terça-feira, 17 de setembro de 2013

Pastores da Noite

“E, se não fôssemos nós, pontais ao crepúsculo, vagarosos caminhantes dos prados do luar, como iria a noite – suas estrelas acendidas, suas esgarçadas nuvens, seu manto de negrume – como iria ela, perdida e solitária, acertar os caminhos tortuosos dessa cidade de becos e ladeiras? Em cada ladeira um ebó, em cada esquina um mistério, em cada coração noturno grito de súplica, uma pena de amor, gosto de fome nas bocas de silêncio, e Exu solto na perigosa hora das encruzilhadas.”


- Jorge Amado

RELAÇÃO ÍNTIMA

 «Todos os impulsos, as emoções, as manifestações de vontades imagináveis, todas estas contingências da alma humana lançadas pela razão na imensidade negativa da noção de «sentimento», podem ser expressas por meio da multidão infinita das melodias possíveis, mas sempre exclusivamente na generalidade da forma pura, sem a substância, sempre somente como coisa em si, e não como aparência, de algum modo como a alma da aparência, incorporalmente. Esta relação íntima, que existe entre a música e a verdadeira essência de todas as coisas, explica-nos também por que, quando com pretexto de uma cena, de uma ação, de um evento, de um ambiente qualquer, ressoa uma música adequada, esta parece revelar-nos a significação mais secreta e afirmar-se como o mais exato e mais luminoso dos comentários; compreendemos igualmente como é que aquele que se abandona sem reservas à impressão produzida por uma sinfonia julga ver desenrolar-se perante os seus olhos todos os acontecimentos imagináveis da vida e do mundo.»

Nietzsche, 1872
in A Origem da Tragédia
Guimarães Editores, p.130

ESTUDO DO OBJETO


Uma lição de poesia - de Zbigniew Herbert

1
o mais belo
é o objeto que não existe
ele não serve para carregar água
nem para preservar as cinzas de um herói
não foi acalentado por Antígona
nem nele um rato se afogou
de orifício, nenhum resquício
pois é completamente aberto
visto
de todos os lados,
quase não é
antevisto
os feixes de todas as suas linhas
confluem num jato de luz
nem
cegueira
nem
morte
podem roubar o objeto que não existe

2
marque o lugar onde ficava
o objeto
que não existe
com um quadrado negro
ele será
um mero réquiem pela bela ausência
vigoroso lamento
aprisionado
num quadrilátero

3
agora
todo o espaço
dilata-se como um oceano
um furacão fustiga
o veleiro negro
a asa de uma nevasca
circunda o quadrado negro
e a ilha submerge
sob a disseminação salina

4
o que se tem agora
é espaço vazio
mais belo que o objeto
mais belo que o lugar que ele deixa
é o antemundo
um paraíso branco
de possibilidades
lá você pode entrar
gritar
vertical-horizontal
relâmpagos perpendiculares
golpeiam o horizonte nu
podemos parar aqui
de todo modo você já criou o mundo

5
oriente-se
pelo olho interior
não se renda
a murmúrios sussurros estalidos
é o mundo não criado
impresso nos portões da paisagem
anjos ofertam
chumaços rosados das nuvens
por toda parte árvores implantam
filamentos verdes desalinhados
reis celebram a púrpura
e comandam trompetistas
auricolores
até a baleia pede um retrato
oriente-se pelo olho interior
nada aceite além

6
extraia
da sombra do objeto
que não existe
do espaço polar
das inflexíveis quimeras do olho interno
uma cadeira
bela e inútil
como uma catedral no deserto
ponha sobre a cadeira
uma toalha de mesa amarrotada
adicione à ideia de ordem
a ideia de aventura
que seja uma confissão de fé
diante do vertical em combate com o horizontal
que seja
mais silenciosa que anjos
mais orgulhosa que reis
mais verdadeira que uma baleia
que tenha a face das últimas coisas
pedimos que a cadeira desvele
as dimensões do olho interno
a íris da necessidade
a pupila da morte

Tradução: Rogério Bettoni

"Pacto de Sangue"

"Nobres há muitos. É verdade.
Verdade. Homens muitos. É muito verdade.
Verdade que com um lenço velho
As nossas mãos foram enlaçadas.

Nós, como aliados, eu digo.
Panos, só um, tal qual afirmo.
A lua ilumina o meu feitio.
O sol ilumina o aliado.

Água de Héler! Pelo vaso sagrado!
Nunca esqueça isto o aliado.
Juntos, combater, eu quero!
Com o aliado, derrotar, eu quero!

A lua ilumina o meu feitio.
O sol ilumina o aliado.
Poderemos, talvez, ser derrotados
Ou combatidos, mas somente unidos."

(Ruy Cinatti -  da obra "Timor amor")