fazias desenhos num bloco-notas,

divertias-te comigo, mas depois encontraste um engenheiro

e, a julgar pelas cartas, tornaste-te aflitivamente idiota.

Ultimamente têm-te visto em igrejas da capital e da província,

em missas de defuntos pelos nossos comuns amigos; agora

não param (as missas). E alegra-me que no mundo existam ainda

distâncias mais inconcebíveis que a que nos separa.

Não me interpretes mal; a tua voz, o teu corpo, o teu nome

já não mexem com nada cá dentro. Não que alguém os destruísse,

só que um homem para esquecer uma vida, precisa pelo menos

de viver outra ainda. E eu há muito que gastei tudo isso.

Tu tiveste sorte; onde estarias para sempre - salvo talvez

numa fotografia - de sorriso trocista, sem uma ruga, jovem, alegre?

Pois o tempo, ao dar de caras com a memória, reconhece a invalidez

dos seus direitos. Fumo no escuro e respiro as algas podres.

1989

Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.63

Exortação

IV



Nas montanhas, avança lentamente. Se tiveres de rastejar, rasteja.

Majestosas ao longe, insignificantes ao perto para quem as veja,

as montanhas são a forma que uma superfície posta ao alto tem

e o carreiro sinuoso que parece horizontal e se sustém

é de facto vertical. Deitado na montanha, estás

de pé; de pé, estás deitado. O que prova que hás

de cair para seres livre. Assim do medo se triunfa,

e da vertigem do abismo e da embriaguês dos cumes.



V



Se gritarem ''Ei, tu aí!'', não te dês por achado. Sê surdo e mudo.

Mesmo que saibas a língua, não abras a boca por nada deste mundo.

Faz por não te expores, de perfil ou de frente; de vez em

quando, simplesmente não laves a cara. E quando degolarem

um cão à tua frente com uma serra, não te arrepies. Caso fumes,

apaga o cigarro com uma bisga. Quanto a roupa, veste-te

de cinzento, a cor da terra - sobretudo a de baixo -,

para reduzir a tentação de assim te meterem no caixão.



VI



Quando no deserto fizeres uma paragem, forma uma seta

com pedras - assim, se acordas de repente, sabes logo por ela

que direcção tomar. De noite, os demónios no deserto

perseguem os viajantes. Quem escuta o seu concerto

pode facilmente perder-se: um passo ao lado e é o além.

Espíritos, fantasmas, demónios, no deserto estão em casa. Também

tu, com os pés enterrados na areia, saberás isto sem errar

quando de ti só a alma for o que restar.



Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.47
«(...) ''sem advogar a substituição do Estado por uma biblioteca'', Brodskii acredita na auto-educação, no esforço da apreensão individual do mundo e do conhecimento pela prática da escrita, não só porque talvez os livros tenham sido para ele a melhor coisa que conheceu ao longo duma vida carregada de experiências fora do comum, mas porque escrever e ler livros era a única forma de, ao despertar para a vida adulta com a invasão da Hungria e o esmagamento da revolta pelos tanques soviéticos, garantir para si um espaço onde a mentira, nenhuma mentira penetraria. E como preencheria esse espaço, só a ele caberia saber.

Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.13
«Para o poeta, escrever poemas e viver são uma e a mesma coisa. ''Se a arte ensina alguma coisa (ao artista, em primeiro lugar), é a singularidade (privatness) da condição humana. Sendo a mais antiga e também a mais literal forma de actividade individual (private enterprise), [a arte] confere ao homem, disso consciente ou inconsciente, um sentido da sua unicidade, de individualidade, de ser à parte - fazendo-o assim passar de animal social a um 'Eu' autónomo. Podem partilhar-se muitas coisas: uma cama, um bocado de pão, convicções, uma amante, mas não um poema, digamos, de Rainer Maria Rilke. (...) um poema (...) dirige-se ao homem a sós, estabelece com ele relações directas, sem quaisquer intermediários.''»



Iosif Brodskii. Paisagem Com Inundação. Edição Bilingue. Introdução e tradução de Carlos Leite. Edições Cotovia, Lisboa, 2001., p.12

Fundación mítica de Buenos Aires

¿Y fue por este río de sueñera y de barro

que las proas vinieron a fundarme la patria?

Irían a los tumbos los barquitos pintados

entre los camalotes de la corriente zaina.

Pensando bien la cosa, supondremos que el río

era azulejo entonces como oriundo del cielo

con su estrellita roja para marcar el sitio

en que ayunó Juan Díaz y los indios comieron.

Lo cierto es que mil hombres y otros mil arribaron

por un mar que tenía cinco lunas de anchura

y aún estaba poblado de sirenas y endriagos

y de piedras imanes que enloquecen la brújula.

Prendieron unos ranchos trémulos en la costa,

durmieron extrañados. Dicen que en el Riachuelo,

pero son embelecos fraguados en la Boca.

Fue una manzana entera y en mi barrio: en Palermo.

Una manzana entera pero en mitá del campo

expuesta a las auroras y lluvias y suestadas.

La manzana pareja que persiste en mi barrio:

Guatemala, Serrano, Paraguay y Gurruchaga.

Un almacén rosado como revés de naipe

brilló y en la trastienda conversaron un truco;

el almacén rosado floreció en un compadre,

ya patrón de la esquina, ya resentido y duro.

El primer organito salvaba el horizonte

con su achacoso porte, su habanera y su gringo.

El corralón seguro ya opinaba YRIGOYEN,

algún piano mandaba tangos de Saborido.

Una cigarrería sahumó como una rosa

el desierto. La tarde se había ahondado en ayeres,

los hombres compartieron un pasado ilusorio.

Sólo faltó una cosa: la vereda de enfrente.

A mí se me hace cuento que empezó Buenos Aires:

La juzgo tan eterna como el agua y como el aire





Jorge Luis Borges

El Puñal

Etiquetas: Jorge Luis Borges, poesia, poetas argentinos


En un cajón hay un puñal.



Fue forjado en Toledo, a fines del siglo pasado; Luis Melián Lafinur se

lo dio a mi padre, que lo trajo del Uruguay; Evaristo Carriego lo tuvo

alguna vez en la mano.



Quienes lo ven tienen que jugar un rato con él; se advierte que hace

mucho que lo buscaban; la mano se apresura a apretar la empuñadura

que la espera; la hoja obediente y poderosa juega con precisión en la

vaina.



Otra cosa quiere el puñal.



Es más que una estructura hecha de metales; los hombres lo pensaron y

lo formaron para un fin muy preciso; es, de algún modo eterno, el puñal

que anoche mató un hombre en Tacuarembó y los puñales que mataron

a César. Quiere matar, quiere derramar brusca sangre.



En un cajón del escritorio, entre borradores y cartas, interminablemente

sueña el puñal con su sencillo sueño de tigre, y la mano se anima cuando

lo rige porque el metal se anima, el metal que presiente en cada

contacto al homicida para quien lo crearon los hombres.



A veces me da lástima. Tanta dureza, tanta fe, tan apacible o inocente

soberbia, y los años pasan, inútiles.





Jorge Luis Borges
«Uma camada de neve impoluta cobria a vegetação do bosque e acumulava‑se nas copas das árvores, caindo lentamente para o chão com um queixume seco. Quando me virei, vi um oceano invernal, que se espraiava do lado oposto ao do separador da auto‑estrada,sereno e tranquilo, como um mar de cor azul brilhante. Tudo o que via me enchia de nostalgia. Fechei firmemente o meu coração e voltei as costas ao mar.


A neve do bosque foi‑se tornando mais profunda, os ramos partidos e os pedaços de troncos duros faziam com me fosse mais difícil caminhar do que aquilo que eu tinha imaginado. De repente, um pássaro levantou voo por entre as árvores com um chilrear agudo. Parei e pus‑me a escuta, mas não ouvi mais nada, era como se não restasse mais ninguém neste mundo. Ao fechar os olhos, escutei o som das correntes dos carros que circulavam pela estrada, que soavam como cascavéis. Tive a sensação de não saber onde estava, de não saber quem era.»

Kyoichi Katayama. Um grito de amor desde o centro do mundo.Trad. Catarina Gândara, Editora Objectiva, 1ª ed., 2009, p. 10

Tormento

Morro diante o Sol e

diante o vento e diante as crianças que disputam o cão, morro

numa manhã que não pode vir a ser nenhum poema; só triste e verde e



interminável

é essa manhã...O meu pai e a minha mãe estão na ponte e julgam

que eu venho da cidade e não me trazem senão

as suas primaveras destroçadas em grandes cestos e vêem-me -

e não me vêem, porque

eu morro diante do Sol.



Um dia não verei mais os bosques, e a erva

há-de colher a tristeza da minha irmã. O arco da porta

ficará negro e o céu já não será

inatingível

para os meus desesperos...Num dia hei-de

ver tudo e a muitos enxugar os olhos

de manhã cedo...



Estou então de novo debaixo dos jasmins e

vejo como o jardineiro dispõe os mortos nos alegretes...

Morro diante do Sol.

Estou triste, porque há sempre dias que não voltam mais...A parte



nenhuma.







Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 123

Biografia da dor

Onde eu ontem dormi é hoje dia de descanso. Em frente da porta

estão empilhadas as cadeiras e nenhuma das pessoas a quem

pergunto por mim me viu.

Os pássaros lançaram-se no espaço, para desenharem o meu rosto nas nuvens

por cima da minha casa e por cima do jardim dos mortos.



Conversei com os mortos e falei da guitarra do mundo,

que as suas bocas já não produzem nem os seus lábios,

os quais falam uma linguagem que ofende o cão do meu primo.



A terra fala uma linguagem que ninguém entende,

porque é inesgotável - dela arranquei estrelas e tirei e pus

nos desesperos

e bebi vinho do seu jarro,

que é feito das minhas dores.



Estas estradas levam ao degredo. Oiço Deus

atrás de uma vidraça e o Diabo num altifalante

e os dois chegam juntos ao meu coração, que anuncia a ruína das



almas.

Redemoinham as folhas, incessantes, nas ruas

e causam graves danos nos monumentos.

Quero, em Outubro, sonhar com a verdura.

Debaixo da porta está afixado um mandamento:

NÃO MATARÁS

...mas o jornal fala todos os dias de três homicídios,

que poderiam ter sido cometidos por mim ou por um dos meus amigos.

Leio essas notícias como uma fábula,

de uma facada para outra - sem me aborrecer.

Enquanto eles confundem carne e glória, a minha alma dorme

sob o movimento da mão de Deus.



