A chegada às livrarias da Ficção Completa de Bruno Schulz (1892-1942), em tradução direta do polonês, renova o interesse por sua obra, que discute a preservação da ordem do mundo
18 de maio de 2012
UBIRATAN BRASIL – O Estado de S.Paulo
Mago que sabia transformar tudo em poesia, o polonês Bruno Schulz deixou uma obra curta mas intensa o suficiente para provocar a sensação de deslocamento e de falta de chão. As observações são de Henryk Siewierski, professor do Departamento de Teoria Literária da Universidade de Brasília, mestre em filologia polonesa e doutor pela Universidade de Cracóvia, responsável pela tradução de Ficção Completa, volume lançado pela Cosac Naify no qual estão reunidos Lojas de Canela e Sanatório Sob o Signo da Clepsidra, livros de contos editados pela Imago nos anos 1980, além de quatro textos curtos inéditos no Brasil.
Escritor absolutamente original, além de inspirado desenhista, Schulz consegue vencer, na visão de Siewierski, a comparação com Kafka, autor de quem se distancia pela exuberante prosa poética, que contrasta com o estilo menos ousado do ficcionista checo. Fiel à investigação da palavra, Schulz construiu uma obra nutrida por um triângulo de culturas, a polonesa, a judaica e a alemã, com as quais conviveu intimamente até ser morto por um oficial nazista, em 1942. Sobre a difícil, mas fascinante, tarefa de traduzir direto do polonês o conjunto de escrito, Siewierski conversou com o Sabático.
A ficção de Schulz é muito comparada à de Kafka, como se observa em muitos ensaios. Você considera justa essa comparação? Como distingui-los?
Essas comparações resultam mais da vontade de situar Bruno Schulz num determinado contexto histórico e geográfico do que de uma análise da sua ficção. Porque apesar de certas convergências temáticas, são os universos e estilos artísticos bem diferentes. A exuberância poética da ficção de Schulz e seu riquíssimo imaginário divergem do estilo protocolar da prosa kafkiana. Se procurarmos as convergências, elas podem ser encontradas sim, mas no plano que aproxima os escritores cujas obras têm caráter universal, pela intensidade com que enfrentam o mistério da vida humana e sua inserção no drama da história. No seu posfácio à primeira tradução do Processo em polonês, o próprio Schulz sinaliza em que poderia consistir o parentesco entre os dois, quando fala que as obras de Kafka são uma realidade autônoma que, além das alusões místicas e religiosas, tem a sua própria vida poética, polissêmica, impenetrável, que nenhuma interpretação pode esgotar.
Existe algum aspecto da ficção de Schulz que você acredita não ser suficientemente enfatizado?
A obra de Schulz é muito estudada, principalmente na Polônia, mas não só. Por exemplo, um dos mais significativos livros sobre ela foi publicado na Suécia, On the Margins of Reality – The Paradoxes of Representation in Bruno Schulz’s Fiction, de Krzysztof Stala. Seria difícil apontar um aspecto da sua prosa que até agora não tivesse despertado o interesse da crítica. A cada dois anos é organizado em Drohobycz, cidade de Schulz, hoje na Ucrânia, um festival e um congresso que reúne os tradutores e estudiosos da sua obra do mundo inteiro. Tive a oportunidade de participar dos dois últimos e observar como é amplo o leque temático e problemático dos estudos schulzianos. Para o congresso deste ano, que ocorrerá em setembro, os organizadores propuseram como tema o pensamento crítico e teórico de Schulz, sua “filosofia da literatura”, considerando este aspecto da sua obra ainda pouco estudado. A “teoria” ou “filosofia” da literatura, embora por ele mesmo nunca sistematizada, pode ser reconstruída, principalmente a partir da sua obra ficcional. Existem também outras fontes como seus ensaios críticos e cartas, sem esquecer dos desenhos que se correspondem com a prosa. Já foi apontada a familiaridade da sua concepção da literatura com a tradição do realismo mágico e/ou maravilhoso. Mas ela talvez merecesse ainda um olhar mais preciso.
O que o senhor diria do senso de humor de Schulz que não é imediatamente evidente, mas que está presente em sua prosa?
