segunda-feira, 18 de maio de 2020

O sal da língua






Escuta, escuta: tenho ainda

uma coisa a dizer.

Não é importante, eu sei, não vai

salvar o mundo, não mudará

a vida de ninguém - mas quem

é hoje capaz de salvar o mundo

ou apenas mudar o sentido

da vida de alguém?

Escuta-me, não te demoro.

É coisa pouca, como a chuvinha

que vem vindo devagar.

São três, quatro palavras, pouco

mais. Palavras que te quero confiar,

para que não se extinga o seu lume,

o seu lume breve.

Palavras que muito amei,

que talvez ame ainda.

Elas são a casa, o sal da língua.

Eugénio de Andrade


"Comunistas. Até então eu nunca me importara com comunistas. Aliás, nem sabia direito quem eram. Associava-os vagamente a assassinatos, violência, fome, Cuba, China... Pelo que o meu pai falava, eles deviam estar a ponto de dominar o país. Aí então iriam fechar as igrejas, dividir nossas casas com vagabundos, implantar uma feroz disciplina. Não me agradava sobretudo este último aspecto. Dividir a casa com vagabundos? O único vagabundo que eu conhecia – e o único da cidade inteira – era seu Melquides, o homem do saco de minha infância, que dormia de favor nos sítios das redondezas, nos fundos da olaria, na porta da igreja, debaixo da marquise do cartório, que carpia terrenos ou varria calçadas em troca de um prato de comida, que dispunha de um arsenal incrível de causos absurdos com os quais fazia gargalhar a piazada na praça da cidade, agora que eu, crescido, via que ele não era nenhum bicho-papão. Se ele tomasse um bom banho e tirasse aquela craca do corpo, eu até que não me importaria em dividir a casa com ele. E quanto a fechar igrejas, eu até achava bom. Aborrecia-me na missa aos domingos e não adiantara nada, por conta do Concílio Vaticano II, a liturgia ter passado a ser em vernáculo. Enfim, os comunistas não eram uma grande ameaça para mim. Mas o mesmo não se podia falar de meu pai, que vira as reformas de base propostas pelo presidente João Goulart como a porta de entrada do bolchevismo. Na cidade, graças a Deus, não houve nenhuma Marcha da Família com Deus pela Liberdade, mas se realizaram algumas fastidiosas vigílias na igreja matriz às quais o meu pai me levara arrastado. De ouvido grudado no velho rádio valvulado, ele acompanhava os sermões do padre Peyton e os programas do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Assim, foi um alívio para ele quando, no dia 31 de março, ouviu que as tropas do general Olympio Mourão Filho marchavam de Juiz de Fora rumo ao Rio de Janeiro. Chegou a se emocionar com as marchas e dobrados militares que infestaram as rádios por um tempo. Para mim até que não foi mal: três dias de recesso escolar. Tirando um ou outro professor desligado da escola, nem minha rotina nem a da cidade sofreram alteração relevante. Agora, conversando com Adrian, meus olhos se abriam: descobria que o mundo, para além dos estreitos limites daquela cidadezinha, estava dividido entre progressistas e reacionários, oprimidos e opressores, aqueles que lutavam pelo avanço da humanidade e aqueles que se serviam de todos os estratagemas para detê-lo – e os milicos não estavam entre os primeiros."

Otto Leopold Winck.  De "Que fim levaram todas as flores":

Constituição francesa de 1793


"Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres".

Está difícil acompanhar todas as falas e besteiras do Bolsonaro e do Mourão por dia


"Está difícil acompanhar todas as falas e besteiras do Bolsonaro e do Mourão por dia. Estão levando uma surra do coronavírus e na linguagem militar, a única em que suas limitadas mentes captam, não podem mais avançar e nem recuar porque estão sendo batidos juntos com seus empresários e parlamentares de direita, de maneira contundente. Se pensam que seriam Pinochet em 73, Videla em 76, a junta de 69, esqueçam porque a história acontece como tragédia e se repete como farsa. O golpe militar já foi dado em 2016 com Villas Boas e os togados, agora só lhes resta a administração final da massa falida deste mesmo golpe. O que eu escrevo há tempos, a atual geração de direita sentirá saudades da queda livre do general Figueiredo comparada com a queda dos atuais debi e lóide pela própria força da gravidade deles, sem maiores forças externas além da própria incompetência e burrice deles próprios, após serem derrotados pelo coronavírus em questão de tempo. O bolsonarismo será a Malvinas da direita militar brasileira, como já escreveram e pode virar até mesmo um Stalingrado deles, cairão pela própria pretensão de superioridade quando já estão completamente cercados e na defensiva, sem opções."
Ricardo Costa de Oliveira


"Durante muito tempo tomei minha pena por uma espada: agora, conheço nossa impotência. Não importa: faço e farei livros; são necessários; sempre servem, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, ela não justifica. Mas é um produto do homem: ele se projeta, se reconhece nela; só este espelho crítico lhe oferece a própria imagem."
Jean Paul Sartre


"Num entardecer lilás caminhei com todos os músculos doloridos entre as luzes da 27 com a Welton no bairro negro de Denver, desejando ser um negro, sentindo que o melhor que o mundo branco tinha a me oferecer não era êxtase suficiente para mim, não era vida suficiente, nem alegria, excitação, escuridão, música, não era noite o suficiente. Parei num pequeno quiosque onde um homem vendia chili apimentado em embalagens de papel; comprei alguns e comi percorrendo ruas escuras e misteriosas. Desejava ser um mexicano de Denver, ou mesmo um pobre japonês sobrecarregado de trabalho, qualquer coisa menos aquilo que eu tão aterradoramente era, um 'branco' desiludido."
Jack Kerouac, 'On The Road'

Parem o Brasil que eu quero descer!



"Até anteontem eu tinha sido poupado do conhecimento da existência de Italo Marsili. É um psiquiatra que ganhou certa notoriedade nos círculos da extrema-direita mais desvairada, em particular no olavocatolicismo. Num episódio que causou reboliço, mas que tinha passado batido para mim, ele se gabou que tinha "curado" um pedófilo mandando-o procurar prostitutas com aspecto infantil.
Acho que isso basta para ver a laia do sujeito.
Agora, ele, que se autointitula "o médico mais famoso do Brasil", o que por si só já indica um distúrbio de autoimagem meio sério, está em campanha para ser o novo ministro da Saúde. Alardeia sua lealdade canina a Bolsonaro como principal atributo. É uma palhaçada, claro - nem Bolsonaro terá coragem de colocar um clone de Weintraub no Ministério da Saúde em meio à pandemia. Mas ganhou reforço de olavetes, imagino que também de alguns robôs, e chegou aos trending topics do Twitter.
Supus que ele tinha um currículo pífio, como é a regra com esse pessoal. Mas não. Tá lá no Lattes: ele não apenas assistiu a várias palestras como morou com Olavo na Virgínia. Morou! Sob o mesmo teto!
Eu entendo a lógica: co-habitação = osmose. Só não sei como isso o credencia para ministro da Saúde. Se ele estivesse buscando um cargo nas áreas de astrologia, picaretagem ou mau-caratismo, aí sim."
Luis Felipe Miguel