Thomas Bernhard. Na Terra e no Inferno. Trad. e introdução José A. Palma Caetano. Assírio & Alvim, 2000, p. 119-121
«Súbito descortina-se então o mundo abandonado por deus como falta de substância, como mistura irracional de densidade e permeabilidade: o que antes parecia o mais sólido esfarela como argila seca ao primeiro contacto com quem está possuído pelo demónio, e uma transparência vazia por trás da qual se avistavam atraentes paisagens torna-se bruscamente uma parede de vidro, contra a qual o homem se mortifica em vão e insensatamente, qual abelhas contra uma vidraça, sem atinar que ali não há passagem.»




Georg Lukács
Com teu rir descarnado, tu, caveira,


Que me dizes, senão que em outro tempo,

Como o meu, delirou teu pobre cérebro,

A luz do dia procurou, com vasto

Desejo de verdade, e vagou triste

Em deprimente, lúgubre crepúsculo?




J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 40
«Toute oeuvre est réponde à une question, et la question qu'à son


tour doit se poser l'interprète, consiste à reconnaître [...]ce que

fut la question d'abord posé, et comment fut articulée la réponse»



Jean Starobinski
«Ardo como de mosto embriagado;


Ânimo sinto de arrojar-me ao mundo,

Da terra os gozos partilhar e as penas,

Lutar com a tormenta , e ao estrondo

De naufrágio cruel suster o rosto!»





J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 32/3
«Teu mundo é isto?! Chama-se isto um mundo?!

E perguntas ainda porque ansioso

Teu coração no peito confrange,

E oculto sofrer inexplicado

A energia vital em ti comprime?

Em lugar de vivente natureza.

Em cujo seio Deus criou os homens,

Rodeiam-te entre a podridão e o fumo

Somente ossadas nuas e esqueletos.»







J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 30/1
Etiquetas: Fausto, J.W.Goethe, poetas alemães, verso solto


240 Falar de inspiração pouco aproveita,

Nunca ao homem que hesita ela se mostra.

Se vos dais por poetas, que a poesia

A vosso mando ceda. O que é preciso

Já de mais o sabeis; licor bem forte

245 Desejamos beber; pois sem demora

No-lo dai preparado. Não se cumpre

Amanhã o que hoje não for feito,

E nem um dia só perder se deve.

Um homem resoluto, do possível

250 Lança mão com ardor, fugir não o deixa

E na empresa prossegue, assim lhe é a força.

Sabeis que cada qual nos nossos palcos

Exp'rimenta o que quer; pois neste dia

Prospectos não poupeis nem maquinismos.

255Da lua e sol servi-vos, e aos centos

Espalhai as estrelas. Fogo e águas,

Rochedos, bosques, pássaros não faltem.

Do bastidor no acanhado espaço

A criação inteira se desdobre,

260E caminhai, com rapidez medida,

Desce o céu, pela terra, ao fundo inferno.





J. W. Goethe. Fausto. Trad. Agostinho D'Ornelas. Ed. ao cuidado de Paulo Quintela. , 1953, Acta Universitatis Conimbrigensis.,p 19/20
Sobre a Morte






Quando penso que os dias a passar

Em passos breves, mas em peso sentidos,

Minh'alma levam a espaços temidos

E a juventude à morte vai dar,



Por estranho e triste me pareça

Que em breve (ora vivo) eu vá morrer,

Vaga, incerta dor que pesa em meu ser

Faz com que a mente em pavor desfaleça.



Contudo mesmo em raiva, choro e pena

Cada instante é consolo ao coração

E com riso acolherei cada gemido:



Do fundo desespero a esp'rança acena.

Na morte não vejo a libertação -

É melhor o mau que o desconhecido.





Alexander Search (1904). Poesia. Ed e Trad. Luísa Freire. Assírio&Alvim, Lisboa, 1999., p. 11
VI




Falar-te-ei uma linguagem de pedra

(respondes com um monossílabo verde)

Falar-te-ei uma linguagem de neve

(respondes com um leque de abelhas)

Falar-te-ei uma linguagem de água

(respondes com uma canoa de relâmpagos)

Falar-te-ei uma linguagem de sangue

(respondes com uma torre de pássaros







Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.72

Pedras soltas

7. Paisagem



Os insectos atarefados,

os cavalos cor de sol,

os burros cor de nuvem,

as nuvens, rochas enormes que não pesam,

os montes como céus desmoronados,

a manada de árvores bebendo no arroio,

todos estão aí, felizes no seu estar,

frente a nós que não estamos,

comidos pela raiva, pelo ódio,

pelo amor comidos, pela morte.





Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.49

GOSTO DOS AMIGOS

que modelam a vida

sem interferir muito;

os que apenas circulam

no hálito da fala

e apõem, de leve,

um desenho às coisas.

Mas, porque há espaços desiguais

entre quem são

e quem eles me parecem,

o meu agrado inclina-se

para o mais reconciliado,

ao acordar,

com a sua última fraqueza;

o que menos preside à vida

e, à nossa, preside

deixando que o consuma

o núcleo incandescente

dum silencioso votivo

de que um fumo de incenso

nos liberta.





Sebastião Alba. A noite dividida. Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.,p.82

Destino de Poeta

Palavras? Sim, de ar,

e no ar perdidas.

Deixa-me perder entre palavras,

deixa-me ser o ar nuns lábios,

um sopro vagabundo sem contornos

que o ar desvanece.



Também a luz em si mesma se perde.





Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.19
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Lago



Tout pour l'oeil, rien pour les oreilles

Ch. B



Entre áridas montanhas

as águas prisioneiras

repousam, cintilam

como um céu caído.



Nada senão os montes

e a luz entre as brumas;

água e céu repousam,

peito a peito, infinitos.



Como o dedo que afaga

uns seios, um ventre,

estremece as águas,

delgado, um frio sopro.



Vibra o silêncio, bafo

de pressentida música,

invisível ao ouvido,

apenas para os olhos.





Octavio Paz. Antologia Poética. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1984., p.17
«Parecia a Iegoruchka que esta canção suave, dolente e melancólica, como um queixume, que mal se ouvia, ora vinha da direita, ora da esquerda, ora de cima ora de baixo da terra; dir-se-ia que um espírito invisível voava sobre a estepe cantando. Iegoruchka olhava em volta, sem conseguir compreender donde partia este estranho canto. Momentos depois, escutando com mais atenção, convenceu-se de que era a erva que cantava; meio morta, condenada sem remissão, tentava com esta canção sem palavras, queixosa mas sincera, convencer alguém da sua completa inocência; fora injustamente que o Sol a calcinara. Repetia que desejava ardentemente viver, que ainda era jovem e que, sem aquele calor e sem aquela secura, teria sido bela. Não era culpada, e no entanto pedia perdão a alguém e jurava que sofria horrivelmente, que estava infinitamente triste e era digna de dó.»










Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 17
«(...) O rapazinho olhava atentamente aqueles lugares familiares enquanto a odiosa caleça corria à desfilada, deixando tudo para trás de si. Depois da prisão, foi a forja negra de fuligem que ele viu aparecer e desaparecer e depois o cemitério verde e acolhedor, cercado dum murinho de pedra grossa. Para lá do murinho distinguiam-se as cruzes e os jazigos, que, de longe, punham nódoas brancas e alegres por entre a folhagem das cerejeiras, Iegoruchka recordou-se que, quando estavam em flor, essas nódoas se confundiam com as flores de cerejeira num mar de brancura e que, quando as cerejas amadureciam, as cruzes e os jazigos ficavam salpicados de manchas vermelhas como sangue. Sob as cerejeiras, por trás do murinho, dormiam, noite e dia, o pai de Iegoruchka e a avó Zenaida Damilovna. Quando a avó morreu tinham-na posto num longo e estreito esquife com duas moedas de cinco copeques sobre os olhos, que não se queriam fechar. Até ao dia da sua morte estivera tão viva como toda a gente, e quando ia ao mercado trazia macios biscoitos cobertos de grãos de dormideiro. Agora não fazia senão dormir, dormir...»






Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 7
«Para lá do cemitério, as chaminés dos fornos de tijolo deitavam fumo. Um fumo negro e espesso saía em grandes volutas por baixo dos grandes lenhados feitos de cana e abatidos contra o chão e depois eleva-se preguiçosamente para o céu. Por cima dos fornos de tijolo e do cemitério o céu estava dum tom ocre, enquanto nuvens de fumo cobriam os campos e a estrada com grandes sombras. Por entre o fumo, junto dos telhados, viam-se mexer homens e cavalos cobertos de poeira encarnada...

Transpostos os fornos de tijolo, a cidade cedia lugar ao campo. Iegoruchka virou-se uma última vez para olhar a cidade, encostou a cara ao cotovelo de Deniska e começou a chorar amargamente...

- Livra! Ainda não choraste tudo, meu palerma? -disse Kuzmitchov. - Olhem para este medricas a choramingar outra vez? Se não queres vir não venhas. Ninguém te obriga!

- Não chores, pequeno, não chores... - disse, por entre dentes, o padre Cristóvão em voz baixa e rápida.

-Não chores, pequeno. Pede a Deus que venha em teu auxílio...Se partes é para teu bem. Os estudos são, como se diz, a luz, e a ignorância, as trevas. Isto é que é a pura verdade.»







Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 7/8

Os nós da escrita

Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.

Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.

Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.

Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva que neles caia não se escoa.







Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 104

A Memória

Assim é a memória. Onde quer que eu me encontre abre um buraco, entra na terra, o que me dificulta a marcha ao mesmo tempo que acentua esta estranheza de eu me sentir eu até onde nem mesmo as minhas mãos, ainda que escavassem, lograriam ir. Granitos, xistos, cimentos, a nada ela deixa de aceder por causa deles - às vezes acontece essa inquietante coisa de, num prédio, ser como se ela atingisse o andar de baixo ou outro mais abaixo ainda, o que é de tal forma insidioso que, se alguém que dele chegasse me dissesse nada ter notado, eu ficaria atónito. Mas é na pele que tudo se reflecte com mais intensidade - a memória abre um sulco através dela, espalha-se-lhe à tona com tudo o que da terra atrás de si carrega até se misturar com a saliva, a qual -completamente subterrânea - é o que por fim lhe serve de coroa, aquilo a que chamamos, referindo o mar, rebentação. Vem sempre dar à pele o que a memória carregou, da mesma forma que, depois de revolvidos, os destroços vêm dar à praia.





Luís Miguel Nava. Poesia Completa 1979-1994. Prefácio de Fernando Pinto do Amaral e Org. e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações Dom Quixote, Porto, 1ª ed. 2002., p. 97

Decisões

«Devemos ser capazes de superar facilmente um estado lastimável, ainda que com uma energia forçada. [...]

Por isso, o melhor conselho é aceitar tudo, comportarmo-nos como uma massa pesada e, ainda que nos sintamos impelidos por um vendaval, não ceder à tentação de dar um único passo desnecessário, olhar para os outros com olhos de bicho, não sentir o menor arrependimento, esmagar com as próprias mãos aquilo que ainda resta da vida como um fantasma, ou seja, aumentar ainda o último silêncio, próprio do túmulo, e não aceitar mais nada a não ser ele.

