terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Apreensões (1860)

Quando as nuvens flutuando sobre recuados montes

Tempestuosas ondulam no tardio Outono sombrio,

E o horror invade o ensopado vale,

E o pináculo cai estrondoso na cidade,

Medito nas dores do meu país -

A tempestade irrompendo da vastidão do Tempo

Na mais bela esperança do mundo ao mais ignóbil crime do homem

(unida.



O lado obscuro da Natureza agora atento -

(Ah, exclamação optimista de desencanto plena) -

Uma criança pode ler o taciturno cume

D´aquela solitária e negra montanha.

Com brados as correntes descem os desfiladeiros,

E tempestades formam-se sob a tempestade por nós sentida:

A cicuta agita-se na viga, o carvalho na quilha.



Herman Melville

in Poemas

Assírio & Alvim, 2009

Tradução de Mário Avelar

O Temor da Morte

I



Que a morte me desmembre em outro, e eu fique

Ou o nada do nada ou o de tudo

E acabo enfim esta consciência oca

Que de existir me resta.



Sinto um tropel esfuziante e quente

De propósitos-sombras, e de impulsos

Transbordando do cálix da consciência

Para cima da vida...



II



....só um sentimento

De desejar eterna inquietação,

Ambição vaga de fechar os olhos

E vaga esp'rança de não mais abri-los.

Ânsia cansada de não mais viver;

Meu cérebro esvaído não lamenta

Nem sabe lamentar. Tumultuárias

Ideias mistas do meu ser antigo

E deste, surgem e desaparecem

Sem deixar rastos à compreensão.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...



Já deslumbradas, vãs, incoerentes

Amargas,[vagas] desorganizações

Que nem deixam sofrer. Vem pois, oh Morte!

Sinto-te os passos!Sinto-te! O teu seio

Deve ser suave e ouvir o teu coração

Como uma melodia estranha e vaga

Que enleva até ao sono e passa o sono.

Nada. Já nada [passa] - nada, nada...

Vai-te, Vida!



III



Ah, o horror de morrer!

E encontrar o mistério frente a frente

Sem poder evitá-lo, sem poder...



IV



Gela-me a ideia de que a morte seja

O encontrar o mistério face a face

E conhecê-lo. Por mais mal que seja

A vida e o mistério de a viver



(...)



Fernando Pessoa

in Poemas Dramáticos

Edições Ática

O Fanal

Aqui, onde entre mares cresceu a ilha,

pedra e ara súbito como torre erguida,

aqui ascende sob um negro céu

Zaratustra os seus fogos das alturas,-

fanal para navegantes sem rumo,

ponto de interrogação para os que têm resposta...



Esta chama de ventre esbranquiçado

-sua cobiça lança línguas a distâncias frias,

dobra o pescoço para alturas mais puras -

cobra erguida a pino, de impaciência:

este sinal o pus eu em frente a mim.



A minha própria alma é esta chama:

insaciável de distâncias novas,

lança ao alto, ao alto o seu ardor silente.

Porque fugira Zaratustra dos bichos e dos homens?

porque se escapou de repente de toda a terra firme?



Seis solidões conhece ele já -,

mas o seu próprio mar não lhe era solitário bastante,

a ilha deixou-o subir, sobre o monte ele se fez chama,

a uma sétima solidão

lança buscando agora o seu anzol por sobre a fonte.



Navegantes sem rumo! Destroços de astros velhos!

Ó mares de futuro! Ó céus inexplorados!

Lanço agora o anzol a tudo o que é solitário:

dai resposta à impaciência da chama,

agarrai para mim, pescador nos altos montes,

a minha sétima última solidão! -



Friedrich Nietzsche (1844-1900) in Rosa Do Mundo 2001 poemas para o futuro

2. ed. Assírio & Alvim, 2001

estação

Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te

vou perdendo a noção desta subtileza.

Aqui chegado até eu venho ver se me apareço

e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho



Muita vez vim esperar-te e não houve chegada

De outras, esperei-me eu e não apareci

embora bem procurado entre os mais que passavam.

Se algum de nós vier hoje é já bastante

como comboio e como subtileza

Que dê o nome e espere. Talvez apareça



Mário Cesariny

in Pena Capital I

Assírio & Alvim, 2ª ed., 199estação



Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te

vou perdendo a noção desta subtileza.

Aqui chegado até eu venho ver se me apareço

e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho



Muita vez vim esperar-te e não houve chegada

De outras, esperei-me eu e não apareci

embora bem procurado entre os mais que passavam.

Se algum de nós vier hoje é já bastante

como comboio e como subtileza

Que dê o nome e espere. Talvez apareça



Mário Cesariny

in Pena Capital I

Assírio & Alvim, 2ª ed., 199
I

Celebro-me e canto-me,


E aquilo que assumo tu deves assumir,

Pois cada átomo que a mim pertence a ti pertence também.



Vagueio e convido a minha alma,

À vontade vagueio e inclino-me a observar a erva do Verão.

