quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Cuentos del espejo

“El ideal de blancura implicó someter, a la inmensa mayoría de los peruanos, a la vergüenza y el resentimiento”



Gonzalo Portocarrero, Sociólogo – El Comercio

Durante mucho tiempo la exploración autobiográfica fue una empresa tabú en nuestro país. Hay muchos factores que podrían explicar esta situación pero el más importante es el rechazo a sí mismo, la vergüenza de tener antepasados indígenas. O sea, la dificultad para aceptar que, en definitiva, no somos lo que se nos enseñó a desear. Y resulta que ese deseo es tan potente que una parte nuestra queda rechazada, y, así, herida, se arrincona en una oscuridad resentida. Y se recorta la plenitud de nuestra expresión. De allí que, en el contexto latinoamericano, se acuñara el estereotipo del peruano como reservado y poco expresivo. Pero pese al predominio del deseo de ser blanco, la sociedad peruana es fundamentalmente mestiza. Entonces, el choque entre el deseo y la realidad fue parcialmente amortiguado a través de una redefinición de lo blanco. De ahí que se dijera “el blanco peruano es amarcigado”. Es decir, la gente mestiza clara, y no tan clara, podría pasar por blanca, de tener dinero o educación. La ampliación del espectro de lo blanco implica un pacto para ocultar las raíces del “amarcigamiento”. Es decir, para ignorar a los ascendientes indios y negros que ensombrecen el idealizado color blanco, el color reputado como de “mejor calidad”.

Es lógico entonces que los peruanos que empezaron a hablar de sí mismos hayan sido los que tienen sus “papeles en regla”, aquellos que representan la concreción del anhelo de blancura que marca a la sociedad peruana. Podían explorar sus orígenes sin temor. Y, más todavía, si a la “corrección” del color se agregaba el dinero, la educación y la resonancia de un linaje socialmente prestigioso. Víctor Andrés Belaunde en sus memorias construye el mito de Arequipa como la “ciudad blanca”, no solo por color de la piedra sillar con la que se fabrican sus construcciones, sino también por la predominancia de la raza blanca. El corazón de Arequipa es entonces el patriciado. Numerosas familias que resistieron el mestizaje y que conservaron un sentido de valor y dignidad gracias a la endogamia que permitió una cierta homogeneidad social y racial.

El ideal de blancura implicó someter, a la inmensa mayoría de los peruanos, a la vergüenza y el resentimiento. Mariátegui, por ejemplo, fue rechazado por lo incierto de sus orígenes. De la amargura lo salvó, sin embargo, su lucidez y generosidad. De otro lado, Arguedas se pensaba a sí mismo, racialmente, como blanco. Identidad que le era atribuida por su calidad de misti, o señor, en el mundo andino. Aunque en el mundo criollo de la costa fuera rebajado a la condición genérica pero poco prestigiosa de “serrano”. Su “blancura” era, sin embargo, relativa pues tenía ascendientes indígenas de donde provino la fortuna familiar. Finalmente, da que pensar que Mariátegui, Vallejo y Arguedas, los fundadores de la modernidad en el Perú, se hayan casado con mujeres extranjeras.

El género autobiográfico despega recién en los años 90. Mario Vargas Llosa, Alfredo Bryce Echenique y Julio Ramón Ribeyro publican sus memorias. Cecilia Esparza señala que el hilo conductor que recorre estos textos es el desarraigo, la debilidad del vínculo con una colectividad que no los termina de acoger y con la que no llegan a identificarse pero que, a la larga, contribuyen decisivamente a retratar y crear.

La dificultad para reconocer los méritos ajenos está enraizada en la vigencia de las jerarquías y en la falta consiguiente de un sentimiento de comunidad. La competencia y la envidia se atemperan cuando sentimos que el otro puede ser superior, pero que somos parte del mismo equipo. En cambio, desde la arrogancia surge el “ninguneo” que produce la rabia donde se anidan los propósitos de venganza. Y desde la humildad obsecuente surge

esa reverencia servil que ahueca el cerebro de quien la recibe. Pero el camino para la exploración de nosotros mismos ya está abierto por los autores mencionados. Ahora es cuestión de internarse sin miedo en nuestro pasado. Entonces, otros cuentos más plenos nos tendrán que devolver el espejo

escolha de Myriam

Conto de Alan Pauls baseado em canção de Chico Buarque



Este conto, do escritor argentino Alan Pauls, é baseado em “Ela faz cinema”, de Chico Buarque. A história faz parte de um volume com dez contos de diferentes escritores inspirados em músicas de Chico, da Companhia das Letras.



O DIREITO DE LER ENQUANTO SE JANTA SOZINHO

(“ELA FAZ CINEMA”)





But all you have to do is look at me to know

That every word is true.

Andrew Lloyd Webber/Tim Rice, Evita









Ainda estava trêmulo ao estacionar. Ficou com as mãos agarradas ao volante por um momento, o motor ligado, os olhos fixos no túnel negro da rua. Depois, por fim, insuflou um pouco mais os pulmões, como se destravasse um mecanismo, e soltou um jorro de ar interminável, tão profundo, que só então caiu em si: era a primeira vez que respirava desde que cruzara a porta do Samurai, feito um bólido de ódio, e fora para a rua. Dirigira todo o trecho que ia do restaurante até a escola como um sonâmbulo. Estava com os nós dos dedos arroxeados. As unhas deixaram-lhe uma série de sorridentes meias-luas vermelhas na palma das mãos. Desligou o motor, e com o silêncio as formas das coisas voltaram a desenhar-se: as árvores, os carros estacionados no quarteirão, o alambrado do clube, o futurismo fora de moda do edifício da escola.



