segunda-feira, 8 de julho de 2013

Lavoura arcaica

Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de obscuridade, não é por outro motivo que falo como falo."


- Raduan Nassar, in: Lavoura arcaica, 1975.
"Outra afirmação nociva, sincera em alguns, mas que, para outros, é apenas desculpa, é que o meio social atual não permite que se seja moral, e que, conseqüentemente, é inútil tentar esforços destinados a permanecerem sem sucesso; o melhor a fazer, é tirar das circunstâncias atuais o máximo possível para si mesmo sem se preocupar com o próximo, exceto a mudar de vida quando a organização social tiver também mudado. Certamente, todo anarquista, todo socialista compreende as fatalidades econômicas que, hoje, obrigam o homem a lutar contra o homem; e ele vê, como bom observador, a impotência da revolta pessoal contra a força preponderante do meio social. Mas é igualmente verdade que, sem a revolta do indivíduo, associando-se a outros indivíduos revoltados para resistir ao meio e procurar transformá-lo, este meio nunca mudará.
Somos, todos sem exceção, obrigados a viver, mais ou menos, em contradição com nossas idéias; mas somos socialistas e anarquistas precisamente na medida em que sofremos esta contradição e que procuramos, tanto quanto possível, torná-la menor. No dia em que nos adaptássemos ao meio, não mais teríamos, é óbvio, vontade de transformá-lo, e nos tornaríamos simples burgueses; burgueses sem dinheiro, talvez, mas não menos burgueses nos atos e nas intenções."

Errico Malatesta



La senté en mis rodillas y le pedí que me contara. Ella negó con la cabeza. La acaricié, la besé en la frente. Se le escapó alguna lágrima. Con el pañuelo le sequé la cara y la soné. Entonces volví a pedirle: - Andá, decime.

Me contó que su mejor amiga le había dicho que no la quería. Lloramos juntos, no sé cuánto tiempo, abrazados los dos, ahí en la silla. Yo sentía las lastimaduras que Florencia iba a sufrir a lo largo de los años y hubiera querido que Dios existiera y no fuera sordo, para poder rogarle que me diera todo el dolor que le tenía reservado.

Eduardo Galeano

Poemas malditos, gozosos e devotos.




V

Para um Deus, que singular prazer.
Ser o dono de ossos, ser o dono de carnes
Ser o Senhor de um breve Nada: o homem:
Equação sinistra
Tentando parecença contigo, Executor.

O Senhor do meu canto, dizem? Sim.
Mas apenas enquanto dormes.
Enquanto dormes, eu tento meu destino.
Do teu sono
Depende meu verbo minha vida minha cabeça.

Dorme, inventado imprudente menino.
Dorme. Para que o poema aconteça.


XII

Estou sozinha se penso que tu existes.
Não tenho dados de ti, nem tenho tua vizinhança.
E igualmente sozinha se tu não existes.
De que me adiantam
Poemas ou narrativas buscando

Aquilo, que se não é, não existe
Ou se existe, então se esconde
Em sumidouros e cimos, nomenclaturas

Naquelas não evidências
Da matemática pura? É preciso conhecer
Com precisão para amar? Não te conheço.

Só sei que me desmereço se não sangro.
Só sei que fico afastada
De uns fios de conhecimento, se não tento.

Estou sozinha, meu Deus, se te penso.


XIX

Teus passos somem
Onde começam as armadilhas.
Curvo-me sobre a treva que me espia.

Ninguém ali. Nem humanos, nem feras.
De escuro e terra tua moradia?

Pegadas finas
Feitas a fogo e a espinho.
Teu passo queima se me aproximo.

Então me deito sobre as roseiras.
Hei de saber o amor à tua maneira.

Me queimo em sonhos, tocando estrelas.


XX

Move-te. Desperta.
Há homens à tua procura.
Há uma mulher, que sou eu.
A Terra mora na Via-Láctea
Eu moro à beira de estradas
Não sou pequena nem alta.

Sou muito pálida
Porque muito caminhei
Nas escurezas, no vício
De perseguir uns falares
Teus indícios.

Move-te Tua aliança com homens
Teu atar-se comigo
Tem muito de quebra e dessemelhança.
Muito de nós agonizam.
A terra toda. Há de ser quase
Brinquedo adivinhares
Onde reside o pó, onde reside o medo.

Não te demores.
Eu tenho nome: Poeira.

Move-te se te queres vivo.


XXI

Não te machuque a minha ausência, meu Deus,
Quando eu não mais estiver na Terra
Onde agora canto amor e heresia.
Outros hão de ferir e amar
Teu coração e corpo. Tuas bifrontes
Valias, mandarim e ovelha, soberba e timidez.

