quinta-feira, 13 de novembro de 2014

COPACABANA 1945


(excertos)
I
As fichas finais do jogo
foram recolhidas; fecha-se
o cassino; abre-se em fogo
o coração que devora.
Vejo em vez de eternidade
no relógio minha hora.
E se quiser vejo a tua.
Às cinco tinhas encontro
num cotovelo de rua.
As cigarras do verão
tiniam quando sugavas
teu uísque com sifão.
Às onze no Wunder Bar
por meio acaso encontravas
a mulher que anda no ar.
Às três em Copacabana
uma torpeza uterina
pestana contra pestana.
As quatro e pouco saías,
comias um boi às cinco,
às seis e meia morrias.
Às duas ressuscitavas,
às cinco tinhas encontro,
às sete continuavas.
II
A mensagem abortada
de Copacabana perde-se
na viração: não é nada.
Morre um homem na polícia.
Tantos casos. Não é nada:
os jornais dão a notícia.
Uma criança que come
restos na lata de lixo
não é nada: mata a fome.
Não é nada. A favela
pega fogo. Não é nada:
faz-se um samba para ela.
Um moço mata a família
e se mata. Não é nada:
poupa o drama à tua filha.
Uma menina estuprada.
Uma virgem cai do céu.
Nada. Copacabanada.
VI
Copacabana, golfão
sexual: soma dois corpos
mas divide solidão.
VII
Pelas piscinas suspensas,
pelas gargantas dos galos,
pelas navalhas intensas,
pelas tardes comovidas,
pelos tamborins noturnos,
pelas pensões abatidas,
eu vou por onde vou; vou
pelas esquinas da treva:
Copacabana acabou.

  Paulo Mendes Campos


LIVRO SOBRE NADA

13.
Venho de nobres que empobreceram.
Restou-me por fortuna a soberbia.
Com esta doença de grandezas:
Hei de monumentar os insetos!
(Cristo monumentou a Humildade quando beijou os
pés dos seus discípulos.
São Francisco monumentou as aves.
Vieira, os peixes.
Shakespeare, o Amor, a Dúvida, os tolos.
Charles Chaplin monumentou os vagabundos).
Com esta mania de grandeza:
Hei de monumentar as pobres coisas do chão mijadas
de orvalho.
11.
Prefiro as máquinas que servem para não funcionar:
quando cheias de areia de formiga e musgo — elas
podem um dia milagrar de flores.
(Os objetos sem função têm muito apego pelo aban-
dono)
Também as latrinas desprezadas que servem para ter
grilos dentro — elas podem um dia milagrar violetas.
(Eu sou beato em violetas)
Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam
a Deus.
Senhor, eu tenho orgulho de ser imprestável!
(O abandono me protege)
8.
Nasci para administrar o à toa
o em vão
o inútil.
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidades pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegeta é receber com naturalidade uma rã
no talo)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também
sabedoria mineral.
(do LIVRO SOBRE NADA, 1996)

Manoel de Barros (1916-2014)
“Páginas cheias de insetos, de moluscos, de vermes, de répteis, de batráquios, numa verdade assombrosa de dois traços, que lhes dá vida e quase movimentos. Páginas para aves. Uma página para as cegonhas, nas várias curvas do voo, nas multíplices ondulações do pescoço. Uma página de utensílios domésticos : o bule minúsculo, a chavenazinha, o fogaréu, a colher, a sertã suspensa do teto da cozinha sem chaminé, a chaleira de ferro, a garrafinha de louça para o vinho saquê, a faca, a pá, o martelo, a escudela, a serra, a raspadeira, tudo. (...) A página das feras. O barco de prazer, de carga, de pesca, de habitação, a jangada. O mundo dos deuses, o mundo da lenda, dos dragões façanhudos, das tartarugas com asas, das raposas vestindo como a gente, de quimono e sandálias. (...) A comédia dos gordos, no jogo caricatural dos seus músculos disformes, na plácida rotundidade dos enormes ventres de abóbora. A comédia dos magros, em ângulos horripilantes de esqueletos, quando lutam, quando mourejam, quando comem, quando dormem.”

(Wenceslau de Moraes. Dai-Nippon. Rio de Janeiro: Nórdica, s/d)

O sal da primeira onda



rosa esquerda, plantei eu num antigo poema virgem,
e logo ma roubaram,
logo me perderam o pequeno achado,
mas ninguém me rouba a alma,
roubam-me um erro apenas que acertava só comigo,
um umbigo, um nó,
um nome que só em mim era floral e único
Herberto Helder

Servidões (2013)