Como sempre, todas as possibilidades de ação que não lhe haviam ocorrido antes, quando mais precisava delas, assaltavam-no agora como saldos de final de estação. Choviam-lhe réplicas precisas, ao mesmo tempo sutis e agressivas, que faziam o maître do Samurai emudecer e as pessoas que jantavam no local tomarem seu partido. Transformava-se em máquina de argumentar: máquina minuciosa, impassível, tão japonesa quanto esse diminuto súdito do império que acabava de humilhá-lo. Argumentava com tanta convicção que não precisava ser brutal. Nem sequer se defendia. Simplesmente reunia alegações em defesa de uma causa que ia muito além dele, de seu orgulho atropelado, e se tornava universal. E à medida que as desfiava, elegante e frio como um profissional, chegava a dar-se ao luxo de saborear o ensaio que algum dia escreveria sobre o assunto. Depois imaginou um fecho de ouro: numa espécie de apoteose triunfal, irrisória, levantava-se da mesa, entornava com calculada imperícia o molho de soja sobre o linho branco, impecável, da toalha, passava diante do maître e, jogando-lhe na cara o livro da discórdia, saía sem pagar, tão arrojado e seguro de si, da justiça de sua causa, que ninguém fazia nada para impedi-lo, e nem ele mesmo sabia, já na rua, como chegara até ali. Quis refrear-se, mas era mais forte do que ele. Sua imaginação nunca era tão voraz como quando começava a corrigir o passado. E se não conseguia parar era, também, porque um resto de decência continuava a manter na linha a única coisa que agora lamentava não ter feito: moer de pancada aquele cretino. De modo que quando se despenhou preferiu deixar-se levar por uma versão estilizada de seus piores anseios: dava um passo em direção ao maître, açoitava-lhe uma das faces com o guardanapo e um segundo depois escolhia sabres para o duelo e o enfiava, ou melhor: plantava o sabre a um milímetro da garganta dele e poupava sua vida em troca de uma indenização piedosa: cinquenta anos de comida japonesa grátis.



Poderia ter seguido despenhadeiro abaixo, cada vez mais fundo, mas o grande portão do colégio se abriu, a massa de ferro se espreguiçou rangendo e a partir daí tudo se resolveu numa silenciosa carambola óptica: a folha da porta, ao se mover, devolveu o feixe de um dos quartzos da entrada do colégio, que bateu no espelho retrovisor de um carro e dali, direto, foi estampar-se em sua cara como a lanterna de um vigia meio curto de vista. Alguém tinha acabado de sair. Estudou de longe o pouco dessa silhueta que se podia divisar entre as sombras: a mochila pendurada no ombro, os braços cruzados sobre o peito, os passos largos e leves como os de um astronauta na Lua. Vinha em sua direção. Viu-a avançar, viu a luz pestanejante de um farol pentear-lhe a cabeça e a reconheceu: era Márcia, a única amiga íntima de Ela que Ela não batizara com um apelido infame.



De modo que Márcia estava indo embora sozinha. Sentiu um baque no peito, como se seu coração tivesse atropelado uma corda invisível. Não podia deixar que o vissem ali, então afundou no assento e esperou, imóvel, que Márcia passasse a seu lado, e só despontou a cabeça novamente depois de ouvir as castanholas de seus passos – Márcia: a última esperança dos fabricantes de tamancos de madeira – afastando-se. Virou-se, seguiu-a com os olhos enquanto ela atravessava a rua, esperando o instante em que ia se dissipar feito miragem. Mas não: era Márcia, e Ela não estava com ela.





Não se enganara. Fizera bem em desconfiar, em voltar, em ficar montando guarda a trinta metros da escola. Ela mentira para ele. Uma hora e meia antes ele a deixara na porta do colégio e se oferecera para ir buscá-la quando a peça terminasse. “Não precisa”, disse ela, sorrindo e acariciando-o com toda a gratidão que não havia em sua voz. “Eu vou embora com a Márcia. Hoje vou dormir na casa dela.” Fez-se um silêncio. Ele manteve os olhos cravados nela por alguns segundos, o tempo exato para deixá-la em evidência, o tempo exato de que Ela precisou para segurar uma fivela entre os dentes, juntar os cabelos, fazer um rabo-de-cavalo e prendê-lo com a fivela, tudo isso fazendo de conta que estava sozinha, ou seja: sozinha diante de um espelho – uma arte que dominava cada vez melhor, principalmente na presença dele –, e reunir o butim escolar que, fiel a seu costume de se instalar em qualquer lugar onde ficasse por mais de cinco minutos, espalhara por todo o carro: os cadernos, os livros, a maçã, um bolo de dinheiro, um folheto do Greenpeace sobre a Lei de Florestas em Salta, a calça de ginástica para o dia seguinte, um telefone cravejado de adesivos, a camisola de algodão com a cara do Gato Félix que ele lhe trouxera de alguma viagem e que ela continuava usando, mesmo depois de meses – ou seja: anos, décadas, séculos – de Félix ter sido despejado por Joe Strummer de seu panteão particular.