Não temas.
Meus pares e outros homens
Te farão viver destas duas voragens:
Matança e amanhecer, sangue e poesia.

Chora por mim. Pela poeira que fui
Serei, e sou agora. Pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos.
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira

Sorri, meu Deus, por mim. De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo-d’água
Rondando o ego. Sorri. Te amei sonâmbula
Esdrúxula, mas te amei inteira.



Hilda Hilst – Poemas malditos, gozosos e devotos.

Oi, da ne vecher

"Oi, to ne vecher" ou "Oi, da ne vecher" é uma antiga canção popular russa/cossaca, datada possivelmente do século XVII, então também conhecida por "O sonho de Stepan Razin". Stenka Razin, nascido na Rússia, foi um líder cossaco que liderou uma rebelião contra a burocracia da nobreza e dos tsares no sul da Rússia. Ela foi gravada por inúmeros artistas. Originalmente possuía 7 estrofes, que faziam referência expressa ao referido herói; algumas versões elevaram para 11 estrofes, mas na maioria das gravadas atualmente (como a que eu apresento aqui, com a Pelageya), há apenas quatro estrofes.

A canção refere-se a um sonho que o Sr. Razin teve, prenunciando a própria morte. Ele vê dois sinais de morte segundo a superstição cossaca: seu próprio cavalo descontrolado, e seu chapéu caindo da cabeça.

Ai, ainda não é noite, ainda não é no-oite.
Eu cochilei um pouqui-inho.
Eu cochilei um pouquinho,
Ai, e no sono eu tive um sonho.
Eu cochilei um pouquinho,
Ai, e no sono eu tive um sonho.

Eu vi em sonhos
Como se o meu cavalo preto
Ficasse selvagem, enlouquecesse,
Ai, pinoteasse debaixo de mim.
Ai, ficasse selvagem, enlouquecesse,
Ai, pinoteasse debaixo de mim.

Ah, vieram ventos ma-aus
Ah, da banda do oriente
Ah, e arrancaram o meu chapéu
Ai da minha cabeça temerária.
Ah, e arrancaram o meu chapéu
Ai da minha cabeça temerária.

Mas o nosso capitão era perspicaz,
Ele foi capaz de decifrar o meu sonho.
Ai, perderás, ele fala,
A tua cabeça temerária
Ai, perderás, ele fala,
A tua cabeça temerária.

Ai, ainda não é noite, ainda não é no-oite.
Eu cochilei um pouqui-inho.
Eu cochilei um pouquinho,
Ai, e no sono eu tive um sonho.
Eu cochilei um pouquinho,
Ai, e no sono eu tive um sonho.

*em russo*

Ой, да не вечер, да не ве-ечер.
Мне малым-мало спало-ось.
Мне малым-мало спалось,
Ой, да во сне привиделось.
Мне малым-мало спалось,
Ой, да во сне привиделось.

Мне во сне вчера привиделось
Будто конь мой вороной
Разыгрался, расплясался,
Ой, разрезвился подо мной.
Разыгрался, расплясался,
Ой, разрезвился подо мной.

Ой, налетели ветры злы-ые,
Да с восточной стороны,
И сорвали черну шапку
С моей буйной головы.
И сорвали черну шапку
С моей буйной головы.

А есаул-то наш догадлив был,
Он сумел сон мой разгадать.
Ой, пропадет он говорил мне
Твоя буйна голова.
Ой, пропадет он говорил мне
Твоя буйна голова.

Ой, да не вечер, да не ве-ечер.
Мне малым-мало спало-ось.
Мне малым-мало спалось,
Ой, да во сне привиделось.
Мне малым-мало спалось,
Ой, да во сне привиделось.


E entre esses crimes [contra a literatura], o mais sério não é a perseguição dos autores, não é a censura e etc., nem mesmo a entrega dos livros à fogueira. Há um crime mais sério - a negligência dos livros, sua não-leitura. Por este crime as pessoas pagam durante toda a sua vida: se uma nação comete o mesmo crime, ela paga durante toda a sua história.

Joseph Brodsky


Malone Morre

Servem-me sopa. Eles devem saber que não tenho mais dentes. Tomo a sopa uma vez em cada duas que me servem, uma vez a cada três, em média. Quando meu urinol está cheio, eu o coloco ao lado do prato. Daí, fico vinte e quatro horas sem urinol. Não, tenho dois. Tudo foi previsto. Estou nu na cama, sob as cobertas, que eu aumento ou diminuo conforme as estações. Nunca sinto calor, nem frio. Não me lavo nunca, mas também não me sujo. Quando sinto que algum lugar do meu corpo está sujo, esfrego-o com o dedo molhado de saliva. O essencial é comer e cagar. Parto e penico, penico e prato, esses são os dois pólos da vida.


Samuel Beckett