segunda-feira, 21 de junho de 2010

Ozu Rare Silent Film I Graduated, But ... (1929)

José Saramago (1922-2010)


”Por uma hora ficaram os dois sentados, sem falar. Apenas uma vez Baltasar se levantou para pôr alguma lenha na fogueira que esmorecia, e uma vez Blimunda espevitou o morrão da candeia que estava comendo a luz, e então, sendo tanta a claridade, pôde Sete-Sóis dizer, Por que foi que perguntaste o meu nome, e Blimunda respondeu, Porque minha mãe o quis saber e queria que eu o soubesse, Como sabes, se com ela não pudeste falar, Sei que sei, não sei como sei, não faças perguntas a que não posso responder, faze como fizeste, vieste e não perguntaste porquê, E agora, Se não tens onde viver melhor, fica aqui, Hei-de ir para Mafra, tenho lá família, Mulher, Pais e uma irmã, Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro, Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo. Deitaram-se, Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bate de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue. Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro.”

(Memorial do Convento, 1982)

Domingo sings "Donna non vidi mai"

Rachmaninoff: Mozart K 331 Theme + variations

De uma ranhura

Elisa Biagini


escrevo-me entre as

ranhuras, nos nós

do lenho, com a

sujeira embaixo do tapete:



o escuro, que espera

entrar, gruma-se

de olheiras.



*



como na folha

enrrugada

que se alisa

resta a

marca

ranhura

que nos colore

a tinta.

(nós nos encharcamos

de infinitas arestas)


*



só me avistam

em contraluz,

matéria como

clara de ovo,

pátina através dos poros

pelo entalhe:

um alfabeto braille

de ossos sequiosos

por sair.



*



e o dorso

ranha-se, estojo

de sementes

que empurram,

apartam-se em galhos,

moita de dedos

que nunca toca,

corta o ar a unhaço.



Tradução: Aurora Bernardini e Régis Bonvicino



Da una crepa

mi scrivo tra le

crepe, nei nodi

del legno, nella

polvere sotto il tappeto:



il buio, che aspetta

d’entrare, s’aggruma

d’occhiaie.


*

come su foglio

accartocciato

che si liscia

resta il

segno

crepa

a coloraci

l’inchiostro.



(noi ci imbeviamo

d’infiniti spigoli.)


*

mi si vede solo

in controluce,

materia come

chiara d’uovo,

patina gocciolata

dalla crepa:

un alfabeto braille

d’ossa che vogliono

uscire.


*


e la schiena si

crepa, astuccio

di semi

che spingono,

che s’aprono in rami,

cespuglio di dita

che mai giunge a toccare,

che taglia l’aria d’unghia.



Fonte SIBILA



Elisa Biagini nasceu em Florença, Itália, em 1970, onde se formou em História da Arte Contemporânea. Logo em seguida ao mestrado, mudou-se para os Estados Unidos para estudar e escrever uma tese de doutorado em Literatura Italiana Contemporânea. Trabalhou como professora em universidades norte-americanas, onde viveu por cinco anos. Seus poemas têm sido publicados em revistas literárias italianas importantes. Elisa Biagini publicou dois livros de poemas: Questi nodi (1993) e Uova (1999), este em versão bilíngüe italiano/inglês. Além disso, é tradutora da poesia de Sharon Olds e de Alicia Ostriker.