“Tem certeza?”, perguntou-lhe. “Tenho”, disse ela, e lhe deu um desses beijos lânguidos, frívolos, sem alvo definido, com os quais começara a se despedir dele havia alguns meses, anos, décadas etc. “Não me custa nada”, insistiu ele. “Fico aqui pelo bairro, como alguma coisa por aí e depois passo para apanhar você. A que horas termina a peça?” “Não sei”, disse ela. Mas não o fitava mais. Bastava esse desdém para que se exilasse de imediato em outro mundo, num limbo elementar, remotíssimo, onde não havia nada mais importante que amarrar ou desamarrar uma bandana, enfiar um marcador vermelho num estojo prestes a estourar, meter a mão no bolso, pegar um celular, digitar meia frase sem vogais na velocidade da luz, e com o mesmo polegar que treze anos e meio antes, enquanto pressionava com as pontas dos pés as grades do berço, afundava na boca para dormir sem chorar. “Não sabe quanto tempo vai durar a peça?” “Não faço a menor ideia.” “É o Rei que morre, né?”, disse ele, pensativo. “Quanto pode durar: uma hora, uma hora e meia?” Ela olhou de relance para o portão de ferro preto. “Lá está a Márcia. Tchau, papai. Te amo”, disse. E desceu, praticamente se atirou para fora do carro, e quando começava a subir, correndo, o pequeno barranco que levava ao colégio, ele a chamou e a obrigou a voltar, sacudindo no ar o cachecol escocês que ficara engatado no freio de mão. Sem parar, aproveitando o impulso, Ela deu meia-volta, desceu até a rua, enfiou a cabeça dentro do carro, deixou o cachecol ser enrolado em volta de seu pescoço e o beijou, beijou-o com força, duração, som – tudo o que ele esperava de seus beijos para estremecer de amor e acionar seu instinto de desconfiança – e tomou novamente o rumo da escola com o lastro da mochila quicando em suas costas, gritando como uma possessa o nome de sua amiga, sua cúmplice, sua sórdida sequaz.



Levou alguns minutos para se recompor. Depois, instintivamente, à medida que uma onda de furor ardente o ia envolvendo, ligou para o número de Petra. Perguntou-se o que ia lhe dizer. Não era uma ligação “de família”: não queria compartilhar com ela as provas da farsa que acabava de descobrir, como gostavam de fazer com qualquer destreza, gracinha ou façanha mais ou menos precoce de Ela que os surpreendesse sozinhos, sem o outro. Era uma ligação conjugal: queria criticar isso. Queria lhe mostrar em que escola íntima Ela aprendera a arte de mentir, que professora lhe inculcara esse estilo casual, esse talento para a imprecisão, a distraída falta de ênfase com que disfarçava uma decisão já tomada que ele não aprovaria… Era um passatempo a que foram se entregando aos poucos, primeiro com curiosidade, como quando, com Ela recém-nascida, competiam para ver de qual dos dois a menina herdara mais traços, depois com uma espécie de raiva, uma sede de justiça rancorosa, quando pretendiam detectar no outro a raiz de qualquer insolência de Ela na qual não aceitassem reconhecer-se.



Não deu em nada, nem mesmo numa dessas vozes gravadas feitas para decepcionar. Olhou para o telefone, olhou-o com cara feia, jogando a culpa nele, e então lembrou que aquele era o telefone de Petra. Dera-o para ele vinte dias atrás, meia hora antes de ir para o aeroporto. Logo para ele, que odiava celulares. Odiava seu tamanho, sua versatilidade, seu espírito frenético de renovação. Odiava sua fidelidade quando ninguém precisava deles e sua inutilidade no coração de uma emergência. Odiava-os como odiava tudo aquilo que punha a nu as personalidades múltiplas e pitorescas de sua inépcia. “Não estou pedindo que goste dele, nem que o ame, nem que o entenda”, disse-lhe Petra. “Use-o para ficar em contato com Ela enquanto eu não estiver aqui. Só isso. Assim viajarei mais tranquila”. Ele aceitou, ainda que sob protesto. E assim que Petra desapareceu no elevador com suas malas – quatro imensas, quase estourando de tão cheias: o mínimo indispensável, disse, para uma excursão de quase três semanas e oito cidades –, ele fechou a porta, avaliou com a mão o peso do telefone enquanto dava uma olhada em volta, como quem procura um esconderijo para uma prova comprometedora, e acabou por arquivá-lo numa gaveta da mesa-de-cabeceira, entre caixas de relaxantes musculares, tubos de agulhas de acupuntura e máscaras para dormir que nunca usava, modesto ostracismo no qual o esqueceria durante dois dias e no qual uma hora mais tarde o alcançaria a mensagem que Petra, como um epílogo de dois meses e meio de pesadelo conjugal, deixava da sala de embarque.