Sim, o senso de humor é sem dúvida um dos traços característicos da prosa de Schulz. O humor faz com que a prosa ganhe uma boa dose de poesia. Não foi Edmond Jabès que disse “o humor é poesia, o cômico é prosa”? Vejamos, por exemplo, o conto O Segundo Outono, em que é apresentada uma teoria climatológica do Pai, segundo a qual, o outono tardio, que se prolonga até ao inverno, é o resultado da contaminação do clima pela arte barroca, acumulada nos museus da região. Não deixa de ser uma tentativa de aproximação entre a ciência e a poesia, mas ao mesmo tempo sentimos aqui um piscar de olho do narrador a dizer que este casamento não pode ser tomado muito a sério. Schulz foi um observador atento da ciência contemporânea, e percebia como os físicos e os filósofos do novo século iam aos poucos desmanchar a visão coesa e familiar do universo, situando o homem numa realidade fragmentada e caótica. Mesmo sabendo que não há retorno ao passado, ele procurava, assim como os neognósticos do século 20, reconstruir, unir o que foi desintegrado pela ciência, unir de novo numa estrutura mítica, universal, homens, coisas e signos. Porém, seria difícil considerar Schulz mais um representante da gnose contemporânea, justamente pelo seu distanciamento da seriedade dessas ambições holísticas e pelo caráter não confessional de suas ideias. A sua opção pelo sentido e contra o absurdo parece ter a ver com a convicção de que para salvar o sentido da sua vida, o homem tem que se desprender da seriedade paralisante e mortífera das teorias, e com um senso de humor – que é a poesia -, com uma boa dose de ternura, tentar religar as partes separadas do seu universo. O humor de Schulz tem várias faces, coexiste com o patético e o burlesco, leva ao limite da paródia, é lírico, mas também interage com a ironia tão presente na sua obra. Numa carta ao colega Stanislaw Witkiewicz, ele diz que nos seus livros reina “um clima próprio dos bastidores, atrás da cena, onde os atores, tirando os seus trajes, morrem de rir ao pensarem no patético dos seus papéis”.
Quais são os perigos e as armadilhas da tradução de sua obra em português? Qual o risco de perda de um tradutor?
Mais do que as armadilhas semânticas que aparecem, porque elas sempre aparecem na tradução literária devido às diferenças culturais e linguísticas, neste caso específico foi preciso ficar especialmente atento ao ritmo. Os períodos sintáticos longos compostos de orações subordinadas, ramificadas, emaranhadas mantêm-se unidos não só pelos recursos da sintaxe, mas também pelo ritmo, pela musicalidade, e perdê-los seria perder a alma dessa prosa. Outro perigo pode vir da ousadia e da originalidade das construções metafóricas. Elas podem parecer muito estranhas para o leitor da tradução, parecer até um tropeço do tradutor e, ele, pode sucumbir à tentação de domesticar o que é estranho. Mas a graça da tradução não seria justamente levar o leitor a outras regiões do imaginário, mesmo as que cheirassem heresia, fazer com que ele esteja surpreendido assim como é surpreendido o leitor do original? Porém, quando a questão não é só surpreender, mas também encantar, como o faz o original, não há como recorrer aos métodos ou roteiros preestabelecidos, tem que entrar em jogo a intuição e aquilo que é chamado a arte de tradução. Os perigos não faltam, por isso também a dívida que o tradutor tem com os revisores, os verdadeiros parceiros de tradução.
O que seria mais duradouro e convincente da ficção de Schulz?
O mundo desta ficção, bem ancorado na tradição da mitologia e da cultura, se apresenta ao leitor como uma variante própria e inconfundível desta herança. Ela resulta da uma transfiguração dos modelos e poéticas existentes num processo de criação de uma mitologia pessoal, bastante divertida, poeticamente exuberante, repleta de humor e de ironia, mas em que está em jogo a preservação do sentido do mundo diante dos processos de sua desintegração. É o que talvez torne esta ficção duradoura e se não convincente, pelo menos sedutora.
É possível explicar o motivo de Schulz escrever em polonês e não em iídiche?
