HISTÓRIA
Os exilados da Sibéria brasileira
Após as revoltas da Vacina e da Chibata, no início do século
20, milhares de “criminosos” foram banidos do Rio e enviados ao Acre
Publicado em 03/05/2014 | DIEGO ANTONELLI
Mais de duas mil pessoas tiveram suas vidas profundamente
alteradas pelo governo brasileiro durante as revoltas da Vacina (1904) e da
Chibata (1910). Desterrados, ou seja, banidos à revelia do Rio de Janeiro para
o Acre, muitos desses exilados foram tachados de criminosos políticos, apesar
de não existir condenação judicial alguma. Foi assim que crianças, mulheres e
homens pobres se viram ao léu a mais de quatro mil quilômetros de distância de
sua terra natal.
A pesquisa sobre o tema é do historiador da Universidade
Federal do Acre (UFAC) Francisco Bento da Silva, que realizou uma tese de
doutorado sobre o assunto pela Universidade Federal do Paraná em 2010 e, no ano
passado, lançou o livro Acre, a Sibéria Tropical. Ele conta que, nos dois casos
(1904 e 1910), a motivação para a expulsão dessas pessoas das terras
fluminenses envolviam variáveis complexas.
TRATADO
O estado do Acre virou parte do Brasil em 1903, quando foi
assinado o Tratado de Petrópolis com a Bolívia. Mesmo quando ainda pertencia ao
país vizinho, a região já vinha sendo ocupada paulatinamente por brasileiros. O
território era rico em borracha natural, isolado e vazio demograficamente.
PESQUISA
O historiador Francisco Bento da Silva relata que teve um
primeiro contato mais efetivo com a história dos desterrados quando em um
jornal antigo do Acre leu uma matéria falando sobre a chegada de “quebra
lampiões” (outro termo genérico para se referir aos revoltosos) na região. “Em
2004, ocorreu um boom de publicações e matérias sobre a Revolta da Vacina, que
de maneira muito simplificada falavam de pessoas desterradas para o Acre.
Passei então a pesquisar cada vez mais sobre o assunto”. Em 2013, ele adaptou a
tese de doutorado para o livro Acre, a Sibéria tropical. Informações
chicobento_ac@yahoo.com.br.
REPÚBLICA
Governo autoritário anistiou só “gente graúda”
O pesquisador Francisco Bento da Silva afirma que o
autoritarismo foi uma marca muito presente durante a Primeira República no
Brasil, período também conhecido como República Velha. Ele explica que a nação
era um país recém-saído da escravidão, com distinções de classe e cor muito
visíveis, somada à falta de cidadania e direitos sociais às camadas mais pobres
da população.
“A própria adoção de sucessivos
estados de sítio, instrumento que permitia o desterro, era um ato presidencial
e a posterior anistia só atingiu gente graúda (militares de alta patente,
jornalistas e políticos), as chamadas “canas miúdas” foram esquecidas no Acre
após terem sido desterradas e não houve nenhuma ação para o regresso dessas pessoas
aos seus locais de origem”, explica Bento.
Mesmo quem foi tecnicamente anistiado ficou à deriva. “O
governo que fretou navios para desterrá-los não providenciou os seus regressos
e nem deseja que voltassem. Os poucos que voltaram vieram por conta própria e
com a ajuda de parentes e terceiros”, ressalta. Assim, a grande maioria jamais
mais regressou ao Rio de Janeiro.
Entre elas, destacam-se as questões de ordem disciplinar,
inadequações às normas sociais, como jogatinas, prostituição até a prática da
capoeira, delitos leves, trabalhos informais e a vida nos cortiços. Além, é
claro, dos aspectos políticos e econômicos, que levaram muitas pessoas a
participarem das duas revoltas.
Segundo Bento, os desterrados formavam um grupo menor dos
envolvidos nos dois conflitos. “Algumas pessoas até foram desterradas sem terem
participação nas revoltas, como foi o caso dos prisioneiros recolhidos na Casa
de Detenção do Rio de Janeiro”, explica. A versão oficial na época foi que os
desterros serviram para tirar da então capital nacional os “vagabundos e
criminosos irrecuperáveis, que em muitos momentos eram manipulados por
adversários políticos do governo com intuito de golpe ou fragilização da ordem
estabelecida”.
“O desterro dessas pessoas foi
utilizado para dar um exemplo de como o governo agia e agiria diante de
quaisquer revoltas”, explica o pesquisador. Todas embarcavam em navios para
desembarcar na Região Amazônica.
Sem adversários
Ao ser incorporado ao Brasil em 1903, o Acre passou a ser o
único território federal brasileiro administrado diretamente pela União. “Desta
forma, o governo federal não teve que negociar com autoridades locais ou
adversários políticos regionais”, explica Bento. Além dessa questão de ordem
política, havia outros aspectos simbólicos. “O Acre era visto com a terra da
riqueza da borracha, que precisava de braços para o trabalho extrativo. Além de
ser um local tomado pelo vazio demográfico e de morte pelas doenças tropicais
endêmicas, com uma fronteira política tensionada”, salienta o pesquisador.
A recepção dos nativos acrianos aos desterrados não foi das
mais calorosas, pois a notícias na época davam conta da chegada de vagabundos e
criminosos. “Essas pessoas já chegaram com forte rejeição. Foram tratadas com
desconfiança e temor. Muitos certamente tiveram que, nos anos seguintes,
refazer suas identidades e esconder o passado de desterrados.”
Capital era palco dos protestos
Foram duas revoltas que envolveram múltiplos sujeitos e
interesses. A chamada Revolta da Vacina ocorreu em novembro de 1904, tendo como
estopim o projeto de lei que regulamentava a obrigatoriedade da vacinação
antivariólica na então capital da República, o Rio de Janeiro. “A
obrigatoriedade afetava o cotidiano de inúmeras pessoas que tinham aversão à
vacinação por descrença na sua efetividade, por questões de ordem moral,
religiosa e até princípios filosóficos, como era o caso dos positivistas”, diz
o historiador Francisco Bento.
Ele afirma também que essa antipatia foi aproveitada pelos
adversários políticos do então presidente Rodrigues Alves para insuflar a
população insatisfeita com inflação alta, falta de moradias, transtornos das
reformas urbanas, política de repressão aos cortiços, prostituição,
vagabundagem, trabalhadores informais, entre outros.
“Assim como a Revolta da Vacina não
ocorreu só pela questão da vacina, a Revolta da Chibata não foi algo que
ocorreu só pela questão do uso dos castigos físicos contra marinheiros, isso
foi também o estopim”, afirma Bento. Em 1910, quando os marinheiros se rebelaram
contra seus superiores na Armada Nacional, traziam insatisfações de longa data.
Os marinheiros eram geralmente homens pobres, ampla maioria de negros e
mestiços, que eram alistados à força desde o fim do Império e no início da
República.
Quando os marinheiros tomaram os navios e ameaçaram
bombardear a capital federal, o governo ficou acuado e negociou, para depois se
vingar prendendo e matando muitos revoltosos.
“Ao declarar nos dois episódios o
estado de sítio, o governo teve em suas mãos amplos poderes
extraconstitucionais que permitiam prisões sem mandados, provas contundentes e
realizando desterros para fora da capital”, completa Bento.
Fonte : Gazeta do Povo