Pensou que seriam necessários mais de vinte dias de paternidade solitária para convertê-lo à religião da telefonia móvel. Certa noite, voltava de um jantar com amigos e encontrou Ela sentada no saguão do edifício, vestida de festa, tiritando de frio. Saíra sem as chaves. Deixara seis mensagens para ele no celular. Ele inventou a verdade e disse que o esquecera, mas não que o esquecimento fora proposital e o deixava orgulhoso, como confessara a seus amigos. Mas nessa mesma noite, envergonhado, resgatou-o da gaveta, e estava tentando eliminar os pedidos de socorro que não ouvira por se manter fiel a sua fobia militante quando o assaltou a voz calma e meio anestesiada de Petra – a voz com que costumava dizer as piores coisas –, lançando seu veredicto sem pressa, como se tivesse todo o tempo do mundo: “O problema, querido, é que você só serve para ficar sozinho” – até que uma voz de homem entrava em cena e a obrigava a desligar: “Petra, vamos. Nosso avião está saindo, Petrita”.



Como os s.o.s. de Ela, a mensagem sobreviveu intacta a todas as suas tentativas de apagá-la. Mas ao contrário daquelas, que ficaram gravadas mas em silêncio, como advertências cuja discrição ele agradeceu, a voz de Petra ressurgia acidentalmente de quando em quando, disparada por alguma das manobras com que ele tentava domar o aparelho, para lembrá-lo de como ele era um misantropo incurável. Estava longe, atuando em teatros majestosos e decrépitos, brindando com prefeitos e tomando o café da manhã em enormes restaurantes desertos, mas não se movera de seu lado. E ele, que aceitara o telefone por Ela, para não lhe agravar com suas fobias o efeito da ausência de sua mãe, em poucos dias, quando viu que noventa e nove por cento das ligações que ele não tinha outro remédio senão atender – porque também não sabia como desligar totalmente o aparelho –, e as quais anotava religiosamente, eram de outras atrizes, dramaturgos em ascensão, jornalistas, cosmetólogas, quiropráticos, roteiristas de cinema, agentes, percebeu que sua paixão pela vida solitária era menos digna de um anacoreta que de um secretário totalmente terreno, tão abnegado que até se esquecera de combinar um salário com sua patroa.



Não se importou com isso. Ou se importou menos do que ter de procurar uma refutação, um escudo, algo que atenuasse um pouco aquela pressão incômoda que exercia sobre ele o diagnóstico de Petra. Não demorou a encontrar: eram ele e Ela. O estranho casal que formavam, saído de um gênero em que se misturavam a comédia musical, as histórias em quadrinhos, o cinema mudo e os contos para crianças de alguma civilização extinta. Ela e ele de noite, na cozinha, improvisando jantares opíparos, cheios de acepipes proibidos, que serviam em travessas imensas, e deixavam esfriar diante da TV, jogados na cama, ele a seu lado, ela do lado de Petra, enquanto zombavam dos programas trash nos quais o outro era viciado (ele nos docudramas policiais, ela nos anúncios sobre elixires emagrecedores ou tônicos para fazer o cabelo crescer) e brigavam pelo controle remoto até que este mergulhava de cabeça num prato de mostarda; Ela e ele de manhã, bem cedo, quando iam juntos para a escola e pegavam a avenida Figueroa Alcorta e ele sintonizava o rádio no programa de rock pelo qual ela era fanática (Bon Jovi às quinze para as oito) e pisava no acelerador e ela abria a janela e tirava a cabeça para fora e uivava alucinadamente; Ela e ele nos finais de semana num cinema, legendando o filme com comentários mordazes e levantando psius dos quatro cantos da sala, ou em casa, cada um na sua, ele lendo, ela baixando canções, ou classificando velhos cadernos escolares, ou cobrindo com fotos de Sid Vicious as sombras amareladas deixadas por Pókemon, as Meninas Super-poderosas ou outros ídolos caídos em desgraça, até que, como se respondessem a um sinal audível apenas para eles, os dois deixavam o que estavam fazendo, cruzavam-se em algum ponto da casa e começavam a dançar, ou caçoavam dos farrapos caseiros que vestiam, ou ouviam um disco juntos, ou percorriam o jornal em busca de um programa para a noite…



Encontrara a refutação, e mais de uma vez, quando Petra ligava de Santa Rosa, ou de Tandil, ou de Uspallata, pensou em esfregá-la na cara dela. Sempre se arrependia. Não gostava da ideia de meter Ela no meio, menos ainda de embarcar numa sessão de psicodrama de casal à distância. Além do mais, tinha a impressão de que algo na qualidade da comunhão que o unia a Ela era incompatível com qualquer ressentimento, qualquer impulso de reivindicação, e mesmo hostil à simples tentação de comunicá-la a um terceiro. Era evidente, por outro lado, que Petra não tinha nenhuma intenção de falar com ele. Ligava sempre para casa, e conhecia bem, porque a sofria há anos, a severa política dele em matéria de disponibilidade telefônica. Jamais atendia; deixava que a secretária eletrônica gravasse a mensagem e só horas ou dias depois, conforme quem tivesse ligado, retornava a ligação ou a arquivava no único porão íntimo do qual não se sentia culpado. Ou deixava o telefone tocar até ouvir Ela atender. Mas quando Petra ligava, sempre sabia antes que era ela. Algo na atmosfera da casa, algo em seu silêncio, sua expectativa, sua maneira insatisfeita de estar em ordem, afetavam-se e tremiam de um modo estranho cada vez que ligava. Era como um revoo imóvel. E assim que reconhecia esse desassossego, ele parava de trabalhar, ia ao quarto de Ela, que falava com a mãe deitada de bruços no tapete, de costas para a porta, uma perna flexionada, o pé da outra subindo e descendo ao longo do tendão do tornozelo, e fechava a porta com cuidado para não ouvir, não interrompê-las.