Sim, é possível, mas se ele escrevesse em iídiche, também não seria difícil explicar o motivo. Na cidade de Lvov, próxima a Drohobycz, havia um meio literário judaico muito dinâmico que antes da 2.ª Guerra produziu muitas obras em iídiche. Por exemplo, a escritora Debora Vogel, amiga de Schulz, escrevia em polonês e em iídiche, e até em hebraico. Havia também escritores judeus que escreviam só em polonês. Schulz participava desse meio, identificava-se com ele, publicava alguns dos seus textos nas revistas judaicas. Ele nasceu e até os 16 anos viveu no império austro-húngaro, numa cidade pequena, mas cosmopolita. A irradiação de Viena fazia com que ele fosse bem familiarizado com a literatura da língua alemã. Falava tão bem alemão como polonês. Mas a identificação com a língua polonesa deve ter sido mais forte, não só porque em sua casa paterna se falava essa língua, mas contavam também a iniciação na sua literatura e cultura e, depois, as intensas relações com o meio literário polonês. Escrever em polonês não o impedia de lembrar e parafrasear o que na tradição judaica era mais significativo e mais universal, como o culto do Livro, como a autoridade do Pai. O trabalho do artista era uma tarefa messiânica que dava continuidade ao Livro. A última obra de Schulz, que se perdeu na guerra e até hoje não foi encontrada, tinha o título de O Messias.
sábado, 19 de maio de 2012
Retorno ao sentido mítico
A gramática particular de Schulz é uma montagem de fragmentos de histórias eternas
18 de maio de 2012
LUIS S. KRAUSZ – O Estado SP
A publicação da obra completa de ficção de Bruno Schulz, que consiste das coletâneas de contos (que também podem ser lidas como romances) Sanatório sob o Signo da Clepsidra e Lojas de Canela, além de quatro contos avulsos, é um acontecimento da maior importância no cenário literário brasileiro. Venerado por escritores como Philip Roth, J.M. Coetzee, Cynthia Ozick e David Grossmann, que a ele dedicaram ensaios e reflexões, Schulz é um dos poucos nomes incontornáveis da literatura do século 20, ao lado de Franz Kafka, James Joyce e Marcel Proust. Mas sua estatura só foi reconhecida fora da Polônia postumamente. Para o pesar de todos que gostam de literatura, seu maior romance, intitulado O Messias, no qual trabalhava quando foi confinado pelos nazistas no gueto de sua cidade natal, Drohobycz (então Polônia, hoje Ucrânia), perdeu-se sob os escombros da 2.ª Guerra Mundial.
Sobreviveram, ainda, uns poucos ensaios, cartas e resenhas – que continuam inéditos em português.
No gueto de Drohobycz, Schulz foi protegido por um oficial alemão, para quem pintava afrescos – pintou, inclusive, um grande painel que decorava o clube da SS. E um rival desse oficial o matou, na rua, como ato de vingança. Seu prematuro desaparecimento representa, portanto, uma dupla tragédia: para além da vida humana que se perdeu da forma mais estúpida, o tiro disparado por este oficial também cravou uma lacuna profunda na literatura universal.
A prosa luminosa de Schulz partilha do poder inefável das antigas fórmulas encantatórias: as palavras, em sua obra de um lirismo absoluto, tornam-se signos de realidades esquecidas, numa poética de alta voltagem, concebida por alguém que partilhava de crenças cuja origem está nas antigas cosmogonias do Oriente Médio – como as cosmogonias bíblica e do antigo Egito – segundo as quais o mundo surgiu a partir da pronúncia de palavras.
Num breve ensaio intitulado A Mitificação da Realidade, Schulz postula que o ofício do escritor é reconduzir as palavras de volta ao seu sentido original, mítico. “A vida da palavra consiste no fato de que ela se espicha, em busca de milhares de associações, assim como o corpo esquartejado de uma serpente lendária cujos pedaços buscam um pelo outro, no escuro”, escreveu este autor de narrativas construídas a partir de pontas e de pedaços de mitos díspares, que criou uma bizarra mitologia do bricabraque, de um grande mercado de pulgas em que elementos das tradições bíblica, clássica, cristã e cabalística se confundem com episódios da vida cotidiana para desvelar realidades surpreendentes.