Um gesto característico de um estado de espírito como este é o de passar com o dedo mínimo pelas sobrancelhas.»





Franz Kafka. Parábolas e Fragmentos. Selecção, trad. e prefácio João Barrento. Assírio & Alvim, 2004., p. 39/40

sobre a formação da parte visual da imaginação literária

«Digamos que diversos elementos concorrem para formar a parte visual da imaginação literária: a observação directa do mundo real , a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis, e um processo de abstracção, condensação e interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento.»





Italo Calvino. Seis propostas para o próximo milénio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990., p. 110

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O Fazedor

Nunca se havia demorado nos gozos da memória. As impressões resvalavam sobre ele, momentâneas e vívidas; o cinábrio de um oleiro, a abóbada carregada de estrelas que também eram deuses, a lua, donde tinha caído um leão, a lisura do mármore sob as lentas gemas sensíveis, o sabor da carne de javali, que gostava de dilacerar com dentadas brancas e bruscas, uma palavra fenícia, a sombra negra que uma lança projecta na areia amarela, a proximidade do mar ou das mulheres, o pesado vinho cuja aspereza era mitigada pelo mel eram capazes de abarcar por inteiro o âmbito da sua alma. Conhecia o terror mas também conhecia a cólera e a coragem, e uma vez foi o primeiro a escalar um muro inimigo. Ávido, curiosos, casual, sem outra lei que não a fruição e a indiferença imediata, andou pela variada terra e contemplou, numa e noutra costa do mar, as cidades dos homens e os seus palácios. Nos mercados populosos ou ao pé de uma montanha de cimo incerto, onde podia perfeitamente haver sátiros, fora-lhe dado ouvir complicadas histórias, que recebeu como recebia a realidade, sem indagar se eram verdadeiras ou falsas.

Gradualmente, o formoso universo foi-o abandonando; uma obstinada neblina apagou-lhe a linha das mão, a noite despovoou-se de estrelas, a terra tornou-se-lhe insegura debaixo dos pés. Tudo se afastava e tornava confuso. Quando soube que estava a ficar cego, gritou; o poder estóico ainda não tinha sido inventado e Heitor podia muito bem fugir sem menosprezo. Não mais verei (sentiu) nem o céu cheio de pavor mitológico, nem essa cara que os anos hão-de transformar. Dias e noites passaram sobre esse desespero da sua carne, mas uma manhã acordou, olhou (já sem assombro) as nebulosas coisas que o rodeavam e inexplicavelmente sentiu, como quem reconhece uma música ou uma voz, que já lhe tinha acontecido tudo isso e que tudo isso havia encarado com temor, mas também com júbilo, esperança e curiosidade. Desceu então até à sua memória, que lhe pareceu interminável e conseguiu arrancar àquela vertigem a recordação perdida que reluziu como uma moeda debaixo de chuva, talvez por nunca a ter olhado, a não ser porventura num sonho.

A recordação era a seguinte: Um outro rapaz tinha-o injuriado e ele tinha corrido para junto do pai e contara-lhe a história. O pai deixou-o falar como se não lhe desse ouvidos ou não compreendesse e dependurou da parede um punhal de bronze, muito belo e carregado de poder, que o rapaz havia cobiçado furtivamente. Agora tinha-o nas mãos e a surpresa da posse anulou a injúria sofrida, mas a voz do pai fez-se ouvir: Que alguém saiba que és um homem. E havia uma ordem na voz. A noite cegava os caminhos; abraçado ao punhal, em que pressentia uma força mágica, desceu a brusca ladeira que rodeava a casa e correu até à beira-mar, sonhando-se Ajax e Perseu e povoando as feridas e de batalhas a obscuridade salobra. O sabor preciso daquele instante era o que ele procurava. Queria lá saber do resto: as afrontas do desafio, o torpe combate, o regresso com a lâmina a sangrar.

Outra lembrança, em que também havia uma noite e uma iminência de aventura, desprendeu-se daquela. Uma mulher - a primeira que os deuses lhe proporcionaram - esperara por ele na sombra dum hipogeu, e ele pôs-se à procura dela através de galerias que eram como redes de pedra e através dos despenhadeiros que se dissolviam na sombra. Por que motivo chegavam até ele essas memórias e por que razão lhe chegavam sem amargura, como uma mera prefiguração do presente?

Não sem grave assombro compreendeu. Naquela noite, dos seus olhos mortais, a que agora descia, esperavam-no também o amor e o risco. Ares e Afrodite, porque já adivinhava (porque já o cercava) um rumor de glória e de hexâmetros, um rumor de homens que defendem um templo que os deuses não salvarão e de baixéis negros que procuram no mar uma ilha querida, o rumor das Odisseias e Ilíadas que era o seu destino cantar e deixar ressoando concavamente na memória humana. Sabemos estas coisas, mas desconhecemos as que sentiu ao descer à última sombra.









Jorge Luis Borges. Poemas Escolhidos. Edição bilingue.

Selecção e Trad. Ruy Belo. Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp 69-73.

Instruções para perceber três pinturas célebres

O Amor Sagrado e o Amor Profundo, por Ticiano









Esta detestável pintura representa um velório nas margens do

Jordão. Raras vezes pôde a estupidez de um pintor aludir com

maior baixeza à esperança do Mundo num Messias que brilha

pela ausência; ausente do quadro que o mundo é, brilha horri-

velmente no obsceno bocejo do sarcófago de mármore, enquanto

o anjo encarregado de proclamar a ressurreição da sua carne

patibular espera impávido que os desígnios se cumpram. Não

preciso explicar que o anjo é essa figura nua, prostituída na sua

gordurosa maravilhosa, que se disfarçou de Madalena, ironia das

ironias, no momento em que a verdadeira Madalena avança pela

estrada (onde cresce a venenosa blasfémia de dois coelhos).

A criança que enfia a mão no sepulcro é Lutero, isto é, o

Diabo. Diz-se que a figura vestida representa a Glória no mo-

mento de anunciar que todas as ambições inumanas cabem numa

bacia; mas está mal pintadas e faz pensar num artifício de jasmins

ou num relâmpago de trigo.









Julio Cortázar.Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p.17

Instruções para matar formigas em Roma

As formigas estão a comer Roma, está visto. Andam entre as pedras; que caminho de pedras preciosas, ó loba, te corta a garganta? De algum lado saem as águas das fontes, pedras vivas, os trémulos camafeus que em plena noite negam a história, as dinastias e comemorações. Encontrar o coração que faz pulsar as fontes e precavê-lo das formigas, organizar nesta cidade cheia de sangue, cheia de cornucópias tensas como mãos de cego, um rito de salvação para que o futuro parta nos montes os dentes, se arraste sem forças e lento, sem formigas nenhumas.

Localizar primeiro as fontes, o que se torna fácil estando nos mapas coloridos, nas monumentais plantas,as flores como repuxos e cascatas azul-celestes, só que é procurá-las bem, enfiadas num círculo a lápis azul e não vermelho, porque um bom mapa de Roma é como Roma, vermelho. Sobre o vermelho de Roma, o lápis traçará um risco violeta à volta de cada fonte, e podemos agora ficar mais descansados pois já conhecemos a língua das águas.

Mais difícil, ínfimo e secreto é furar a pedra opaca sob a qual serpenteiam as veias de mercúrio, descobrir à força da paciência a chave de cada fonte, velar amorosamente em noites de lua penetrante junto aos vasos imperiais, até que de tanto sussurro verde, de tanto gotejar como flores, vão nascendo as direcções, as confluências, as outras vias, as vivas. E, despertos, segui-las com varas de aveleira em forma de forquilha, triangulares, duas varinhas em cada mão, segurar um só nos dedos soltos, mas tudo isto invisível aos carabineiros e à amavelmente receosa população, andar pelo Quirinal, subir ao Campidoglio, aos gritos correr pelo Pincio, imóvel como um globo de fogo perturbar a ordem da Piazza della Essedra, extrair dos surdos metais do solo a nomenclatura dos rios subterrâneos.E não pedir ajuda a ninguém, nunca.

E ver como nesta mão de mármore desolado as veias vogam harmoniosas, no prazer da água, artifício do jogo, até aos poucos se irem chegando, a confluir, enlaçar-se a crescer em artérias, desaguar duras na praça central onde palpita o tambor de vidro líquido, a raiz de copas pálidas, o cavalo profundo. Então saberemos onde, em que abóbodas calcárias, entre pequenos esqueletos de lémures, o coração da água tem o seu tempo.

É difícil sabê-lo, mas saber-se-á. Então mataremos as formigas que cobiçam as fontes, fogo pregaremos às galerias que esses horríveis mineiros tramam para possuir a vida secreta de Roma. Basta chegar primeiro à fonte central e mataremos as formigas. E num comboio nocturno, obscuramente felizes, fugiremos das lâminas vingadoras, misturados com soldados e freiras.





Julio Cortázar. Histórias de Cronópios e de Famas. Trad. Alfacinha da Silva. Editorial Estampa, Lisboa, 1999, 2ª ed., p.20/1

A Celebração do Lagarto

Leões na rua, vadios

Cães babando raiva e cio

Fera enjaulada dentro da cidade

O corpo da mãe

A apodrecer no asfalto do Verão.

Ele fugiu da cidade.



Desceu para Sul e passou a fronteira

Deixou o caos e a desordem

Tudo para trás das costas.



Acordou um dia numa pensão verde

Com um estranho ser rosnando ao seu lado.

O suor encharcava-lhe a pele luzidia.



Já está toda a gente?

Vamos dar início ao cerimonial.





Desperta!

Não te lembras de onde foi?

O tal sonho terminou?



A serpente era de ouro baço

Vítrea & enroscada.

Receávamos tocar-lhe.

Os lençóis eram prisões mortalmente abafadas

& ela sempre à minha beira.

Velha não era...jovem

De cabelo ruivo escuro

A pele branca e macia.

Corre prà casa de banho e vê-te

ao espelho!



Aí vem ela a entrar

Cada gesto dela é um século lento que eu não sei viver.

Deixo-me cair e encosto a cara

Ao cimento gelado.

Sinto a fria doçura do sangue a espicaçar-me,

O brando assobio das serpentes da chuva...



Brinquei em tempos a um jogo

Gostava de regressar rastejando mentalmente

Deves saber de que jogo se trata

É o jogo chamado «fazer de maluco»



Devias tentar brincar a esse jogo

Fechas os olhos esqueces o nome

Esqueces o mundo, esqueces toda a gente

E ambos erguemos uma torre diferente.



(...)





Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp. 89-91
Tudo o que disso se recolher servirá de alimentação. Quer dizer:


podemos devorar a nossa biografia, podemos ser antropófagos,

canibais do coração pessoal. Aquilo que se escreva conservará

cegamente um tremor central, esse calafrio de ter olhado alguma vez o

nosso rosto filmado no abismo do mundo.





Herberto Helder
As musas cegas



(...)



Era tão violenta

a ideia de cantar sem fim,

até que a voz consumisse esta garganta sombreada

de estreitos vasos puros.





Herberto Helder. A Colher na boca (Poesia Toda I). Lisboa, Assírio&Alvim, 1990, pp.76.



«É preciso criar palavras, sons, palavras / vivas, obscuras, terríveis. / É preciso criar os mortos pela força / magnética das palavras.»





Herberto Helder. Ou o poema contínuo. 2ª ed. Assírio &Alvim, 2004.



«E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos, / e atiram-se, através deles,como jactos / para fora da terra.»





Herberto Helder. Ou o poema contínuo. 2ª ed. Assírio &Alvim, 2004., p. 48
.................E sobre a solidão das casas,

entre o sono e o vinho derramado,

curvam-se os cascos do demónio -

ágeis, frágeis.

E o sonâmbulo desejo do nosso coração

tudo absorve ao alto, como uma tenebrosa

vertigem.





(pequeno excerto retirado do poema IV de 'Fonte')





Herberto Helder. A Colher na boca (Poesia Toda I). Lisboa, Assírio&Alvim, 1990, pp.64.

O Fim

É o fim, amigo querido,

é o fim, amigo único, o fim

dos planos que forjámos, o fim

de tudo o que era firme, o fim

sem apelo ou surpresa, o fim.

Nem mais te olharei nos olhos.

Vê se imaginas o que vai ser de nós,

limitados e libertos,

desesperadamente necessitados da mão dum estranho

num mundo desesperado?



Perdidos num romano deserto de mágoas,

com todas as crianças atacadas pela loucura,

todas as crianças atacadas pela loucura,

à espera da chuva de Verão.



É perigoso passar ao pé da cidade,

segue a direito pela estrada real.

Cenas mágicas dentro da mina de ouro;

segue pela estrada do oeste, amor.



Vai, vai a cavalo na serpente

até ao lago de antigamente.

A serpente mede sete longas milhas:

põe-te a cavalo na serpente, que é velha

e tem a pele frígida.

O Oeste é óptimo, óptimo é o Oeste,

vem até cá, nós faremos o resto.

O autocarro azul chama por nós,

o autocarro azul chama por nós.

Aonde nos leva, senhor condutor?



O assassino acordou antes da aurora,

calçou as botas,

retirou uma cara da galeria antiga,

e seguiu pelo átrio adiante.

Foi até ao quarto onde a irmã vivia,

foi seguidamente visitar o irmão,

e dali seguiu pelo átrio fora.

E chegou a uma porta

e olhou lá para dentro.

-Pai!

-Sim, meu filho?

- Eu quero matar-te.

Mãe eu quero que...





Entra, fica connosco, tenta uma vez mais, filho,

entra, fica connosco, tenta uma vez mais, filho,

entra, fica connosco, tenta uma vez mais, filho,

opera-me nas traseiras do autocarro azul...





É o fim, amigo querido,

é o fim, amigo único, o fim.

Custa-me deixar-te, mas

nunca irás pra onde eu for.

O fim da risada e das doces mentiras,

o fim das noites em que fizemos por morrer,

é o fim.







Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp.23/5

Aceita O Que Vier

Tempo pra viver, tempo pra mentir,

tempo pra rir, tempo pra morrer.



Toma cuidado querida, aceita o que vier.

Não te precipites se queres que o amor dure.

Tens-te precipitado demais.



Tempo pra andar, tempo pra comer

tempo pra vibrares os dardos ao sol.



Vai devagar, verás que te sabe cada vez melhor,

aceita o que vier, tira a especialidade do prazer.





Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp.22

As Pessoas São Estranhas

As pessoas são estranhas quando nós o somos,

feias são as caras quando nos vemos só.

Toda a mulher que nos rejeita nos parece perversa,

as ruas são torturosas quando estamos em baixo.

Quando nos sentimos estranhos, surgem-nos caras através da chuva,

quando nos sentimos estranhos, ninguém se lembra do nosso nome,

quando nos sentimos estranhos, quando nos sentimos estranhos,

quando nos sentimos estranhos.





Jim Morrison. Uma Oração Americana e outros escritos. Assírio & Alvim, Lisboa., pp.33

Sem outro intuito

Atirávamos pedras

à água para o silêncio vir à tona.

O mundo, que os sentidos tonificam,

surgia-nos então todo enterrado

na nossa própria carne, envolto

por vezes em ferozes transparências

que as pedras acirravam

sem outro intuito além do de extraírem

às águas o silêncio que as unia.







Luís Miguel Nava. Vulcão I.Poesia Completa 1979-1994.Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Organização e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações D. Quixote, 2002.

A noite

A noite veio de dentro, começou a surgir do interior

de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro.

Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias

entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros.

Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las

crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-

pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que,

apesar de a noite também se desprender das coisas, havia

nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-

tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama

do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde,

num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das

coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer

pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que

dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz

e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos

olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo

a treva nasalada.







Luís Miguel Nava. Vulcão I.Poesia Completa 1979-1994.Prefácio de Fernando Pinto do Amaral. Organização e Posfácio de Gastão Cruz. Publicações D. Quixote, 2002.

AMOROSA ANTICIPACIÓN

Ni la intimidad de tu frente clara como una fiesta

ni la costumbre de tu cuerpo, aún misterioso y tácito y de niña,

ni la sucesión de tu vida asumiendo palabras o silencios

serán favor tan misterioso

como el mirar tu sueño implicado

en la vigilia de mis brazos.

Virgen milagrosamente otra vez por la virtud absolutoria del sueño,

quieta y resplandeciente como una dicha que la memoria elige,

me darás esa orilla de tu vida que tú misma no tienes,

Arrojado a quietud

divisaré esa playa última de tu ser

y te veré por vez primera, quizá,

como Dios ha de verte,

desbaratada la ficción del Tiempo

sin el amor, sin mí.





Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,pp 9.

PARA UNA CALLE DEL OESTE

Me darás una ajena inmortalidad, calle sola.

Eres ya sombra de mi vida.

Atraviesas mis noches con ti segura rectitud de estocada.

La muerte -tempestad oscura e inmóvil- desbandará mis horas.

Alguien recogerá mis pasos y usurpará mi devoción y esa estrella.

(La lejanía como un largo viento ha de flagelar su camino.)

Aclarado de noble soledad, pondrá una misma anhelación en tu cielo.

Pondrá esa misma anhelación que yo soy.

Yo resurgiré en su venidero asombro de ser.

En ti otra vez:

Calle que dolorosamente como una herida te abres.




Jorge Luis Borges in Luna de enfrente(1925) -Versión transcripta por José Ignacio Márquez.,pp 22.

Elegia IX - Outonal

Nenhuma beleza de Primavera ou Verão em tal graça

Como a que descobri numa face Outonal.

As jovens Belezas forçam-nos ao amor: isso é Violação;

Esta apenas aconselha, e não lhe podemos escapar.

Se fosse vergonha amar, não seria vergonha aqui

Onde a Afeição toma o nome de Reverência.

Foram-lhe os primeiros anos a Idade de Ouro? É verdade,

Mas ela agora é ouro bem martelado e sempre novo.

Aquele foi o seu tempo tórrido e inflamador,

Este é o seu temperado clima Tropical.

Olhos belos, quem vos pedir mais fogo que o emanado,

É porque, febril, deseja a pestilência.

Não chamem campas a estas rugas; se campas fossem

Seriam as do amor, porque ele não está noutro lugar.

Porém o amor não jaz aqui morto, mas aqui se senta

Consagrado a esta trincheira, como um Anacoreta;

E aqui até que a morte dela, que será a dele, chegue

Não cavará uma Campa, mas erigirá um Túmulo.

Aqui habita; e apesar de viajar por todo o lado

Com Estadão, é ainda aqui a sua residência fixa:

Aqui onde está calma a Tarde, não o meio-dia ou a noite,

Sem voluptuosidades, porém toda deleite.

Todas as palavras dela, próprias a todos os ouvintes

Seja no Folgar, seja em Conselho, podemos seguir.

Este é o madeiro do amor, a juventude os seus arbustos;

Ali ele, como vinho em Junho, faz ferver o sangue,

Que depois se tempera, quando o nosso gosto

E apetite de outras coisas é passado.

O estranho amor Lídio de Xerxes, o Plátano,

Foi amado pela idade, e porque nenhum era maior,

Ou então porque, sendo jovem, a natureza lhe abençoou

A juventude com a glória da idade, a Esterilidade.

Se amamos as coisas há muito procuradas, a Idade é algo

Que levamos cinquenta anos a conquistar.

Se as coisas são transitórias, e cedo se corrompem,

A Idade será mais amável nos seus últimos dias.

Mas não nomeiam Faces Invernais, de pele flácida,

Descarnadas como um saco vazio, antes a bolsa da alma;

Cujos Olhos buscam luz de dentro, pois tudo aqui é sombra;

Cujas bocas são buracos, mais gastos do que feitos;

Em que um a um cada dente partiu para vários lugares

A fim de lhes humilhar as almas na Ressurreição:

Não me nomeiem essas Cabeças mortas viventes,

Porque estas não são Anciãs, mas Antigas.

Odeio extremos; porém antes preferia ficar

Com Tumbas do que Berços;para passar um dia.

Dado que tal é o movimento natural do amor, possa ainda

O meu amor abrandar, e viajar monte abaixo

Nunca a suspirar atrás de belezas em crescimento. Assim,

Irei definhando no fluxo dos que se dirigem para casa.







John Donne in Elegias Amorosas. Edição bilingue. Trad. Helena Barbas. Assírio & Alvim, 1997.,pp49/51

Sua Putidade o Crimertídaco

Esse filho de quem nem pode chamar-se bem uma puta,

persegue-me, arranha-me, arrepela-me, cospe

sempre ao meu lado, e nos lugares aonde

julga que eu passei. Filho, como é,

do que nem pode chamar-se bem

uma puta, vive de cuspir, de arrepelar

de arranhar, de perseguir as sombras

que ele julga serem as de quem não passa

nos becos onde a mãe o deu à luz,

depois de untada a vida com lubrificante

que lhe ficou, brilhantina, agarrado ao cabelo,

e a mãe, logo que o viu, lhe calçou

meias verdes e lhe comeu o imbigo.