O que mudara? Ou quem? Por que o idílio ficara assim sombrio? Como ele passara do estado de flutuar numa bolha de cumplicidade perfeita, na qual podia adivinhar o pensamento de Ela, completar suas frases e levantar-se da cama para ir comprar-lhe um quilo de sorvete à meia-noite e meia sem protestar, sem se sentir sequer tocado pelos espinhos da escravidão, ao de espreitá-la em seu carro como alguém que arma sordidamente uma tocaia noturna? Em que momento havia trocado a compreensão pela desconfiança, a permissividade pelo detector de mentiras? Se ao menos tivesse havido uma primeira vez, uma data, uma cena chave que pudesse evocar para saber quanto mais ele teria de retroceder para restabelecer a ordem perdida… Mas, o quê? Repassou seu arquivo de alarmes recentes: alguns episódios lhe faziam sinais mais ou menos ostensivos, como atores amadores em busca do papel que os tornará famosos. Matutinos, por exemplo. Começa a clarear. Depois de lutar contra a insônia – um mal que o acompanha toda vez que Petra viaja, como se estivesse incluído no pacote da agência de viagens –, patrulha a casa para começar realmente a acordar e culmina sua ronda, completamente infrutífera, no quarto de Ela, que dorme com o braço direito e a cabeça para fora da cama, suspensos no vazio. Está quase lhe colocando uma coberta – não lhe importa o corpo, que de qualquer modo gostaria de ver um pouco mais vestido, mas não suporta a imagem de desamparo que seu ombro esquerdo oferece nas frias alturas onde reina – quando Ela ressona, sacode a cabeça como se espantasse um mosquito e suspira, ou geme, ou murmura uma frase perfeita, articuladíssima, que ele não entende, a tal ponto foi pego de surpresa, mas que o detém no ato e o leva a inclinar-se sobre ela, a deslizar uma orelha no raio de seu hálito (vitamina de banana com leite, batatas fritas de pacote, chiclete de framboesa, pepino) para capturar a próxima, que por fim chega e é esta: “As meias não, por favor. As meias não.” E assim que ele a chama em voz muito baixa, só para libertá-la do pesadelo sem que leve um choque, Ela passa para a meia língua do sonho, que domina perfeitamente, e cospe um parágrafo feito apenas de consoantes, enquanto lhe acaricia com o canto da mão um lado do pescoço. Ou vespertinos. O telefone toca. Ela atende. Ele, da escrivaninha, pensa que talvez seja um pouco tarde para ser uma ligação de Petra. E pensa que Ela não costuma desligar o telefone tão rápido. Fiel a seu rito, vai até seu quarto e a encontra deitada no tapete, como sempre, só que de barriga para cima e um pouco mais perto da porta do que de hábito, tão perto que se esticar uma de suas longas pernas de quero-quero consegue empurrar a porta com um pé e, sorrindo, fechá-la em sua cara. Mas nada lhe parecia suficiente. Nem mesmo os dois marcos hormonais como os primeiros pêlos visíveis (essa seda que parece de bebê em sua axila direita e que o desconcertou num dia em que Ela levantou o braço para apanhar uma boina no cabide) ou a primeira menstruação (o sinal de sangue em forma de relógio de areia que descobriu certa manhã no lençol): comemorara-os como alvíssaras compartilhadas, achando que se revelavam a ele e a Ela ao mesmo tempo, mas a mancha estava longe de ser a primeira (Petra, de fato, já lhe dera alguns tipos de absorvente, pelo visto todos inúteis), e já fazia meses que Ela usava o desodorante de seus pais para atenuar, porque não havia maneira de apagá-la, a fragrância áspera de seus suores.



Quis saber as horas; o tremor com que arregaçou o pulôver para ver o relógio quase o faz chorar. Que charlatão imbecil teve essa ideia de desenhar o tempo como uma linha reta e os fatos como riscas perpendiculares periódicas, como se a história pudesse ser uma dessas fitas métricas flexíveis que as costureiras usam para tirar medidas de corpos que não cessam de mudar, de crescer, de se transformar? Não havia marcos nem fatos. E se havia, dissolviam-se na espuma dos anos, dos dias, dos segundos… A história da segunda Ela, essa Ela equívoca, pródiga em fraudes e duplos sentidos, que acabava de tomar posse do corpo da primeira, devia ser tão sub-reptícia – e suas raízes tão remotas – quanto a do simulacro de Parkinson que agora lhe complicava a tarefa de iluminar o quadrante do relógio para comprovar que eram… que horas? Dez e vinte já?



O hall da escola era um cubo brilhante e vazio. Nenhum movimento: só a projeção da sombra do vigia que desenferrujava as pernas no corredor do lado. Deu para detestar Ionesco, que sempre lhe parecera um farsante simpático. Irritou-se com aquela meia dúzia de professores que alardeavam seus patéticos estertores vocacionais diante das mesmas vítimas que nas horas de aula martirizavam com suas remelas, seu mau hálito, sua prepotência, suas provas surpresa, suas petulâncias demagógicas. Desde quando Ela se interessava pelo teatro do absurdo? Até onde sabia, Ionesco não figurava no programa de estudos desse ano; tampouco na biblioteca de Ela, que conhecia como ninguém, que ele mesmo – de uma indolência doentia na hora de ter de mobiliar algo – comprara, pintara e povoara de livros cuidadosamente escolhidos, até que um dia, procurando um dicionário francês-espanhol autorizado a viajar entre uma biblioteca e outra, topou com dois livros de Roald Dahl que ele não havia comprado, assinados e datados na primeira página pela mão trêmula de Ela, e perdeu o fôlego de tanta alegria.