A mitologia particular de Schulz, então, é uma assemblage de fragmentos de histórias eternas – ou de pedaços de estátuas de deuses. Sua estética barroca, de demolição e de reagrupamento, lhe assegura o caráter sempre moderno, calcado na efemeridade dos significados, na desconstrução de todas as certezas e no movimento constante do princípio poético, representado entre uma forma e outra. O dinamismo inerente a cada palavra, que Schulz liberta, restituindo seu fulgor e vitalidade originais, transforma a leitura de suas obras num retorno ao intangível e ao misterioso, banidos do mundo numa época de amesquinhamento da consciência – que ele denomina nossa “era da pequenez” e à qual contrapõe a perdida “época da genialidade”.
Schulz nasceu há 120 anos, a 12 de julho de 1892, e sua Drohobycz natal era então uma cidade da Galícia, província do Império Austro-húngaro. Foi estudante universitário em Viena e filho de uma geração que acreditava na integração dos judeus no ecúmeno da monarquia habsburga – e que por isso mesmo rompera os laços com a tradição judaica. Forçado a abandonar os estudos de arquitetura por causa da 1.ª Guerra Mundial, tornou-se professor de desenho num colégio da cidade natal. Sua obra pictórica, hoje também bastante divulgada, retrata um universo sinistro cuja origem remonta ao imaginário de Goya.
Mesmo depois do desmembramento do império, em 1918, e da incorporação de Drohobycz à recém-criada república da Polônia, a cidade e boa parte de sua comunidade judaica continuaram como lugares cercados pela efígie do imperador Francisco José I. O império permaneceria na memória de sua família como signo de uma ordem inflexível, portadora de segurança, que foi rapidamente destruída no período entreguerras, tanto pelo desaparecimento das instituições monárquicas quanto pela descoberta de petróleo naquela região, que resultou num boom e colocou em xeque formas consagradas de vida e de sociabilidade. O crepúsculo da velha ordem coincidiu com a falência do comércio de seu pai, incapaz em adaptar-se às novas regras do jogo, precipitou a família na pobreza e levou o pai à loucura. Entrava em cena uma nova classe social, cegada por um projeto econômico tacanho e as consequências disso foram a vulgarização, a reificação e a banalização das relações sociais, bem como a transformação dos rituais solenes da velha classe mercantil num sistema de mero trânsito de mercadorias.
O desaparecimento do caráter na ordem social e sua substituição pelos simulacros vazios delineiam a perturbadora realidade subjacente às narrativas de Schulz onde, não por acaso, os manequins, as aves empalhadas e as figuras de cera são presenças constantes enquanto o pai que definha constela a impossibilidade do retorno das coisas à origem de suas existências. Os expedientes manipulativos que substituíram a dignidade das antigas instituições são por ele contrapostos aos restos de um universo desaparecido, onde cada atividade humana tinha um significado cósmico, isto é, em que cada trabalho era também um “estado”, uma atividade misteriosa, reservada a iniciados e, como tal, um ritual de comunhão com o invisível.
Na estética expressionista de Schulz, a dilatação do tempo e a dissecação dos mínimos gestos são recursos narrativos frequentes. Em suas mãos, um instante transforma-se em metáfora de uma estação inteira. É o que ocorre, por exemplo, no conto Outono, uma meditação sobre os presságios que pairam no ar quando a falência do verão já se torna irreversível, uma memória da era em que a vida transcorria em harmonia com as épocas do ano, e uma constatação da impossibilidade de se capturar o tempo. Em República dos Sonhos, outro dos contos inéditos no Brasil, Schulz contempla o território metafísico que é a fonte de sua poética – um universo cravado às margens do mundo, que é também uma terra prometida e uma cidade celestial, a partir da qual se relativizam todos os termos da realidade. O Cometa, que recorda a passagem do cometa de Halley, em 1910, se volta com ironia mordaz (como Lojas de Canela) sobre o universo da casa paterna, perpassado pelos encantos de uma civilização que não parece ter contradições com a natureza rebelde, mas que está prestes a sucumbir à era dos milagres da tecnologia e ao barateamento dos valores, quando “o condutor elétrico passa a abrir caminho ao coração das mulheres”. A Pátria, de estrutura bem mais tradicional do que as outras narrativas conhecidas de Schulz, tematiza o exílio dos egressos de mundos em extinção e antevê a náusea do assim chamado “mundo desenvolvido”: o protagonista, que subitamente ascende dos porões da nave social para as altas esferas, respira, até enjoar-se, a atmosfera sobrecarregada da prosperidade.