Filho do que, de puta, nem por prenha basta

para gerar um esterco assim tão penteado,

tão crítico, tão de meias verdes,

tão arrotantemente porco nas regueifas que

do cachaço ascendem ao tutano encefálico,

julga suinamente que não há lugares,

nem seres humanos, livres de presença

de Sua Putidade. Há.

Exactamente as pessoas e os lugares aonde

ser filho da puta é ser filho da puta,

com ou sem regueifas nas ideias

ou verdura nas meias,

ou brilhantina uterina

de quem lambido foi em sua mãe

antes de nascer para cri-mer-tí-da-co.





3 de Agosto de 1962

Jorge de Sena in Dedicácias. Guerra e Paz, Editores, 2010., pp.29

Cartas a Um Jovem Poeta

« (...)é bom estar só, pois a solidão é difícil, mas o facto de uma coisa ser difícil é mais uma razão para que a façamos.

Também amar é bom, pois o amor é difícil. Amor de um ser humano por outro: isso é talvez o mais difícil que nos está destinado, o extremo, a prova e o exame final, a obra para a qual toda as outras são apenas preparação. É por isso que os jovens, novos em todas as coisas, ainda não sabem amar: têm de aprender primeiro. Têm de aprender a amar, com todo o seu ser, com todas as suas forças concentradas no coração que bate inquieto e ansioso. Mas o tempo de aprender é sempre prolongado e fechado, e assim é o amor por muito tempo e pela vida fora; a solidão é para aquele que ama um isolamento intenso e profundo. Amar não é, antes de mais, nada adquirido que se designa por abrir-se, entregar-se e unir-se a outra pessoa (pois o que seria uma união do ainda impreciso, do ainda por ordenar - ?) mas é um ensejo sublime para o indivíduo amadurecer - tornar-se algo dentro de si próprio, tornar-se mundo, mundo para si por amor a outra pessoa, é uma grande e ambiciosa exigência para ele, algo que o torna eleito e o destina à grandeza. Só neste sentido, como obrigação assumida de se trabalharem a si próprios («escutar e martelar noite e dia»), é que os jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é oferecido. A perda no outro e a entrega a qualquer espécie de comunhão não é para eles (que ainda terão de poupar e juntar durante muito tempo, muito tempo) - é a finalização, é talvez aquilo para que as vidas quase já não chegam.



Rainer Maria Rilke in Cartas a Jovens Poetas. Trad. de Lino Marques Relógio D'Água Editores, 2003., pp 68/69

Uma mulher estranha

«Temos que voltar para casa. Os trenós rangem no gelo. Uma brisa suave atira-nos ao rosto com pequenos flocos de neve, e vemos então a luz das lâmpadas eléctricas como que através de um prisma. No cais, as casas iluminadas parecem enormes. Estreito levemente Natália pela cintura; mas não me atrevo a apertá-la mais. Sinto um milhão de sensações finas, subtis - mas as palavras não me ocorrem e não sei que lhe hei-de dizer. Em que está pensando a sua linda cabeça pequenita, que ela protegeu com o regalo? E forço-me por me lembrar do seu rosto, que agora não vejo e de que me esqueci completamente. Tenho junto de mim uma mulher que não conheço e que quero conhecer. Para quê? Para uma pequena e vulgar aventura amorosa? Não, não! Nada d'isso!

-Voltemos para casa.

-Sim, minha querida. Se me vierem à cabeça ideias vis a seu respeito, matar-me-ei.

Vejo que sofre, que é um ser que mal começou a viver e já tem o coração despedaçado. Lá em casa espera-a o marido moribundo. E um drama - e não se sabe qual dos dois sofre mais.»







N. Garin in Uma Mulher Estranha. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.128/129

Limites

Destas ruas que afundam o poente

Uma (mas qual?) já tenho percorrido

Pela última vez, indiferente

E sem adivinhá-lo, submetido



A Quem prefixa omnipotentes normas

E uma secreta e rígida medida

Às sombras e aos sonhos e às formas

Que destecem e tecem esta vida.



Se para tudo há um termo e há medida,

Última vez e nunca mais e olvido,

Nesta casa de que pessoa querida

Nos despedimos sem ter sabido?



A noite cessa p'ra lá da vidraça

E da pilha dos livros que truncada

Sombra pela indecisa mesa espaça

Há-de havê-los dos quais não lemos nada.



No Sul ao menos um portão arruinado

Existe com jarrões de alvenaria

E nopais dentro, que me está vedado

Como se fosse uma litografia.



Fechaste alguma porta pela certa

E para sempre. Um espelho em vão te aguarda.

Julgavas a encruzilhada aberta

E Jano quadrifonte está de guarda.



Entre as tuas memórias uma existe

Que sem remédio se veio a perder;

Àquela fonte não te hão-de ver

Descer o branco sol, a lua triste.



Não volta a tua voz a quanto o persa

Disse em língua de aves e de rosas,

Quando ao sol-pôr, perante a luz dispersa,

Quiseres dizer inolvidáveis cousas.



E o incessante Ródano e o lago,

Esse ontem, sobre o qual hoje me inclino,

Tão perdido estará como Cartago,

Sepulta em fogo e sal pelo latino?



Parece-me na alva que soou

Vivo rumor de gente. Assim vos vais,

(Foi tudo quem me quis e me olvidou)

Espaço e tempo e Borges já deixais.





Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.

Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.31-33

Elegia I - CIÚME

Mulher carinhosa, que verteu marido morto desejas

E de seus grandes ciúmes ainda te queixas.

Se inchado de veneno jazesse no seu último leito,

O corpo coberto por uma crosta cauterizada,

Aspirando o ar, tão rouco e rápido, como pode

Cravejar o mais ágil músico;

Com repugnante vomitado, pronto a expelir

A alma para fora de um Inferno, adentro de novo,

Feito surdo pelos urros uivantes dos parentes pobres

A implorar, com poucas e falsas lágrimas, grandes legados,

Não chorarias, mas alegre e prazenteira estarias

Como um escravo, que amanhã fosse libertado.

Porém tu choras, quando o vês engolir avidamente

A sua própria morte, o ciúme que envenena o coração.

Oh, agradece-lhe muito, ele é bem-educado,

Pois suspeitando, amavelmente nos avisou

Que não devemos, como usávamos, troçar abertamente

Da sua deformidade com enigmas de escárnio;

Nem estando juntos à sua mesa sentados,

Com palavras, toques, ou olhares de viés, adulterar;

Nem quando ele, inchado e satisfeito pela comezaina

Se senta, e ressona, enjaulando-se na cadeira de verga,

Deveremos nós outra vez usurpar-lhe a cama,

Nem beijarmo-nos e brincar na casa dele, como dantes.

Agora vejo grandes perigos; porque aquele é

O seu reino, o seu castelo, a sua diocese.

Mas - como os homens invejosos que insultariam

O seu Príncipe, ou lhe cunhariam o ouro, para outro país

A si próprios se exilam, e aí o fazem - ,

Se brincarmos noutra casa, que teremos a temer?

Ali zombaremos dos comportamentos caseiros,

Das suas intrigas cegas, e espiões a soldo,

Como o fazem os habitantes da margem direita do Tamisa

Ao Mayor de Londres, ou os alemães ao orgulho do Papa.





John Donne in Elegias Amorosas. Edição Bilingue. Trad. Helena Barbas, Assírio & Alvim, 1997

Os murmúrios da floresta

Enfim, um belo dia Romão viu-se casado. Trouxe a sua jovem esposa para a cabana da floresta. Nos primeiros dias não fez senão ralhar com ela, atirando-lhe ao rosto as vergastadas que tinha apanhado por sua causa.

-Não vale a pena martirizarem assim por ti um bom cristão.

Quando voltava da floresta, começava a querer expulsá-la de casa.

-Vai-te. Não quero mulheres em minha casa. Não gosto de dormir com mulheres, porque cheiram mal.

Dizia ele isto.

Mas, depois, foi-se acostumando a pouco e pouco. Oxana arrumava-lhe a casa, varria, lavava, tudo estava muito limpo e arranjado. Romão sentia-se contente e já se ria. Não só fez as pazes, como começou a gostar dela.

Palavra de honra, até ele mesmo se admirava!

Devo dar graças ao senhor, que me ensinou a ser razoável - dizia ele depois. Meu Deus, que parvo que eu era! Apanhar tantas vergastadas, para quê?! Agora vejo bem que fazia mal, recusando-me a casar. Estou muito contente com Oxana, mesmo muito contente.

Passaram-se as semanas e os meses. Um dia, reparei que Oxana se deitou num banco e começou a gemer. Durante a noite piorou. No dia seguinte, ouvi, com grande surpresa minha, o choro de uma criança.

«Toma! Há um menino cá em casa, disse eu para comigo. E não me enganava.

O menino não viveu muito tempo: apenas até à noite. Quando anoiteceu, já se não ouvia. Oxana pôs-se a chorar. Romão disse-lhe:

-Pronto, acabou-se. Já não temos menino. Não vale a pena chamar o pope; nós próprios o enterraremos debaixo de um pinheiro.

Romão atreveu-se a dizer isto. E não só o disse, como o fez: - abriu um buraco e enterrou o menino. Vês aquele velho tronco, acolá? São os restos de um pinheiro fulminado por um raio. Foi ali precisamente que Romão enterrou o menino. Ouve o que te vou dizer, meu rapaz: quando o sol se põe e a primeira estrela aparece no céu, um passarinho voa por cima desse sítio, soltando gritos de aflição. O coração despedaça-se-me ao ouvi-lo. O passarinho é a alma do menino que foi enterrado sem os Sacramentos, e suplica que lhe ponham uma cruz. Disseram-me que só um sábio que conheça os livros santos poderá salvar essa alma penada.

Oxana esteve muito tempo doente. Logo que melhorou um bocado, começou a passear horas inteiras sobre a campa do filho. O que ela chorava, meu Deus! Os seus lamentos ouviam-se em toda a floresta. A pobre não se podia consolar.

A Romão era-lhe indiferente a morte da criança; mas tinha dó de Oxana.

Ao vê-la chorar, dizia:

-Cala-te, minha estúpida. Não há de que chorar. Aquele menino morreu; mas pode ser que tenhamos outros, e até talvez melhores do que ele. Porque pode ser que o menino morte não fosse meu...Não sei nada, mas as pessoas murmuram...E o novo com certeza que será meu.





Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp. 104/105
O murmúrio da floresta tornou-se mais forte. O velho levantou a cabeça e escutou.


-O furacão aproxima-se, diz ele. Conheço-o bem. Quando ele começa a rosnar, a puxar pelos pinheiros, a arrancá-los da terra, é uma coisa que faz calafrios. É o demónio da floresta que se enfurece - acrescentou ele, mais baixo.

-Como é que o sabes, avô?