Sexta-feira, dez e meia da noite. Exausta após uma longa semana escolar, era evidente que Ela devia estar em casa, saboreando as decapitações de “O Albergue II” ou chorando desconsoladamente com um documentário sobre matança de focas, jamais assistindo à agonia petulante de um palhaço de coroa e menos ainda longe de Márcia, a amiga, a cúmplice vil, a traidora com a qual se supunha que devia passar toda a peça rindo de piadas ruins. Mas, e ele? Cometera um erro fatal, um erro de avarento: aproveitar o tempo. O cálculo se fechava: tinha essa hora e meia morta, o Samurai estava perto, voltaria justo na hora em que a peça terminasse. Agora, um gosto rançoso que se arrastava desde as entranhas de seu estômago se deteve no umbral de sua garganta, despontou e voltou a descer como um animalzinho assustado. Polvo, provavelmente. Ou camarão. Esse camarão enorme, extraordinariamente carnudo, que de algum modo havia desencadeado o desastre. Empenhara-se em tirar a ponta escamosa do rabo para enfiá-lo inteiro na boca, mas estava com a mão esquerda ocupada no livro, mantendo-o aberto na página que lia, e era improvável que a direita resolvesse o problema por si mesma sem prejudicar a integridade da peça, de modo que somou a esquerda à faina. Assim que se sentiu livre, o livro, como um molusco pudico, deu um salto e quis se fechar novamente; a mão esquerda deu marcha a ré, tentou impedi-lo e só conseguiu empurrá-lo ainda mais, e o livro terminou caindo no chão pela fresta que separava sua mesa da do vizinho.



Um passo de comédia solitária. Só que os restaurantes japoneses são amplificadores prodigiosos: um sorriso retumba como uma gargalhada, uma lágrima é uma tragédia, qualquer meia levemente desbotada parece um trapo. Agachou-se para apanhar o livro, levantou-se enquanto tomava a primeira decisão sensata do dia, terminar de comer e só depois começar a ler, e ao voltar à superfície, onde o niguiri de camarão o esperava com a ironia de seu rabo intacto, viu o maître de pé junto à mesa, os braços bem colados ao corpo, em atitude expectante. “Não é bom ler comendo”, disse-lhe, inclinando-se para corrigir o esquadro móvel em que o percalço deixara a travessa, o prato, a pequena tigela com molho de soja. Ele o tomou como um comentário pedagógico, quase médico, e sorriu. “Imagino”, disse, e voltou a empunhar os palitos. “Mas estou sozinho, e quando estou sozinho gosto de comer lendo. Adoro comer e ler”. Rondou o camarão com a ponta dos palitos e no último instante, com uma espécie de fruição vingativa, descartou-o e escolheu a peça de pele de salmão. Sustentando-a no ar, abriu o livro com a mão esquerda e procurou a página perdida. “Não, não”, disse o maître, que não se movera de seu lado. “Antes de comer, sim. Depois, também. Durante, não”. Não era fácil domesticar aquelas páginas jovens, cheias de energia, mas não quis se render e respondeu com os olhos cravados no livro: “Eu gosto. Me faz companhia.” “Não”, disse o maître. “Não é sério ler enquanto se come”. Página 56. Caro Octave, o que me assusta é a violência de suas paixões, principalmente todo o caminho secreto que seguem em seu coração. Era por aí, estava perto. Achatou o livro com a palma da mão e levantou os olhos para o maître, sorrindo novamente. “Nem pensar. São duas coisas que eu levo muito a sério.” O maître deu um passo à frente, quase colou a virilha no canto da mesa e inclinou-se levemente, como se procurasse se fazer entender sem equívocos, mantendo, ao mesmo tempo, certa discrição. “Aqui não é permitido ler.” Sua voz mudara; já não era protocolar, mas grave, severa, ameaçadora. “Como?”, espantou-se ele. O maître repetiu: “Não é permitido ler enquanto se come.” “Não estou entendendo. É proibido?” “Neste restaurante sim.” Olhou-o, olhou-o bem, com empenho, pensando que saberia detectar em sua boca ou em seus olhos o prelúdio da risada que transformaria todo aquele episódio no que era: uma farsa um pouco psicopática mas bem representada. O maître nem piscou: parecia petrificado. “Como assim, proibido? Como vai me proibir de ler?” “É uma falta de respeito com a cozinha”. Ele riu, nervoso, incrédulo. A impaciência se instalava rapidamente. “Desculpe”, disse-lhe, “a comida está ótima. Cumprimente o cozinheiro por mim. Mas o que tem a ver ler com faltar com o respeito à cozinha?” Houve uma trégua microscópica que ninguém aproveitou. “Aqui não se lê enquanto se come”, decretou o maître, e de repente, de um modo abrupto e brutal, inclinou-se e ameaçou recolher a travessa. Foi apenas uma ameaça, a sombra ou o esboço de uma ação, como na disputa imaginária ao redor da travessa que se seguiu, mas foi tão nítida e realista que a situação lhe pareceu duplamente escandalosa. “Mas o que há com você?”, disse, levantando a voz. “Eu leio. Não grito, não fumo, não fico dando gargalhadas, não desprezo a comida, não incomodo ninguém. Além do mais sou livre, e enquanto não incomodar ninguém, quando eu como faço o que me dá na telha. Já comi em muitos restaurantes japoneses, em toda parte do mundo, e nunca me aconteceu nada parecido.” “Aqui é assim”, disse o maître. “Aqui os fregueses não lêem. No Japão, se um filho lê enquanto come, o pai lhe dá um sopapo.” “Não estamos no Japão”, disse ele, mordendo as palavras, “e você não é meu pai. Estamos em Buenos Aires, você é o maître de um restaurante e eu sou um freguês…” “Aaahhh!”, rugiu o maître, dando por encerrada a discussão, e retrocedeu alguns passos e se postou junto à pequena janela que dava para a cozinha, de braços cruzados, como um guardião. Foi um momento único, uma dessas conjunturas raríssimas em que a decisão mais espetacular, mais teatral, mais pomposa, talvez seja a mais justa e, talvez, a única. Não foi essa que tomou. Permaneceu no lugar, meio tonto de espanto e de raiva, fitando o maître nos olhos, nos pedaços de pedra opaca que tinha incrustados nas órbitas dos olhos. E com os últimos resquícios de dignidade equivocada que lhe restavam decidiu-se pelo pior: que tudo seguisse normalmente, mas em alta velocidade, como se as coisas rápidas fossem, de algum modo, invisíveis. Então limpou a travessa em menos de sete minutos, curvando-se um pouco mais sobre o prato a cada bocado, com o livro ao lado, aberto em qualquer página, fingindo ler frases que mal enxergava.

