BRUNO P. W. REIS·SEXTA, 7 DE ABRIL DE 2017
Recortes do relatório em pílulas, seguidos de minhas
impressões em itálico.
Dois eixos essenciais e imediatos:
1) o estabelecimento do financiamento público de campanhas
combinado com doações de pessoas físicas
A criminalização das doações privadas, alcançando agora até
as doações legais, tornam efetivamente inviável, pelo menos por algum tempo, a
existência de doações privadas volumosas. Mas isso não é um bem em si. Não é
uma conquista. É um preço que pagaremos pela aberração que foi a adoção de
tetos proporcionais à renda dos doadores (só o Brasil tem isso). Se as fontes
forem devidamente pulverizadas por tetos nominais da ordem de uns 5 mil reais
para pessoas físicas (aí incluídas as autodoações) e 50 mil para pessoas
jurídicas por ciclo eleitoral (valores altos o bastante para viabilizar uma
campanha por esforço próprio de arrecadação, mas baixos o bastante para impedir
que um doador exerça patronato exclusivo sobre uma campanha), então a
existência de um mercado pujante de financiamento privado será um sintoma de
saúde da democracia, baixando as barreiras à entrada e viabilizando desejável
arejamento do sistema partidário, sem necessariamente desestabilizá-lo. O
financiamento público é necessário, mas não deveria ser exclusivo – ou tão
esmagadoramente dominante.
2) a instituição de listas partidárias preordenadas para as
eleições proporcionais.
Sou até suspeito pra falar. Sou o mais enfático defensor da
lista preordenada que eu conheço. Já escrevi rios de bytes sobre isso aqui no
Facebook, e pelo menos dois artigos um pouco mais extensos: este aqui
(http://interessenacional.com/index.php/edicoes-revista/tirando-os-partidos-do-armario/),
de 2010, e este outro, talvez mais amadurecido
(http://www.fpabramo.org.br/publicacoesfpa/wp-content/uploads/2015/06/Reforma-política-BAIXA.pdf,
pp. 121-141), de 2015.
Entre várias reações contrárias às listas e, sobretudo, uma
óbvia hostilidade da imprensa, tem sido possível detectar certa hostilidade por
jovens militantes em início de carreira, preocupados com suas perspectivas
eleitorais sob a lista. Como me disse um amigo, estes jovens, atraídos pela
possibilidade de se elegerem, “rejeitam veementemente a possibilidade de ter de
entrar na fila, pra quem sabe um dia se elegerem”. Isto me parece uma
claríssima ilusão. Vão ter de se submeter muito mais duramente ao tacão de
algum chefe eterno, inamovível, para terem chance sob a lista aberta. Em
convenções, basta a exigência de voto secreto para o controle dos dirigentes
sobre os resultados ser gravemente erodido.
Outras mudanças, para complementar os dois eixos.
a) o aprimoramento dos instrumentos de democracia direta
Campo minado, a ser explorado com extremo cuidado. A
tentação nessa direção é grande numa conjuntura como a nossa. Mas tudo o que
menos precisamos nesse momento é que penosos acordos políticos nessa quadra
difícil venham a ser desautorizados por plebiscitos explorados taticamente por
demagogos para fins estratégicos pessoais. Estão aí o Brexit e, principalmente,
o acordo de paz na Colômbia, para nos advertir da gravidade dos riscos implicados.