A minha língua, cada átomo do meu sangue, composto deste solo, deste ar,

Aqui nascido de pais aqui nascido de outros pais aqui nascido, e dos seus

pais também

Eu, aos trinta e sete anos, de perfeita saúde começo,

Esperando que só a morte me faça parar.



Suspensos os credos e as escolas,

Retiro-me por certo tempo, deles saturado mas não esquecido,

Sou o porto do bem e do mal, e seja como for falo,

Natureza sem obstáculos com a sua energia original.





Walt Whitman

in Canto de Mim Mesmo

Assírio & Alvim, 1999
XXVI







Agora só me resta ouvir,

Para juntar o que oiço a este canto, para deixar que os sons contribuam para

ele.



Oiço bravuras de pássaros, o rumor do trigo que cresce, o crepitar das

chamas, o crepitar da lenha com que cozinho,

Oiço o som que amo, o som da voz humana,

Oiço todos os sons, juntos, combinados, fundidos ou seguindo-se,

Sons da cidade e sons fora da cidade, sons do dia e da noite,

Jovens conversando com quem gostam, o alto risco dos trabalhadores quando

almoçam,

Os irados sons da amizade quebrada, a voz débil dos doentes,

O juiz com as mãos agarradas à secretária, com os lábios pálidos ditando uma

sentença de morte,

As elevadas vozes dos estivadores descarregando os navios junto ao molhe,

o refrão dos que levantam a âncora,

As sirenes de alarme que tocam, o grito de fogo, o zumbido imediato dos

motores de dos carros dos bombeiros com as sirenes e as luzes de

cores,

O silvo do vapor, o sólido rodar da caravana de carroças que se aproximam,

A marcha lenta tocada à cabeça do grupo que avança aos pares,

(Vão a algum funeral, as bandeiras estão cobertas de musselina negra).



Oiço o violoncelo, (é o lamento de um coração jovem),

Oiço a corneta de chaves penetrando velozmente nos meus ouvidos,

Fazendo estremecer o meu ventre e o meu peito num doce espasmo.



Oiço o coro da ópera,

Ah, isto sim, é música - isto está em harmonia comigo.



Grandiosa e fresca como a criação enche-me a voz do tenor,

A órbita flexível da sua boca derrama-se e sacia-me.



Oiço a perfeita soprano (que vale o meu canto comparado com o seu?)

A orquestra conduz-me em círculos mais largos que os de Urano,

Desperta-me ardores de que nunca suspeitara,

Faz-me navegar, tocar águas com os pés nus, as ondas que os lambem

indolentemente,

O granizo bate-me com toda a fúria, perco o ânimo,

Mergulho na doce morfina, estrangulam-me os falsos sinais da morte,

Por fim, de novo me ergo para sentir o enigma dos enigmas,

Isso a que chamamos Ser.





Walt Whitman

in Canto de Mim Mesmo

Assírio & Alvim, 1999
Etiquetas: fotografia, Fotogrfia DAVID HILLIARD


XX



Quem vem lá, ansioso, rude, místico, nu?

Como retiro forças da carne que me alimenta?



Em todo o caso, o que é um homem? Quem sou eu? Quem és tu?



Tudo o que assinalo meu chamarás teu,

Ou então perderias tempo a escutar-me.



Não lamento o que o mundo lamenta,

Que os meses são vazios e a terra apenas lodoçal e imundície.



O queixume e a humilhação juntam-se aos remédios para os inválidos, o

conformismo vai até à quarta geração,

Eu uso o chapéu como me apetece, dentro ou fora de casa.



Porque é que devia rezar? E venerar e ser cerimonioso?



Tendo examinado os estratos, analisando-os ao pormenor, consultando os

mestres, calculando com rigor,

Não encontro gordura mais agradável do que a que tenho agarrada aos meus

próprios ossos.



Em toda a gente vejo-me a mim mesmo, ninguém é mais do que eu, nem um

grão de cereal menos,

E o bem e o mal que digo de mim digo deles.



Sei que sou sólido e são,

Os objectos do universo convergem eternamente para mim,

Tudo foi escrito para mim e devo decifrar o seu sentido.

Sei que sou imortal,

Sei que esta minha órbita não pode ser traçada pelo compasso de um

carpinteiro,

Sei que não me apagarei como o fogo do archote que uma criança leva pela noite.



Sei que sou majestoso,

Não atormento o espírito para quem se defenda ou explique,

Sei que as leis elementares nunca se desculpam,

(No fim de contas, reconheço que o meu orgulho não é mais alto que o nível

onde edifico a minha casa).



Existo como sou, e isso basta,

Se mais ninguém no mundo o sabe fico satisfeito,

E se todos e cada um o sabem fico satisfeito.



Há um mundo que o sabe e é sem dúvida o mais vasto para mim, e esse sou

eu próprio,

E se o reconheço hoje ou dentro de dez mil ou dez milhões de anos,

Alegremente o posso aceitar agora, ou alegremente posso esperar.



O apoio do meu pé é entalhado em granito,

Rio-me daquilo que chamas dissolução,

E conheço a amplitude do tempo.