Cruzou o céu um avião que começava a descer. Petra estaria a bordo? De repente sentiu que precisava dela. Precisava de tudo o que nela lhe era difícil de suportar: sua impassibilidade, o desembaraço com que profetizava o que na verdade queria que acontecesse, a influência que exercia sobre ele, não importa o que fizesse. Também precisava de ar, de modo que desceu do carro e se deixou afagar pelo frescor da noite. Quando abriu os olhos viu gente saindo da escola. Pensou distinguir casacos compridos, roupa escura, um par de chapéus, saltos altos: pais de alunos, membros da cooperativa escolar, outros professores. Onde estava Ela? Onde o canalha com acne, voz em falsete e priapismo galopante que a beijara durante toda a peça? Onde os canalhas menores que tinham se masturbado olhando-os da última fileira de poltronas? Ouviu-se uma risada de mulher, alegre e falsa como uma moeda falsa caindo numa jarra de cristal falso. Ouviram-se estalos agudos, como disparos de uma arma de plástico, e os faróis de três carros estacionados piscaram na noite, em uníssono. Entrou de novo no carro e se encurralou contra a porta do passageiro, de onde dominava melhor a entrada da escola. O grupo de adultos se desfez em dois, três, quatro casais que se dispersaram em direções diferentes. Entraram nos carros, os motores rugiram, outro avião – estranhamente afinado uniu-se a eles lá do céu. E quando não restou ninguém, só o guarda-noturno que dava voltas junto à porta, fazendo malabarismos com um molho de chaves barulhento, começaram a aparecer os jovens, não mais que meia dúzia, surpreendentemente mais silenciosos, e mais bem vestidos, que os adultos.



Polvo. Camarão. O vinagre do arroz. Tinha a sensação de levar um aquário inteiro dentro do peito, uma espécie de colônia ictíica na qual seu coração ia naufragando lentamente, e achou que não ia resistir. De repente se viu morto no carro, a cabeça contra a janela, o peito estampado com os espectros de sua bandeja de sushi suculento, examinado bem de perto pelo crápula com acne cujo braço tatuado continuava maculando, impassível, os ombros de Ela… Não gostou disso. Não viu Ela, mas sim duas garotas que dançavam, com as mãos na cintura uma da outra, um cancan robótico, sem dúvida um dos anacronismos risqués com que o professor de química, ou de ginástica, ou de ciências naturais, ou qualquer fracassado que tivesse dirigido a peça, decidira revitalizar o legado de Ionesco. Teve medo. Começou a considerar com outros olhos o canalhinha com acne. Se para vê-la de novo tinha de vê-la de mãos dadas com ele… Os homens fumavam, afundavam as mãos nos bolsos, davam pontapés curtos e astutos nas panturrilhas. Ficaram um pouco na porta, indecisos, numa espécie de equilíbrio precário, até que saíram mais dois, um garoto e uma garota, não abraçados mas pendurados um no outro, que tocaram o grupo até a rua. Viu-os passar pela calçada, a seu lado. As garotas que dançavam ouviam música no mesmo fone de ouvido: uma nova raça de siamesas. Os garotos arrastavam os pés ou os levantavam demais, lutando com a gravidade de seus tênis-porta-aviões como os escafandristas de Verne, certa vez, com seus sapatões submarinos. Viu-os se afastando de costas pelo retrovisor. A entrada da escola ficara deserta.