Assim, as diferenças entre a vida sob o signo do mito e a vida profana, sob o signo da moeda, estão no cerne das narrativas de Schulz. É sobre essas disparidades que ele constrói um dos episódios mais queridos de Lojas de Canela, ao comparar a mal-afamada Rua dos Crocodilos, com seus gestos vazios, seu caráter ambíguo e suas fachadas que são caricaturas de si mesmas, aos remanescentes do comércio secreto de um outro tempo. Já as províncias distantes, presas ao imobilismo da sociedade de raiz medieval, descritas em tom nostálgico em O Sanatório sob o Signo da Clepsidra, são signos de uma existência que espelha uma ordem superior, determinada pela experiência do sagrado e por hierarquias imutáveis.
A criação poética de Schulz, assim, é também um ritual de recolha dos escombros gerados pela marcha da história, e um retorno ao mito como forma de reparar aquilo que a humanidade arruinou com o sonho do progresso e a obsessão pelo futuro. Ao preservar o legado de um cosmo intocado pelas forças que acirraram a condição de alienação da humanidade, ele criou antídotos para a malaise de seu tempo – talvez também a do nosso tempo.
LUIS S. KRAUSZ É PROFESSOR DE LITERATURA HEBRAICA E JUDAICA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E AUTOR DE RITUAIS CREPUSCULARES: JOSEPH ROTH E A NOSTALGIA AUSTRO-JUDIACA (EDUSP) E DESTERRO: MEMÓRIAS EM RUÍNAS (TORDESILHAS), ENTRE OUTROS TÍTULOS
18 de maio de 2012
LUIS S. KRAUSZ – O Estado SP
A publicação da obra completa de ficção de Bruno Schulz, que consiste das coletâneas de contos (que também podem ser lidas como romances) Sanatório sob o Signo da Clepsidra e Lojas de Canela, além de quatro contos avulsos, é um acontecimento da maior importância no cenário literário brasileiro. Venerado por escritores como Philip Roth, J.M. Coetzee, Cynthia Ozick e David Grossmann, que a ele dedicaram ensaios e reflexões, Schulz é um dos poucos nomes incontornáveis da literatura do século 20, ao lado de Franz Kafka, James Joyce e Marcel Proust. Mas sua estatura só foi reconhecida fora da Polônia postumamente. Para o pesar de todos que gostam de literatura, seu maior romance, intitulado O Messias, no qual trabalhava quando foi confinado pelos nazistas no gueto de sua cidade natal, Drohobycz (então Polônia, hoje Ucrânia), perdeu-se sob os escombros da 2.ª Guerra Mundial.
Sobreviveram, ainda, uns poucos ensaios, cartas e resenhas – que continuam inéditos em português.
No gueto de Drohobycz, Schulz foi protegido por um oficial alemão, para quem pintava afrescos – pintou, inclusive, um grande painel que decorava o clube da SS. E um rival desse oficial o matou, na rua, como ato de vingança. Seu prematuro desaparecimento representa, portanto, uma dupla tragédia: para além da vida humana que se perdeu da forma mais estúpida, o tiro disparado por este oficial também cravou uma lacuna profunda na literatura universal.
A prosa luminosa de Schulz partilha do poder inefável das antigas fórmulas encantatórias: as palavras, em sua obra de um lirismo absoluto, tornam-se signos de realidades esquecidas, numa poética de alta voltagem, concebida por alguém que partilhava de crenças cuja origem está nas antigas cosmogonias do Oriente Médio – como as cosmogonias bíblica e do antigo Egito – segundo as quais o mundo surgiu a partir da pronúncia de palavras.
Num breve ensaio intitulado A Mitificação da Realidade, Schulz postula que o ofício do escritor é reconduzir as palavras de volta ao seu sentido original, mítico. “A vida da palavra consiste no fato de que ela se espicha, em busca de milhares de associações, assim como o corpo esquartejado de uma serpente lendária cujos pedaços buscam um pelo outro, no escuro”, escreveu este autor de narrativas construídas a partir de pontas e de pedaços de mitos díspares, que criou uma bizarra mitologia do bricabraque, de um grande mercado de pulgas em que elementos das tradições bíblica, clássica, cristã e cabalística se confundem com episódios da vida cotidiana para desvelar realidades surpreendentes.