Mesmo no que toca à vida partidária, na forma da exigência de prévias, eu iria
com cuidado. Um diretório regional orgânico, constituído por facções de longa
militância, com convivência arduamente construída sobre compromissos políticos
longamente decantados, pode se ver atropelado numa prévia por um esforço de
filiações por aventureiros bem financiados com precário vínculo partidário. É
preciso lembrar: alargar a abrangência de uma disputa é aumentar o peso do
dinheiro no seu resultado.
b) a alternância de gênero na composição de listas
partidárias,
A viabilização de quotas variadas (gêneros, raças etc.) é um
dos principais trunfos da lista preordenada. Eu não correria direto para uma
quota 50/50 de gêneros, porém. Pois esta é a melhor maneira de se neutralizar
politicamente um tema muito relevante e que deveria ser melhor explorado. Se
todos os partidos são obrigados a intercalar homens e mulheres pela metade,
imediatamente todos os partidos atendem a quota, e vai ser difícil explorar nas
campanhas a eventual diferença entre uma lista repleta de mulheres com
histórica militância partidária de uma lista repleta de esposas e filhas de
caciques. Já se a quota é um piso de, digamos, no mínimo uma mulher a cada três
nomes, o partido que quiser emitir um recado mais claro nessa matéria terá a
oportunidade de, ao superar o piso, emitir um recado, tematizar o assunto
agressivamente na campanha e tentar capitalizar o debate.
c) ajustes no processo de registro de candidaturas
Brevíssimo comentário adiante.
d) mais rigor na fiscalização da divulgação de pesquisas
eleitorais.
O melhor antídoto contra a existência de más pesquisas
eleitorais é a existência de muitas pesquisas eleitorais. Ainda mais com a
viabilização contemporânea de mecanismos de identificação de tendências pela
agregação quase instantânea dos resultados de todas as pesquisas que quisermos,
em busca das médias perceptíveis por debaixo do ruído produzido pela inevitável
variação de cada uma. Por isso é contraproducente a introdução de mecanismos
que podem inibir a divulgação de pesquisas. Quanto menos pesquisas houver,
maior a chance de manipulação das expectativas pela divulgação de um resultado
"fora da curva". E, não importa o rigor adotado, sempre é possível um
resultado anômalo. O Brasil já é um país que impõe exigências consideráveis
para a divulgação de pesquisas. Criar dificuldades ainda maiores é um tiro no
pé. O simples blecaute ao final da campanha proposto deixa o eleitorado no
escuro enquanto a elite política, sozinha, consome suas “internas” e decide se
vale a pena propalar boataria. Não, obrigado: quero ser bem informado até o dia
da eleição, e entendo que eu tenho o mesmo direito que os candidatos quanto a
isso.
As mudanças propostas para o sistema eleitoral devem valer
apenas para as eleições de 2018 a 2022. A partir de então, caso aprovada
Proposta de Emenda à Constituição também aqui incluída para análise, passaria a
vigorar o sistema distrital misto.
É meritória a tentativa de, ao propor algo que pareça viável
aqui e agora, não se perder de vista algum objetivo de longo prazo, que se
exprima numa proposta eventualmente considerada ideal mas de adoção
impraticável para já. Pessoalmente, considero os sistemas mistos arranjos
engenhosos e defensáveis, em que pese as dificuldades imediatas em sua
operacionalização. Contudo, os legisladores devem ter em mente que, uma vez
introduzida qualquer mudança, ela produz efeitos imediatos no alinhamento dos
interesses atuantes no sistema, mudando a configuração de forças. Ou seja, na
ausência de um aprofundamento contínuo da crise, é provável que os vencedores
em 2018 e 2022 venham a se mostrar interessados na manutenção das regras
eventualmente adotadas agora e passem a obstruir a mudança prevista para 2026.
E se por acaso a crise continuar a se agravar, de todo modo a mudança produzida
agora será fragilizada e todo o processo poderá ser abortado, revertido, ou
receber nova direção. Ou seja, é bastante improvável que a trajetória imaginada
aqui agora se viabilize até 2026. Nada disso impede a proposição de um plano,
claro. Acredito que os legisladores tenham clareza quanto a isto.
70% dos recursos provenientes do FFD em pleitos para cargos
do Poder Executivo e 30% em pleitos para cargos do Poder Legislativo.