-Ora essa, sei-o muito bem! Compreendo a linguagem das árvores. Vês tu? As árvores também têm medo. O álamo alpino, por exemplo, essa árvore maldita, está sempre a gemer. Mesmo quando não há vento, treme. O pinheiro também. Quando está bom tempo, canta docemente; mas logo que o vento começa a soprar, põe-se a gemer de angústia. Escuta. Eu vejo mal, mas tenho bom ouvido. Agora é a azinheira que começa a queixar-se. O demónio da floresta ataca as azinheiras. É sempre assim antes do furacão.







Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.98
- Bons dias, avô. Não está ninguém em casa?


- Eh! - e o velho fez um gesto negativo com a cabeça. Nem Zakar nem Máximo cá estão. Motria também partiu para a floresta, em busca da vaca. A vaca, provavelmente, extraviou-se. Talvez tenha sido devorada pelos ursos...Não, não está cá ninguém.

-Não faz mal, esperarei; e, enquanto espero, faço-lhe companhia.

-Como queiras.

Enquanto prendo o cavalo a uma azinheira, o velho olha-me com os seus olhos débeis e apagados. É muito, muito velho. Não vê quase nada, e as suas mãos são trémulas.

-Quem és tu, meu rapaz? -pergunta-me ele, depois de eu me ter sentado ao seu lado.

De cada vez que apareço faz idêntica pergunta.

-Ah! Agora caio em mim. É verdade, já me recordo, diz ele, contente, enquanto vai consertando uma velha bota rota - A minha velha cabeça já não conserva memória de nada. É como um crivo: dos que morreram há muito, recordo-me bem, mesmo muito bem; mas da gente nova esqueço-me sempre. Já se vê, como vivo neste mundo há tanto tempo...

-Vive nele assim há tanto tempo?

-Vamos, vamos, que há bastante. Já cá andava quando os franceses aqui vieram para batalhar com o nosso imperador.

-Então já tem visto muito, e já pode contar muita coisa.

O velho olha para mim com estranheza.

-Eu? Que tenho eu visto? Apenas a floresta, sempre rumorosa, seja de noite ou de dia, seja de inverno ou de verão. Tenho passado aqui toda a minha vida com estas árvores, e não tenho dado conta disso. Estou quase à hora da morte; mas às vezes, quando começo a pensar, pergunto a mim mesmo se vivi verdadeiramente ou não. Talvez nunca tenha vivido...





Korolenko in Os murmúrios da floresta. Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.96/97

Memórias De Um Louco

Levai-me para longe deste mundo! Avante Avante! Que nada se veja...

Já não vejo diante de mim o céu formoso. Uma estrela brilha ao longe. Sob a lua, passam bosques com as suas alamedas umbrosas, debaixo de uma neblina azulada. Dum lado, o mar; do outro, a Itália...

Eis as cabanas russas. É a minha casa que se vê à distância? Não é a minha mãi que está à janela? Mãi, mãi! Salva o teu pobre filho. Derrama uma lágrima sobre a sua pobre cabeça doente...Tu vês como o martirizam? Aperta ao teu peito o pobre órfão. Não há no mundo lugar para ele; expulsam-no de toda a parte. _ Mamã, mamã! Tem piedade do teu pobre filho doente...

Sabem que o Bey da Argélia tem uma verruga por baixo do nariz?...


Nikolai Gogol in Contos.Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941, pp.50
'Depressa se vai a primavera

Choram os pássaros e há lágrimas

nos olhos dos peixes' (pp.31)






'As cigarras cantam

sem saberem que é a morte

que as escuta' (pp.40)









'Crepúsculo:

as ervas parecem seguir

os rebanhos que recolhem. (pp.48)



Matsuo Bashô in O gosto solitário do orvalho. Antologia Poética.

Versões de Jorge de Sousa Braga. Assírio & Alvim, 1986

Poema Conjectural

Etiquetas: Haiku, Matsuo Bashô



O doutor Francisco Laprida, assassinado no dia

22 de Setembro de 1829 pelos «montoneros» de

Aldao, pensa antes de morrer:

Zumbem as balas pela tarde última

Há vento e há cinzas sobre o vento,

dispersam-se o dia e a batalha

disforme, e a vitória é dos outros.

Triunfam os bárbaros, os gaúchos.

Eu, que estudei as leis e mais os cânones,

eu, Francisco Narciso de Laprida,

cuja voz declarou a independência

destas cruéis províncias, derrotado,

de sangue e de suor manchado o rosto,

sem esperança nem medo e perdido,

vou para Sul por arrabaldes últimos.

Como aquele capitão do Purgatórioque,

debandando a pé e ensanguentado

o plaino, a morte fez cegar, tombar

lá onde um rio obscuro perde o nome,

assim hei-de eu cair. Hoje é o termo.

A noite lateral de infindos pântanos

espia-me e demora-me. Oiço os cascos

da minha quente morte que me busca

com ginetes, com belfos e com lanças.

Eu que ansiei ser outro, ser um homem

de sentenças, de livros, de ditames,

sob o céu jazerei entre lameiros;

mas endeusa-me o peito inexplicável

um júbilo secreto. Entretanto enfim

o meu destino sul-americano.

A esta fatal tarde me levava

o labirinto múltiplo de passos

que meus dias teceram desde um dia

da meninice. Descobri por fim

a recôndita chave dos meus anos,

a sorte de Francisco de Laprida,

a letra que faltava, essa perfeita

forma que soube Deus desde o princípio.

No espelho desta noite recupero

o meu insuspeitado rosto eterno.

Vai-se fechar o círculo e aguardo.

Pisam meus pés a sombra dessas lanças

que me buscam. A mofa já da morte,

os ginetes, as crinas, os cavalos

adejam sobre mim...Já o primeiro

golpe me fende o peito, o duro ferro,

a faca interior sobre a garganta.

Jorge Luis Borges in Poemas Ecolhidos. Edição bilingue. Trad. e

selecção de Ruy Belo. Dom Quixote, 2003., pp.17/19

A Morte

Para Yvan Goll

A morte é uma flor que só se abre uma vez.

Mas quando abre, nada se abre com ela.

Abre sempre que quer, e fora de estação.

E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes

Deixar-me ser o caule forte da sua alegria.



Paul Celan in A Morte É Uma Flor. Poemas do Espólio.

Trad. João Barrento. Edição Bilingue. Edições Cotovia, Lisboa, 1998., pp.15
Sensação de vazio


Ao despedir-me colhi

uma espiga de trigo (pp.39)





Admirável aquele

cuja vida é um contínuo

relâmpago (pp.51)





Tendo adoecido em viagem

em sonhos vagueio agora

na planície deserta





Matsuo Bashô in O gosto solitário do orvalho. Antologia Poética. Versões de Jorge de Sousa Braga. Assírio & Alvim, 1986
Hoje, o poeta é obrigado a renunciar à sua vocação porque se lhe evidenciou já o seu desespero, porque já reconheceu a sua incapacidade de comunicar. Tempo houve em que ser-se poeta era a mais elevada das vocações; hoje é a mais fútil. E é assim, não porque o mundo se tenha tornado imune à voz do poeta, mas porque ele próprio já não acredita na sua missão divina. Há mais de um século que os poetas andam a cantar fora de tom; chegámos finalmente ao ponto em que ninguém os consegue acompanhar. O berro da bomba continua a fazer sentido, mas os delírios do poeta parecem uma algaraviada. Parecem e são, se, dois biliões de pessoas que há no mundo, só alguns milhares fazem de conta que entendem o que um determinado poeta diz. O culto da arte chega ao fim no momento em que só existe um punhado de eleitos. Nesse momento já não se trata de arte, mas sim da linguagem cifrada duma sociedade secreta devotada à divulgação de um individualismo desprovido de sentido.

Henry Miller in o Tempo dos Assassinos, Um estudo sobre Rimbaud. Trad. Manuela R. Miranda. Hiena Editora, 1985., pp.38

Os murmúrios da floresta

A floresta estava agitada.

Naquela floresta havia sempre um murmúrio, um murmúrio regular, surdo como o eco de sinos longínquos, tranquilo e vago, como uma suave romança sem palavras, como uma recordação do passado. Aquela floresta estava sempre cheia de murmúrios, porque era muito velha e nunca tinha sido violada pelo machado dos lenhadores. Os altos pinheiros seculares erguiam os seus troncos vermelhos, como um exército sombrio, cerrando as copas verdes em espessas abóbadas.

Debaixo destas, tudo era calmo e cheirava a resina. Através do tapete de agulhas verdes, que cobria a terra, cresciam grandes fetos fantásticos, completamente imóveis. Nasciam ervas nos sítios húmidos. Florinhas humildes vergavam de cansadas as suas pesadas cabecitas. Mas nos cimos ouvia-se, incessantemente, sem interrupção, a selva a murmurar, soltando suspiros doloridos. (pp. 95)

Korolenko in Contos. Trad. Fernando Lopes Graça. Edições «Sírius», 1941.
IV Tortura e indústria



Não, isto não é uma prisão. Deve ser uma oficina. Aqui trabalha-se. Não podes deixar de ver grandes ferramentas, guinchos, plataformas elevatórias e potros. Há guindastes em movimento nestes pavilhões, correntes rangem, giram sarilhos e rodas. Ao fundo arde ainda o fogo, o fumo sobe. Parece mesmo que estamos numa forja. Só os pregos além são difíceis de explicar, e as estacas; e aquelas construções de madeira - não sabemos se são andaimes, se patíbulos.



As semelhanças entre os instrumentos de tortura de uma época e os seus

instrumentos técnicos.

Primeiro grau, esmagamento dos polegares em tornos com ranhuras ou pon-

tas rombas: a tortura de Bamberg.

Segundo grau, torniquete violento nos braços, feito com cordões de pêlo, e

torção das pernas: o instrumento de Mecklemburgo.

Terceiro grau, alongamento do corpo no potro ou sobre uma escada de mão,

acompanhado de queimaduras nos flancos, nos braços e nas unhas; a lebre

lardeada.

E assim a tortura se manteve nos tribunais alemães até ao fim do século

XVIII, e mesmo depois.





Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 93
«(...) Todas as suas obras apodreceram e enferrujaram, e ele próprio queimou os seus papéis, desenhos e projectos. Desempenhou um papel importante na história do pão.






IV







Muitas das palavras que utilizou (era construtor de carruagens) desapareceram: lança, tamancos, copa e albas. Teria sido capaz de nos explicar o que é um céu recolhido.





V





...uma espécie que manipula a sua própria evolução por meio de intervenções planificadas nas suas condições de vida e no seu programa genético. A este processo chama-se auto-evolução. (Exemplo: o construtor de carruagens que desaparece enquanto tal ao inventar um carro a vapor. Também o moleiro não se extingue por si próprio.) Desconhece-se o fim último daquela intervenção planificada.