Walt Whitman

in Canto de Mim Mesmo

Assírio & Alvim, 1999
«Todos os impulsos, as emoções, as manifestações de vontades imagináveis, todas estas contingências da alma humana lançadas pela razão na imensidade negativa da noção de «sentimento», podem ser expressas por meio da multidão infinita das melodias possíveis, mas sempre exclusivamente na generalidade da forma pura, sem a substância, sempre somente como coisa em si, e não como aparência, de algum modo como a alma da aparência, incorporalmente. Esta relação íntima, que existe entre a música e a verdadeira essência de todas as coisas, explica-nos também por que, quando com pretexto de uma cena, de uma acção, de um evento, de um ambiente qualquer, ressoa uma música adequada, esta parece revelar-nos a significação mais secreta e afirmar-se como o mais exacto e mais luminoso dos comentários; compreendemos igualmente como é que aquele que se abandona sem reservas à impressão produzida por uma sinfonia julga ver desenrolar-se perante os seus olhos todos os acontecimentos imagináveis da vida e do mundo.»




Nietzsche, 1872

in A Origem da Tragédia

Guimarães Editores, p.130

A Máscara

Quarta-feira, 16 de Setembro de 2009

«Tira essa máscara de ouro ardente

E olhos de esmeralda.»

«Oh não, meu amor, atreves-te demasiado

A ver se um coração é selvagem e sábio,

Sem ser frio.»



«Só quero ver o que houver para ver,

O amor ou o engano.»

«Foi a máscara o que ocupou a tua mente,

E fez bater o teu coração,

Não o que está por detrás.»



«Mas a não ser que sejas minha inimiga

Devo inquirir.»

«Oh não, meu amor, deixa tudo ser como é;

Que importa, se entretanto houver fogo

Em ti e em mim?»



W. B. Yeats

in Uma Antologia

Assírio & Alvim, 1996
Segunda-feira, 21 de Setembro de 2009


Frases



Quando o mundo estiver reduzido a

um só bosque negro para os nossos quatro

olhos espantados - a uma praia para duas

crianças fiéis - a uma casa musical para

a nossa clara simpatia - encontrar-vos-ei.



Quando só haja aqui um velho solitário,

belo e calmo, rodeado de um «luxo

inaudito» - a vossos pés estarei.



Quando eu assumir a vossa ânsia

toda - seja eu aquela que vos estran-

gula - e estrangular-vos-ei.





------



Quando somos muito fortes - quem

foge?muito alegres - quem cai no ridí-

culo? Quando somos muito maus, que

fariam de nós?



Alindai-vos, dançai, desatai a rir.- Eu

nunca poderia atirar o Amor pela janela.



(...)



Jean-Arthur Rimbaud

in Iluminações

Estúdios Cor

Tradução Mário Cesariny
«O amarrador de Chihuahua recolheu o seu galo maltratado. Soprou-lhe o bico para o descongestionar e tentou que o animal se aguentasse nas patas. Mas ao ver que voltava a cair enroscado, como uma bola de penas, disse:


- Não há mais remédio senão liquidá-lo.

E já estava disposto a torcer-lhe o pescoço quando Dionisio Pinzón se atreveu a contê-lo:

- Não o mate - disse-lhe. - Pode curar-se e servirá, nem que seja para criação.

O de Chihuahua riu, trocista, e atirou o galo a Dionisio Pinzón como quem se desfaz de um trapo sujo. Dionisio alcançou-o, apanhando-o em pleno voo. Aconchegou-o nos seus braços com cuidado, quase com ternura e retirou-se com ele da cercadura.

Ao chegar a casa, fez um buraco debaixo da telha vã e, auxiliado pela mãe, enterrou ali o galo, deixando-lhe apenas a cabeça de fora.»



Juan Rulfo. O Galo de Ouro in Obra Reunida. Trad. Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues, Virgílio Tenreiro Viseu. Cavalo de ferro.1ª ed., 2010, p. 310

MUSÉE DES BEAUX ARTS

Acerca do sofrimento, nunca se enganaram

Os Velhos Mestres: quão bem entenderam

A condição humana; como está presente

Enquanto os demais comem ou abrem uma janela ou seguem monotonamente a caminhar;

Como, enquanto os velhos esperam reverente e apaixonadamente

Pelo miraculoso nascimento, deve sempre haver

Crianças que não queriam especialmente que acontecesse, patinando

Num lago na orla da floresta:

Eles nunca esqueceram

Que até o mais terrível martírio tem que seguir o seu curso,

A um canto, custe o que custar, nalgum local descuidado

Onde os canídeos acorrem com suas vidas de cão, e o cavalo do torturador

Coça o seu inocente traseiro atrás de uma árvore.

No Ícaro de Brueghel, por exemplo: como tudo se afastaOciosamente do desastre; o lavrador poderá

Ter ouvido o splash, o grito desamparado,

Mas para ele não era um importante fracasso; o sol brilhou

Como devia sobre as pernas brancas que desapareceram na verde

Água; e o frágil e grandioso navio que deve ter visto

Algo de espantoso, um rapaz caindo do céu,

Tinha um destino para atender e afastou-se calmamente.

W.H Auden