Por que não deixar os partidos decidirem quanto a isso? A
única razão que consegui imaginar foi evitar possível "predação
financeira" das campanhas ao legislativo pela voracidade da chapa para o
executivo. Nesse caso, deveria ser fixado um piso de 30% como o mínimo a ser
gasto nas campanhas para o legislativo.
Extinção das coligações proporcionais.
Até que enfim! Já vem tarde... A sugestão das federações
partidárias, no entanto, previstas no relatório Caiado em 2003, é engenhosa, e
pode se constituir em oportuna bóia de sobrevivência para partidos menores.
Poderia ser usada para negociação no Congresso. Ela é bem superior às
coligações porque os partidos federados na campanha terão de continuar a atuar
como um único partido durante a legislatura. Por isso eu sugeriria que sua
duração mínima fosse de quatro anos (o relatório de 2003 sugeriu três anos).
Exigir que a formação das listas seja precedida de
convenções, prévias ou primárias para a escolha de seus candidatos.
Convenções, claro que sim. O relatório de 2003 determinava
também que, nelas, o voto fosse secreto. Quanto a prévias ou primárias, esse é
um terreno onde eu só avançaria com extremo cuidado. Como eu disse antes,
tipicamente elas favorecem o poder econômico – mais do que as convenções.
Vedar o repasse de financiamento público para partidos que
mantenham para além de um período razoável a provisoriedade de seus órgãos
dirigentes.
Excelente medida. É preciso fazer disseminar os diretórios
regionais e municipais, e coibir a eternização das comissões provisórias.
Proporção de pelo menos um gênero distinto para cada 3
colocações.
Agora vi que o piso é de pelo menos 1/3. Apoio a proporção,
pelo motivo que já expus acima.
Regulamentação do “Recall”
Como regular de maneira justa o "recall" sob
sistema proporcional em distritos com magnitudes altas como as nossas? Ninguém
vai sobreviver, e a ameaça pelos adversários vai servir para a intimidação de
parlamentares em sua atuação política.
Apresentação de projetos de Decreto Legislativo destinados a
convocar plebiscitos e referendos,
I. apresentados por qualquer membro ou comissão do
parlamento, sem necessidade de
apoiamento de um terço dos pares exigido pela lei atual
Relativamente inócuo. De todo modo, o projeto tem de ser
votado e aprovado por maioria qualificada, não? O único efeito que imagino é
seu eventual uso pela minoria como eventual integrante de arsenal
obstrucionista, com parlamentares da oposição propondo plebiscitos a toda hora
para botar maiorias governistas na defensiva. Não sei se gosto do cenário...
II. tramitar a partir de solicitação específica do
Presidente da República
Acho altamente problemático e indesejável. Será uma
excelente maneira de presidentes tentarem pressionar e eventualmente intimidar
o Congresso, ameaçando-o com a convocação de plebiscitos toda vez que tiverem
dificuldades com sua agenda no Congresso.
III. tramitar a
partir de solicitação específica dos cidadãos, desde que observados os mesmos requisitos de subscrição da iniciativa
popular de leis
Só se o Congresso puder emendar o projeto proposto, caso
aprovado no plebiscito. É preciso notar que, na iniciativa popular de leis, o
povo propõe, mas depois o projeto tramita normalmente no Congresso. Se for
possível substituir a tramitação por um plebiscito, o debate parlamentar e a
necessária barganha entre os interesses afetados ficarão prejudicados.
Explicitar a possibilidade da realização de plebiscitos e
referendos concomitantemente com eleições gerais e municipais.
Boa ideia.
Subscrição eletrônica de projetos de iniciativa popular
Ok. Entendo que seria oportuno viabilizar também sugestões
de emendamento popular de projetos em tramitação, a partir de plataformas wiki.
Naturalmente, tais sugestões poderão ser acatadas ou não pelos relatores dos
projetos. Além de poder fornecer desejável massa crítica às discussões, essa
iniciativa também viabilizaria a vocalização de interesses por grupos menos
organizados, num esforço de contrabalançar a influência desproporcional de
alguns lobbies mais poderosos.