VI





O grão é levado da carrada de taleigos para a moega; daqui passa pelo orifício fundo da moega e corre pelo olho da mó para a caleira; escoa-se da caleira, para ser comprimido entre a mó andadeira e a fixa, cai pelo veio, vai dar ao tremonhado, acaba no limpador, a farinha é levada para a eira, peneirada, passa depois à câmara de mistura, junta-se no silo, passa pela mangueira de enchimento e cai na barrica. O moinho está cheio de moleiros suados; mestres-moleiros, homens com horas de moer, ajudantes; numa roda viva, vão movimentando os carolos, a farinha macia e a áspera, a farinha de primeira, de segunda, de resíduo, a flor-de-farinha, levantam-na e carregam-na, arrumam e transportam.

Depois aparece o inventor e constrói um moinho de onde desaparecem os moleiros. A única agitação no edifício sem vivalma é a das correias transportadoras de alcatruzes, dos monta-cargas, dos alimentadores, dos hélices da moagem: aparelhos pelos quais o grão, ora na horizontal, ora na vertical vai passando de um dispositivo para o outro através da máquina, evitando assim todo o trabalho manual e toda a sujidade.»





Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 121/123

Forma da ausência

XII



Este quarto tornou-se um poço profundo.

O candeeiro é uma estrela pregada na água.

A cama infantil no seu lugar; os lençóis, por agora

lançam reflexos circulares

enquanto à superfície da toalha

as horas lentas, imponderáveis, caem como fetos

de palha,

nela traçando círculos invisíveis. Ninguém fala

no interior - e se falasse ninguém ouviria. Quando

um copo

tomba, cai sem fazer ruído na palma do silêncio.

Não se quebra.

Sozinho, dissolvido da na água, o antigo grito da

separação

torna o poço mais sombrio e mais profundo.

Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.36

Lou

«(...) Esbofeteei-a cegamente. Ela abriu de novo os olhos. Amanhecia e eu via-os brilhar de lágrimas e de raiva; debrucei-me sobre ela; acho que estava a fungar como um animal e ela pôs-se aos berros. Mordi-a em cheio entre as coxas. Tinha a boca cheia dos seus pêlos negros e duros; larguei-a um pouco e depois recomecei mais abaixo onde era mais tenro. Eu nadava no seu perfume, ela espalhara-o também aí, e cerrei os dentes. Tentava pôr-lhe uma mão sobre a boca, mas ela berrava como um porco, gritos de arrepiar. Então cerrei os dentes com todas as minhas forças e cravei-lhos. Senti o sangue esguichar-me na boca e os seus rins agitavam-se apesar das cordas. Tinha a cara cheia de sangue e recuei um pouco sobre os joelhos. Nunca ouvira uma mulher gritar daquela maneira; de repente, reparei que nas minhas cuecas tudo se retesava; isso alvoraçou-me como nunca, mas tive medo que alguém aparecesse. Risquei um fósforo e vi que ela estava a sangrar muito. Por fim, desatei a bater-lhe, primeiro só com o punho direito, no maxilar, senti os dentes a partirem-se-lhe e continuei, queria que ela parasse de gritar. Bati com mais força, e depois recolhi a saia dela, colei-lha contra a boca e sentei-me em cima da sua cabeça. Ela retorcia-se como um verme. Nunca pensei que ela custasse tanto a morrer; fez um movimento tão violento que julguei que o meu antebraço esquerdo ia desprender-se; apercebi-me de que estava agora sob uma fúria tal que seria capaz de a esfolar; então levantei-me para acabar com ela ao pontapé, e calquei-a com todo o meu peso pondo-lhe um sapato de través na garganta. Quando ela deixou de se mexer, fui outra vez tomado pela mesma sensação. Agora tremiam-me os joelhos e tive medo de que fosse agora a minha vez de desmaiar.»









Boris Vian. Irei cuspir-vos nos túmulos. Sob o pseudónimo de Vernon Sullivan. Trad. Maria João Costa Pereira. Relógio D'Água, 2003, p.132/133
«Mas da casca nasce uma concha dura


que protege o corpo como uma carapaça.

Por isso não tenho nada a relatar

da minha vida a não ser

as minhas publicações.



Resumo diário: quatro horas de trabalho, no máximo,

depois da visita às estufas.

Longa sesta, enrolado num cachecol,

no sofá. Muda de roupa. Depois do jantar

alguém toca uma sonata ao piano.



Cedo para a cama. Insónias:

Passava quase sempre mal as noites,

ficava acordado ou sentado na cama.»

Hans Magnus Enzensberger. Mausoléu. Trad. e prefácio de João Barrento. Edições Cotovia, Lisboa, 2004., p. 179
Também possuo uma vida e devo vivê-la. Nada


de vinganças;

que poderia, mais uma morte, arrancar à morte,

sobretudo uma morte violenta? E que poderia

acrescentar à vida? Os anos

passaram. Não sinto ódio; esqueci, talvez?, estou

cansado? Não sei.

Até sinto uma relativa simpatia pela criminosa;

ela mediu abismos imensos,

um grande crescimento fez crescer-lhe os olhos

na obscuridade

e ela vê - vê o inesgotável, o irrealizável, o imu-

tável. Ela vê-me.

Também eu quero ver o assassínio de meu pai na

totalidade apaziguadora da morte,

esquecê-lo na morte completa

que também nos espera. Esta noite revelou-me

a inocência de todos os usurpadores. E todos somos,

de um modo ou outro, usurpadores - estes dos

povos, dos tronos,

aqueles do amor ou da morte; minha irmã

usurpadora da minha única vida; e eu da tua.


Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.66
Esta noite de espera deixa-me uma aberta para


o exterior

e o interior. Não distingo claramente. Talvez

grandes máscaras deterioradas, agrafes metálicos;

as sandálias dos mortos torcem-se na humidade,

movem-se sozinhas como se caminhassem sem pés

- não caminham;

e essa grande rede do banho, quem a teceu?

nó a nó - não se desfaz -, negra - não é a mãe.



Uma sombra imensa alonga-se por cima das ar-

cadas;

uma pedra destaca-se e cai na ravina - no entanto

ninguém caminhou -

e depois nada; e subitamente um ramo quebrado

pelo peso ligeiro do céu. As rãs

saltam, ágeis e mudas, na erva húmida. Silêncio.

No poço caem ratos cor de cinza, afogam-se;

constelações espessas movem-se lentamente; dei-

tam-se fora

coisas que os banquetes abandonam, ânforas, taças,

espelhos e cadeiras.

ossos de animais, liras e diálogos inteligentes. Os

poços nunca enchem.

Dir-se-ia que dedos de fogo, dedos de orvalho

passam sucessivamente pelo nosso peito,

descrevendo círculos inquiridores em torno dos

nossos mamilos

e também nós flutuamos de círculo em círculo,

em torno dum centro

desconhecido, indefinido e no entanto definido;

círculos infindáveis

em torno dum grito mudo, em torno duma facada;

e a faca

mergulha, creio, no nosso coração e este torna-se

o centro

como o poste no meio da eira, na colina,



e em torno os cavalos, as espigas, os malhadores,

os condutores

e as ceifeiras entre as medas, com a cabeça da

lua nos ombros,

ouvindo o relincho dos cavalos até ao extremo

do seu sono,

ouvindo os touros urinar nos salgueiros e nas

silvas

e os pés inumeráveis da centopeia e do cântaro,

o rastejar da serpente tranquila nos olivais

e o crepitar da pedra ardente que se contrai ao

arrefecer.


Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.72/3
Por fim calou-se, a infeliz. Creio ouvir no silêncio


a sua razão,

tão vulnerável no seu furor, tão injustamente

tratada,

com os seus amargos cabelos lançados para os

ombros como a erva dos túmulos,

emparedada na sua acanhada visão da justiça.

Adormeceu talvez,

sonha possivelmente com um lugar inocente, com

animais simples,

casas caiadas de branco cheias com os belos aromas

do pão fresco e das rosas.



Recordo agora - não sei porquê - aquela vaca

que vimos no crepúsculo, num campo da Ática -

lembras-te?

Estava ali, separada da charrua, olhava para o

longe

e com os vapores das narinas embaciadas

o pôr do Sol, púrpura, violeta, dourado; muda e

ferida

nos flancos e no dorso, sob o peso do jugo,

tinha conhecido talvez a negação, a submissão,

a intransigência e a hostilidade, tudo junto.



Sustentava entre os dois cornos

a mais pesada parte do céu, como uma coroa.

Depois

baixou a testa, bebeu a água do regato

lambendo com a língua sangrenta essa outra

língua

fresca da sua imagem de água, como se lambesse

longa e serenamente, maternalmente, inevitavel-

mente,

do exterior a sua ferida interna, como se lambesse

a silenciosa, a grande, a redonda ferida do mundo;

- mata talvez a sede -

só talvez o nosso sangue nos mata a sede - quem

sabe?



Depois ergueu a cabeça da água sem tocar em

nada,

ela própria intacta e calma como um santo;

apenas

entre as suas duas patas enraizadas na ribeira

um pequeno lago de sangue caído dos lábios, man-

tinha-se, mudava de forma,

um lago vermelho que se assemelhava a um postal

e pouco a pouco se alargava e dissolvia; desa-

parecia

como se todo o sangue passasse para uma veia

invisível do mundo,

muito longe, liberto, fácil; por isso

se mantinha calma; como se tivesse sabido

que o nosso sangue não se perde,

nada, nada se perde neste grande nada,

este inconsolável, este impiedoso, este incompa-

rável,

tão doce, tão consolador, tão nada.



Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.74/75/76
[...]vós que dormis, 'stais-me acordados cá dentro do peito,


Na alma parente repousa a vossa imagem que foge.

E mais vivos viveis vós ali, onde a alegria do espírito

Divino a todos os que envelhecem, a todos os mortos rejuvenesce.



Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991.
Hölderlin



Detença, mesmo com as coisas mais íntimas,

não nos é dada; das imagens

cumpridas o espírito arroja-se repentino de mais para as que se



[querem cumprir; lagos

há-os só no eterno. Aqui, é a queda

o mais próprio. Do sentimento sabido

precipitar-nos para baixo para o pressentido, mais além.



A ti, ó magnífico Invocador, a ti toda uma vida

te foi dada a instante imagem, e, quando a exprimias,

o verso fechava-se como um destino, havia uma morte

mesmo no mais suave, e tu entravas nela; mas o deus

que ia à tua frente guiava-te para lá, pra fora dela.



