quarta-feira, 10 de julho de 2013

Angustia

"Lembro-me de um fato, de outro fato anterior ou posterior ao primeiro,
mas os dois vêm juntos. E os tipos que evoco não têm relevo. Tudo
empastado, confuso. Em seguida os dois acontecimentos se distanciam e entre eles nascem outros acontecimentos que vão crescendo até me darem sofrível noção de realidade. As feições das pessoas ganham nitidez. De toda aquela vida havia no meu espírito vagos indícios. Saíram do entorpecimento recordações que a imaginação completou."


- Graciliano Ramos, em "Angustia", 1936.

O quarto de Jacob

"Quer o censuremos ou elogiemos, não há como negar o cavalo selvagem que trazemos dentro de nós. Ele galopa desenfreado; cai na areia, exausto; sente a terra girar; tem – sem dúvida – um impulso de afeto para com pedras e relvas, como se a humanidade tivesse acabado; e quanto aos homens e mulheres, vamos esquecê-los – não podemos ignorar o fato de que tal desejo muitas vezes nos domina."


- Virginia Woolf
A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circulava agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos.
MIA COUTO


No livro "Terra Sonâmbula"

Beco sem saída

( Ahmad shamlou , Irã 1979)

Eles cheiram sua boca
Para descobrir se você disse a alguém:
Eu te amo!
Eles cheiram seu coração
Tempos tão estranhos, minha cara.

Eles punem o amor 
em vias publicas
por açoitamento.
Devemos esconder o nosso amor em armários escuros!
Nesse tortuoso beco de um amargo frio
Eles mantem seu fogo vivo
Queimando nossos poemas e canções;
Não ponha sua vida em perigo por seus pensamentos!
Tempos tão estranhos ,minha cara!
Aquele que bate a sua porta no meio da noite
Sua missão é quebrar a sua lâmpada!
Devemos esconder nossas luzes em arrmários escuros!!!
Observe! Açougueiros estão em guarda nas ruas
Com seus cutelos ensanguentados e tabuas de corte
Tempos tão estranhos, minha cara.
Eles cortaram os sorrisos dos lábios
e as canções das gargantas.
Devemos esconder nossas emoções em armários escuros!

Ele assam canarios 
num fogo de jasmim e violetas!
Tempos tão estranhos ,minha cara.

Intoxicado pela vitória ,
Satan desfruta um banquete 
Em nossa mesa de luto.
Devemos esconder nosso Deus em armários escuros!


O SOBREVIVENTE



Carlos Drummond de Andrade

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema – uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para a digestão.
Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura.
Mas até lá, felizmente, estarei morto.
Os homens não melhoraram
E matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
Desconfio que escrevi um poema.

 

Graciliano Ramos


Graciliano Ramos é um escritor cujo engajamento aparece no texto. É de dentro para fora. Natural, portanto, ver em todas as mesas da FLIP que trataram de sua obra certo contexto mais político. De minha parte fiquei feliz. Embora não possa afirmar – e seria irresponsabilidade se o fizesse, que ele apoiaria os atuais protestos, creio em seu posicionamento. Provavelmente estaria do lado daqueles que pedem: educação, saúde, segurança e infraestrutura. Destilaria todo o seu humor sarcástico contra a corrupção. Afinal, integridade sempre foi seu lema. Tenho observado quando passeio entre as postagens uma parcela muito grande, em tom jocoso, desmerecendo o movimento que foi para as ruas. Sou pela normalidade institucional, considero o atual governo legítmo, afinal foi eleito democraticamente, mas não tampo o sol com a peneira. Há muita coisa errada e o povo está certo em se manifestar. Os movimentos nasceram nas redes sociais, com a desordem própria delas. O Facebook invadiu as calçadas do jeito que é. Segmentos mais e menos conscientes representados. O mundo agora é assim, não espera lideranças. Há muito a ser pensado. Um país que tem Renan Calheiros como presidente do Senado, Henrique Alves como presidente da Câmara, Marco Feliciano na Comissão dos Direitos Humanos, deve ser olhado com atenção. Mais uma vez tentando adivinhar o sentimento “graciliânico” acredito que estaria pessimista, como sempre. Seria o mais razoável ante o quadro atual.

 (...)

Ricardo Ramos Filho

NOITES BRANCAS


"...há em Petersburgo muitos recantos estranhos. Nesses lugares parece que não penetra aquele mesmo sol que brilha para todos os petersburguenses, mas sim um outro, novo, enviado como que de propósito para esses recantos, e que brilha com uma luz diferente e particular. Nesses lugares, Nástienka querida, vive-se uma vida absolutamente diferente, que não se parece em nada com a que ferve à nossa volta, uma vida que poderia existir num reino distante e desconhecido mas não junto a nós, nesta nossa época séria, seríssima. Essa vida é uma mistura de algo puramente fantástico, calidamente ideal e, ao mesmo tempo (ai, Nástienka!), palidamente prosaico e comum, para não dizer vulgar até o inverossímil." (Fiodor Dostoievski)
 

 

Dialogo com Guimarães Rosa

"Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta. Vou lhe revelar um segredo: creio já ter vivido uma vez. Nesta vida, também fui brasileiro e me chamava João Guimarães Rosa. Quando escrevo, repito o que vivi antes. E para estas duas vidas um léxico apenas não me é suficiente. Em outras palavras: gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um magister da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar da sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade."
 
- João Guimarães Rosa, em entrevista a Günter Lorenz