A mitologia particular de Schulz, então, é uma assemblage de fragmentos de histórias eternas – ou de pedaços de estátuas de deuses. Sua estética barroca, de demolição e de reagrupamento, lhe assegura o caráter sempre moderno, calcado na efemeridade dos significados, na desconstrução de todas as certezas e no movimento constante do princípio poético, representado entre uma forma e outra. O dinamismo inerente a cada palavra, que Schulz liberta, restituindo seu fulgor e vitalidade originais, transforma a leitura de suas obras num retorno ao intangível e ao misterioso, banidos do mundo numa época de amesquinhamento da consciência – que ele denomina nossa “era da pequenez” e à qual contrapõe a perdida “época da genialidade”.
Schulz nasceu há 120 anos, a 12 de julho de 1892, e sua Drohobycz natal era então uma cidade da Galícia, província do Império Austro-húngaro. Foi estudante universitário em Viena e filho de uma geração que acreditava na integração dos judeus no ecúmeno da monarquia habsburga – e que por isso mesmo rompera os laços com a tradição judaica. Forçado a abandonar os estudos de arquitetura por causa da 1.ª Guerra Mundial, tornou-se professor de desenho num colégio da cidade natal. Sua obra pictórica, hoje também bastante divulgada, retrata um universo sinistro cuja origem remonta ao imaginário de Goya.
Mesmo depois do desmembramento do império, em 1918, e da incorporação de Drohobycz à recém-criada república da Polônia, a cidade e boa parte de sua comunidade judaica continuaram como lugares cercados pela efígie do imperador Francisco José I. O império permaneceria na memória de sua família como signo de uma ordem inflexível, portadora de segurança, que foi rapidamente destruída no período entreguerras, tanto pelo desaparecimento das instituições monárquicas quanto pela descoberta de petróleo naquela região, que resultou num boom e colocou em xeque formas consagradas de vida e de sociabilidade. O crepúsculo da velha ordem coincidiu com a falência do comércio de seu pai, incapaz em adaptar-se às novas regras do jogo, precipitou a família na pobreza e levou o pai à loucura. Entrava em cena uma nova classe social, cegada por um projeto econômico tacanho e as consequências disso foram a vulgarização, a reificação e a banalização das relações sociais, bem como a transformação dos rituais solenes da velha classe mercantil num sistema de mero trânsito de mercadorias.
O desaparecimento do caráter na ordem social e sua substituição pelos simulacros vazios delineiam a perturbadora realidade subjacente às narrativas de Schulz onde, não por acaso, os manequins, as aves empalhadas e as figuras de cera são presenças constantes enquanto o pai que definha constela a impossibilidade do retorno das coisas à origem de suas existências. Os expedientes manipulativos que substituíram a dignidade das antigas instituições são por ele contrapostos aos restos de um universo desaparecido, onde cada atividade humana tinha um significado cósmico, isto é, em que cada trabalho era também um “estado”, uma atividade misteriosa, reservada a iniciados e, como tal, um ritual de comunhão com o invisível.
Na estética expressionista de Schulz, a dilatação do tempo e a dissecação dos mínimos gestos são recursos narrativos frequentes. Em suas mãos, um instante transforma-se em metáfora de uma estação inteira. É o que ocorre, por exemplo, no conto Outono, uma meditação sobre os presságios que pairam no ar quando a falência do verão já se torna irreversível, uma memória da era em que a vida transcorria em harmonia com as épocas do ano, e uma constatação da impossibilidade de se capturar o tempo. Em República dos Sonhos, outro dos contos inéditos no Brasil, Schulz contempla o território metafísico que é a fonte de sua poética – um universo cravado às margens do mundo, que é também uma terra prometida e uma cidade celestial, a partir da qual se relativizam todos os termos da realidade. O Cometa, que recorda a passagem do cometa de Halley, em 1910, se volta com ironia mordaz (como Lojas de Canela) sobre o universo da casa paterna, perpassado pelos encantos de uma civilização que não parece ter contradições com a natureza rebelde, mas que está prestes a sucumbir à era dos milagres da tecnologia e ao barateamento dos valores, quando “o condutor elétrico passa a abrir caminho ao coração das mulheres”. A Pátria, de estrutura bem mais tradicional do que as outras narrativas conhecidas de Schulz, tematiza o exílio dos egressos de mundos em extinção e antevê a náusea do assim chamado “mundo desenvolvido”: o protagonista, que subitamente ascende dos porões da nave social para as altas esferas, respira, até enjoar-se, a atmosfera sobrecarregada da prosperidade.