Assim, pensou. Assim – como um pai que olha boquiaberto para a porta do colégio que engoliu sua filha e nunca mais a devolverá – começam essas histórias de capa das revistas de domingo que reconstroem a trama secreta do tráfico de adolescentes e viajam de Buenos Aires a Istambul, de Istambul ao Ceilão, do Ceilão a Sofia, seguindo o rastro de um estojo de pó-de-arroz Hello Kitty, uma camisola de algodão com a cara do Gato Félix, um par de pantufas de veludo com laço, um diário íntimo composto de listas: “Cinco discos para comprar”, “Cinco sabores de sorvete”, “Cinco garotos que eu beijaria”, “Cinco garotas que eletrocutaria”, “Cinco canções que escutaria debaixo d’água”… Esperou alguns minutos, e quando pensou que não veria ninguém mais aparecer no hall, nem naquele momento, nem amanhã, nem nos vinte séculos que viriam, ligou para o número de Ela. Atendeu-o uma canção que ele nunca ouvira.



Quando ela chora

Não sei se é dos olhos para fora

Não sei do que ri

Eu não sei se ela agora

Está fora de si

Ou se é o estilo de uma grande dama

Quando me encara e desata os cabelos

Não sei se ela está mesmo aqui

Quando se joga na minha cama

Ela faz cinema

Ela é a tal

Sei que ela pode ser mil

Mas não existe outra igual



E depois, quase mordendo outra igual, como se não conseguisse refrear certa impaciência, a voz gravada de Ela vinha a seu encontro: “Oi, é a Ela…” Reconheceu a rouquidão, o tom infantil de quando acabava de acordar e aparecia na cozinha de camisola, ainda de meias, repousando a cabeça alvoroçada em seu ombro e, mordendo a primeira cutícula do dia, falava: “Oi, papai. Amo você, papai. Faz um suco de laranja pra mim, papai?” Desligou e voltou a ligar enquanto olhava as horas e uma multidão em pânico aglomerava-se em seu peito em busca de uma saída. Tinha a boca seca; suava; parecia estar perdendo a sensibilidade nos dedos. A música, outra vez.



Quando ela mente

Não sei se ela deveras sente

O que mente para mim

Serei eu meramente

Mais um personagem efêmero

Da sua trama…



Não esperou até o final. Largou o telefone como se lhe queimasse a mão, saiu do carro e dirigiu-se para a escola devagar, tentando se acalmar, ensaiando o tom com que explicaria a situação ao guarda-noturno, sem perder de vista que, desconhecido e ainda uniformizado, o guarda-noturno era um aliado potencial, um meio para chegar a Ela, e não o elo menos notável de uma rede de proxenetas que acabara de seqüestrar sua filha. Passou os fatos a limpo, a ordem dos fatos, as horas… E quando a viu, atravessando sozinha o cubo claro do hall, tão sozinha e tão inconfundível que o angustiou, teve a impressão de que não era ela, não ela de carne e osso, mas a projeção perfeita de seu pensamento, que já a dera por desaparecida. Saía com a cabeça baixa, apressada, e abraçava a mochila contra o peito, como se não tivesse tido tempo de pendurá-la. Ia em direção a ele, absorta na ponta de seus tênis, ainda não o vira. Como gostou de ter outra vez seu nome na ponta da língua, saboreá-lo, saber que um segundo depois o pronunciaria e que essa simples emissão de ruído faria vibrar e existir e brilhar a criatura mais bela da terra… Ia chamá-la quando viu que mais alguém saía da escola. Um homem careca, ou quase careca, vestido com o que pareciam ser calças do século dezoito, que apareceu, varreu a rua com os olhos e assim que detectou Ela saiu atrás dela a passos rápidos. Alguma coisa pendia de sua mão e ele não fazia barulho ao caminhar. Ele parou, ouviu o homem gritar o nome de Ela e percebeu um sotaque estranho. Ela quis apressar o passo e perdeu alguma coisa, um livro, um penal, no caminho: ameaçou parar para apanhá-lo, mas seguiu em frente, e só aceitou parar quando ouviu seu nome pela segunda vez, mais gritado e mais triste.



Então levantou o rosto com resignação, dando-se por vencida, e topou com seu pai. Ele sorriu. Não a via bem, mas parecia haver algo borrado em seu rosto, uma espécie de sujeira ou de desordem. Aproximou-se, olhou-a melhor; tinha os lábios muito vermelhos, como que crestados pelo frio, ou pintados. “Acabei vindo, afinal”, disse ele feliz, desculpando-se. Ela sorriu, deu uns passos frágeis e deixou-se abraçar, quase se sustentar por ele, enquanto o homem das calças, que começara a correr, diminuía rapidamente o passo e chegava até eles. Não fazia barulho porque estava descalço; tinha restos de maquiagem no nariz, um souvenir de barba na ponta do queixo e a marca de um beijo perto da boca, meio apagada mas ainda fresca. Movia os olhos o tempo todo, como se uma luz os fustigasse. “Você esqueceu isto”, disse, e sua mão enfeitada com jóias estendeu a Ela o cachecol escocês. Ela sorriu e pendurou-o em volta do pescoço. Depois olhou para o pai: “O Rei, meu professor de português”, disse, apontando para o Rei. E olhou para o Rei e apontando para seu pai, disse: “Meu pai”.