AJUSTES NA LEGISLAÇÃO
É a parte que contempla, digamos, as mudanças mais
gratuitas. Poderão vir ou não a produzir melhorias, é difícil dizer, em alguns
casos. Podem também servir para negociação posterior durante a tramitação da
reforma, mas poderão também vir a onerar a proposta, desviando o foco de
discussões bem mais importantes.
Fim dos vices.
É a proposta mais inesperada, mas talvez não seja má
ideia... É uma função frequentemente ociosa, e ocasionalmente
desestabilizadora. Provavelmente seria melhor que não existisse mesmo.
Fim da reeleição, com mandatos únicos de cinco anos.
Mais controvertido. A experiência sob FHC e Lula foi
positiva, e mesmo no âmbito municipal há alguma pesquisa que sugere bons
resultados da continuidade administrativa, embora haja queixas também sobre
esquemas de poder relativamente invulneráveis que teriam sido criados. Mas não
acho interessante a troca por mandatos de cinco anos. Isso não apenas produzirá
desencaixe entre as eleições para o executivo e o legislativo, mas fará com que
cada mandato no executivo tenha um encaixe específico com as eleições
legislativas. Ok, em princípio, que haja eleições parlamentares a meio mandato
do governante. Mas é mais problemático que isso se dê de maneira ora
coincidente, ora no meio, ora no último ou no primeiro ano de mandato do
governante. Cada mandato executivo terá um encaixe diferente com o calendário
legislativo, e receio que isso dificulte sobremaneira o estabelecimento de
alguma rotina associada à articulação e à composição de maiorias parlamentares.
Levaríamos décadas para experimentar e tentar entender como se dá a dinâmica
esperável em cada tipo de encaixe.
Proibição de que parlamentares ocupem postos no Poder
Executivo.
Discordo. Isso enfraquece ainda mais o Congresso numa
relação que já é assimétrica e desfavorável com o Poder Executivo. Ministério é
função política, não técnica. Idealmente, ministros devem ser políticos,
assessorados por técnicos, que deveriam se restringir ao segundo escalão. Que
eles tenham inserção parlamentar é uma consequência natural da participação dos
partidos na formulação das plataformas e prioridades dos governos, bem como na
negociação das maiorias no parlamento. Impedir parlamentares de participarem de
ministérios diminui o peso dos partidos na formação dos governos e diminui a
importância das plataformas partidárias nas eleições legislativas. Vai na
contramão daquilo que se espera ganhar com as listas preordenadas.
Mudanças nas regras para suplência de mandatos de Senador.
Um suplente apenas (hoje são dois), e eleição de senador na
eleição seguinte em caso de substituição definitiva. Ok, melhora.
Mandatos de membros de tribunais.
Dada a deterioração do decoro na conduta pública dos atuais
ocupantes de cadeiras em tribunais superiores, a introdução de mandato fixo é
imperiosa. Dez anos me parecem adequados, para se começar. Medida muito
bem-vinda.
Registro prévio de candidaturas.
Sim, a Justiça Eleitoral se ressente hoje dos prazos exíguos
com que tem sido cada vez mais confrontada. Outra coisa que se poderia cogitar
é a antecipação das eleições ou o adiamento das posses, buscando assegurar que
todo recurso contra resultados eleitorais possa ser julgado de modo terminante
antes da diplomação dos eleitos. É grave a possibilidade de que um político
possa ter sua eleição contestada quando já exerce o mandato. Isso poderá ser (e
de fato tem sido) utilizado de maneira estratégica por seus adversários,
desestabilizando o exercício do poder democrático pelos eleitos.
Tornar mais rígido o processo de contratação e divulgação de
pesquisas eleitorais.
Discordo enfaticamente, dei minhas razões no início.
Íntegra do relatório aqui: http://www.camara.gov.br/proposicoe...