Assim, as diferenças entre a vida sob o signo do mito e a vida profana, sob o signo da moeda, estão no cerne das narrativas de Schulz. É sobre essas disparidades que ele constrói um dos episódios mais queridos de Lojas de Canela, ao comparar a mal-afamada Rua dos Crocodilos, com seus gestos vazios, seu caráter ambíguo e suas fachadas que são caricaturas de si mesmas, aos remanescentes do comércio secreto de um outro tempo. Já as províncias distantes, presas ao imobilismo da sociedade de raiz medieval, descritas em tom nostálgico em O Sanatório sob o Signo da Clepsidra, são signos de uma existência que espelha uma ordem superior, determinada pela experiência do sagrado e por hierarquias imutáveis.
A criação poética de Schulz, assim, é também um ritual de recolha dos escombros gerados pela marcha da história, e um retorno ao mito como forma de reparar aquilo que a humanidade arruinou com o sonho do progresso e a obsessão pelo futuro. Ao preservar o legado de um cosmo intocado pelas forças que acirraram a condição de alienação da humanidade, ele criou antídotos para a malaise de seu tempo – talvez também a do nosso tempo.
LUIS S. KRAUSZ É PROFESSOR DE LITERATURA HEBRAICA E JUDAICA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E AUTOR DE RITUAIS CREPUSCULARES: JOSEPH ROTH E A NOSTALGIA AUSTRO-JUDIACA (EDUSP) E DESTERRO: MEMÓRIAS EM RUÍNAS (TORDESILHAS), ENTRE OUTROS TÍTULOS
An die musik de Schubert
Dietrich Fischer Dieskau
Du holde Kunst, in wieviel grauen Stunden
Wo mich des Lebens wilder Kreis umstrickt,
Hast du mein Herz zu warmer Lieb entzünden,
Hast mich in eine bess’re Welt entrückt,
In eine bess’re Welt entrückt
Oft hat ein Seufzer, deiner Harf’ entflossen,
Ein süsser heiliger Akkord von dir
Den Himmel bess’rer Zeiten mir erschlossen,
Du holde Kunst,ich danke dir dafür,
Du holde Kunst, ich danke dir!
Español
¡Oh, arte benévolo, en cuántas horas sombrías,
cuando me atenaza el círculo feroz de la vida,
has inflamado mi corazón con un cálido amor,
me has conducido hacia un mundo mejor!
Con frecuencia se ha escapado un suspiro de tu arpa,
un dulce y sagrado acorde tuyo
me ha abierto el cielo de tiempos mejores.
¡Oh, arte benévolo, te doy las gracias por ello!
Du holde Kunst, in wieviel grauen Stunden
Wo mich des Lebens wilder Kreis umstrickt,
Hast du mein Herz zu warmer Lieb entzünden,
Hast mich in eine bess’re Welt entrückt,
In eine bess’re Welt entrückt
Oft hat ein Seufzer, deiner Harf’ entflossen,
Ein süsser heiliger Akkord von dir
Den Himmel bess’rer Zeiten mir erschlossen,
Du holde Kunst,ich danke dir dafür,
Du holde Kunst, ich danke dir!
Español
¡Oh, arte benévolo, en cuántas horas sombrías,
cuando me atenaza el círculo feroz de la vida,
has inflamado mi corazón con un cálido amor,
me has conducido hacia un mundo mejor!
Con frecuencia se ha escapado un suspiro de tu arpa,
un dulce y sagrado acorde tuyo
me ha abierto el cielo de tiempos mejores.
¡Oh, arte benévolo, te doy las gracias por ello!
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