Ó tu espírito errante, o mais errante! Como elas todas

moram no poema quente, agasalhadas, e ficam

longamente na comparação estreita. Partícipes. Só tu

vagueias como a Lua. E em baixo aclara-se e escurece

a tua paisagem nocturna, santamente assustada,

que tu sentes em despedidas. Ninguém

a deu mais sublimemente, a restituiu ao Todo

mais inteira, menos pobre. Assim também

brincaste teu jogo santo por anos já não contados

com a infinita ventura, como se ela não fosse interior, mas jazesse

por aí, pertença de ninguém, na macia

relva da Terra, abandonada por crianças divinas.

Ai, o por que os Altíssimos anseiam, puseste-o tu, sem desejo,

pedra sobre pedra: e ficou. Mas mesmo a sua queda

te não perturbaria.



Se um tal, eterno, houve um dia, porque é que nós

desconfiamos ainda do terrestre? em vez de no transitório

seriamente aprender os sentimentos de qualquer

inclinação, futura no espaço?



(Irschenhausen, Setembro de 1914)





Rainer Maria Rilke





in Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 9

As mulheres

As mulheres estão muito distantes. As suas rou-

pas, o cheiro de «Boa Noite».

Pousam o pão na mesa para que não se sinta

como estão ausentes.

É então que nos sentimos culpados. Levantamo-nos

da cadeira e dizemos:

«Estás muito cansada hoje » ou então «Deixa, eu

acendo o candeeiro».

Quando pegamos no fósforo ela volta-se lenta-

mente

e dirige-se para a cozinha com uma aplicação

inexplicável. As costas

são uma pequena colina de amargura carregada

de mortos sem fim,

os mortos da família, os mortos dela e a nossa

morte.

Ouvem-se-lhe os passos a afastar latas velhas,

ouvem-se as travessas a chorar na banca, depois

ouve-se

o comboio que transporta os soldados para a

frente.





Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.85

História

Aconteça o que acontecer, aqui fico - murmurou


ele.

A margem é imensa, as pedras

alteram a sua cor à passagem da hora.

Se contemplas a água, logo após o crepúsculo,

verás o último filho de Tiestes

sem espada, sem coroa, apenas

no flanco direito a cicatriz duma estrela.

Quanto ao resto dir-se-á que estava escrito

o amor, o massacre e o regresso,

o poder efémero, a ausência de descendentes,

e a minúscula cruz de ferro

pendurada num fio, nessa mesma noite,

e pisada no solo pelos cascos dos cavalos.




Yannis Ritsos. poemas. Selecção e Trad. de Egito Gonçalves. Prefácio de Carlos Porto. 1ª ed. Fevereiro, 1984. Editora Limiar., p.99
«(...) Não ganharias nada em deixar o teu círculo e na verdade o que perderias em permanecer dentro dele? A isto limito-me a responder: também preferia deixar-me moer com pancadas no círculo a ser aquele que bate no exterior, mas onde diabo está o círculo? Houve um tempo em que eu o via no solo como traçado por salpicos de cal, mas presentemente apenas flutua em torno de mim, que digo, nem flutua sequer»






Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 27
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Domingo, 19 de Julho de 1910



«Durmo, acordo, readormeço, reacordo, miserável vida.

Quando penso nisso, é-me necessário confessar que a minha educação me prejudicou muito por várias razões.»


Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 28
Princípios de Novembro de 1910



«Mas esquecer não é a palavra que convém aqui...A memória deste homem não sofreu mais do que a sua força de imaginação. Quanto a remover montanhas, nem a sua memória nem a sua imaginação o podem; este homem, é necessário reconhecê-lo, mantém-se fora do nosso povo, fora da nossa humanidade, não cessa de ser esfomeado, só o instante lhe pertence, o instante ininterrupto de calamidade, instante que não é seguido de nenhuma faísca, de nenhum momento de reconforto; há sempre uma mesma coisa: as suas dores, mas no mundo inteiro nenhuma outra coisa que se possa fazer passar por remédio, não há mais solo do que aquele que podem cobrir as suas mãos (....)»


Franz Kafka. Antologia De Páginas Íntimas. Selecção, prefácio e tradução de Alfredo Margarido, 3ª ed. Guimarães Editores, Lisboa, 2002, p. 29
«- Como podes tu, meu imbecil, comparar-te a Varlamov.

-Não sou tão imbecil que me compare com Varlamov -respondeu Salomão, examinando os seus interlocutores com olhar irónico. - Varlamov bem quer ser russo, mas, no fundo do seu coração, é um porco judeu. A vida dele é o dinheiro e os benefícios que ele lhe traz, enquanto eu queimei todo o meu dinheiro na lareira. Nem tenho necessidade de dinheiro, nem de terras, nem de carneiros e também não tenho necessidade de que tenham medo de mim, nem que se descubram à minha passagem. Então eu sou mais inteligente que o vosso Varlamov e pareço-me mais com um ser humano do que ele.»



Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 40
« - À noite não dorme, só pensa, pensa, pensa; mas em quê só Deus é que o sabe. Se nos aproximamos dele, enfurece-se e ri. Nem de mim gosta...Não deseja nada. Quando morreu o nosso pai, deixou-nos seis mil rublos a cada um. Eu comprei esta estalagem, casei e agora tenho filhos. Ele queimou o dinheiro todo na lareira. Que dó! Porque é que o queimou? Se não o queria, desse-mo, mas agora queimá-lo...»


Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 42

A estepe

«Durante as tardes e as noites de Julho já não se ouvem as codornizes, nem as galinholas, nem o rouxinol, nas ravinas da floresta; as flores já não embalsamam o ar. No entanto, a estepe continua ainda muito bela e cheia de vida. Basta que o Sol se ponha e a terra mergulhe na sombra para que a tristeza do dia seja esquecida e tudo seja perdoado; a estepe suspira suavemente pelo seu grande peito. A obscuridade da noite esconde o seu estigma, a erva anima-se numa alegre confusão juvenil que durante o dia ela nunca consegue ter; os estalidos, os assobios, as arranhadelas, os baixos, os tenores e os sopranos da estepe, tudo se funde num zumbido contínuo que convida à saudade e à melancolia. Esta ressonância adormece como uma canção de embalar; rola-se através da estepe e sente-se que vai adormecer, mas de repente é o grito inquieto e sacudido dum pássaro que ainda não adormeceu, ou num barulho indefinível semelhante a uma voz humana, como um «aaah» de espanto, e lá se vai o sono das pálpebras.»


Anton Tchekoff. A Estepe. Livros de Bolso/ Europa-América. 2ª ed.Trad. Maria do Carmo Santos, 2003., p. 46/47
«Feriu-me singularmente a atenção o verdadeiro modo de ser do público de uma grande cidade. Vive numa constante vertigem do lucro e do gozo, e aquilo a que nós chamamos atmosfera (Stimmung) não se pode criar nem comunicar; todos os prazeres, mesmo o teatro, devem apenas distrair, e a grande inclinação do público ledor de jornais e romances provém de que aqueles, sempre, e estes muitas vezes, trazem distracção à distracção. - Suponho mesmo ter notado uma espécie de timidez em face das produções poéticas, pelo menos enquanto poéticas, timidez que, por essas mesmas razões, me parece muito natural. A poesia requer, exige mesmo, concentração; isola o homem contra a sua vontade, torna-se por vezes molesta e importuna nas suas exigências e é no largo mundo (para não dizer no grande mundo) tão incómoda como uma amante fiel.»



Goethe, carta a 9 de Agosto de 1797

in Friedrich Hölderlin. Poemas. Prefácio, Selecção e trad. Paulo Quintela. Relógio D' Água, Lisboa, 1991, p. 19
«Tive uma infância muito dura, muito difícil. Uma família que se desintegrou muito facilmente num lugar que foi totalmente destruído. Desde o meu pai e a minha mãe, inclusive todos os irmãos de meu pai foram assassinados. Vivi, portanto, numa zona devastada. Não apenas de devassidão humana, mas devassidão geográfica. Nunca encontrei até à data uma lógica que explique tudo isto. Não se pode atribuir à Revolução. Foi mais uma coisa atávica, uma coisa de destino, uma coisa ilógica. Até hoje ainda não encontrei um ponto de apoio que me mostre porque nesta minha família sucederam nessa forma, e tão sistematicamente, essa série de assassinatos e de crueldades.»






in Los muertos no tienen ni tiempo ni espacio, diálogo com Juan Rulfo

As flores

«Há escritores que se servem delas pelo simples prestígio dos seus nomes, sem prestarem muita atenção ao facto de corresponderem, ou não, ao lugar e à estação do ano. De modo que não é raro encontrar bons livros onde florescem gerânios na praia e túlipas na neve. Em Pedro Páramo, onde é impossível estabelecer de uma forma definitiva onde está a linha de demarcação entre os mortos e os vivos, as exactidões são ainda mais quiméricas. Ninguém pode saber, na realidade, quanto duram os anos da morte.»



Gabriel García Márquez in Juan Rulfo, Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 14

Pavese

Terra vermelha, terra negra

tu vens do mar,

do verde requeimado

onde há palavras

antigas e fadiga sanguínea

e gerânios entre as pedras -

não sabes o que em ti

trazes de mar palavras e fadiga,

tu rica como uma lembrança,

como o campo despido,

tu áspera e dulcíssima

palavra, antiga como o sangue

recolhido nos olhos;

jovem, como um fruto

que é lembrança e estação -

a respiração repousa

sob o céu de agosto,

as azeitonas do teu

olhar suavizam

o mar e tu vives revives

sem surpresa, certa

como a terra, escura

como a terra, moinho

de estações e de sonhos

que ao luar se revela

antiquíssimo, como

as mãos de tua mãe,

a concha da braseira.

Tu és terra e a morte.

A tua estação é a sombra

e o silêncio. Nada

vive mais distante

da aurora que tu.

Quando pareces despertar

és dor apenas,

tem-la nos olhos e no sangue

mas tu não sentes. Vives

como vive uma pedra,

como a terra dura.

Vestem-te sonhos

movimentos soluços

que tu ignoras. Como a água

de um lago a dor

tremula e envolve-te.

Há círculos sobre a água.

Tu deixa-los desvanecer.

Tu és a terra e a morte.

Virá a morte e terá os teus olhos

- esta morte que nos acompanha

de manhã à noite, insone,

surda, como um velho remorso

ou um vício absurdo. Os teus olhos

serão uma palavra vã,

um grito mudo, um silêncio.

Assim os vês todas as manhãs

quando sobre ti mesma no espelho

te inclinas. Ó minha cara esperança,

nesse dia saberemos nós também

que tu és vida e és o nada.

Para todos a morte tem um olhar.

Virá a morte e terá os teus olhos.

Será como abandonar um vício,

como ver surgir no espelho

em rosto morto, como

escutar uns lábios fechados.

Mudos, desceremos no abismo.

Cesare Pavese


Cesare Pavese in Dez Poetas Italianos Contemporâneos em selecção, tradução e notas de Albano Martins