Pobre ego! Você não sabe que é uma ilusão, um mero centro
fictício dividido entre tantos e tão contraditórios apelos... De um lado, o Id
te convoca a permanecer na cama, curtindo uma preguiça, e só fazer o que te é
agradável. De outro, o superego, como um feitor de chicote em punho, te
chamando de vagabundo, gritando para você se levantar logo desta cama e cumprir
com tuas obrigações... Não é fácil se equilibrar entre esses dois e
irreconciliáveis carrascos, entre Eros e Tânatos, entre o Princípio do Prazer e
o Princípio da Realidade, entre o dever lá fora e a cama quente aqui dentro...
Não é a toa que às vezes bate aquele cansaço e pinta então aquela nostalgia do
não-ser, do útero materno, do paraíso perdido...
Sobre esta base arquetípica -- Id e superego, Dionísio e
Apolo --, similar em todos, há ainda um dicotomia que está na raiz do ser
humano ocidental. Há em nosso cérebro um Sócrates e um São Paulo, um grego e um
hebreu, um filósofo e um anacoreta -- e eles nunca chegarão a um acordo. A cada
dia que me levanto, além da briga acirrada ente Id e superego, tem esses dois
que não param de discutir... Não, não sou clássico. Não posso ser clássico,
arcádico, parnasiano, ainda que eu quisesse... Depois da Idade Média, não se
pode retroceder impunemente à Antiguidade. Com efeito, dentro de mim há uma
ágora, onde os filósofos -- estoicos, epicuristas e céticos -- se deblateram
eternamente, mas sempre com elegância e educação. No entanto, há também uma
catedral gótica, cheia de gárgulas, mosaicos e vitrais -- e visagens de santos
e virgens em êxtase... Entre os tamborins das festas helênicas e o órgão solene
que brota da catedral sombria, minha alma se dilacera. Por isso eu digo: eu sou
barroco, uma encruzilhada de caminhos que levam a múltiplas direções, um feixe
de fibras que se cruzam em inúmeros sentidos... Entre céu e lama, luz e trevas,
beatitude e maldição, Santo Agostinho e Aristóteles, estou condenado a não ter
paz enquanto caminhar sobre esta Terra desolada e sob este Sol impassível. Mas
é justamente esta inquietude, esta angústia que é criadora, geradora de
estrelas bailarinas. É preciso um caos para criar um cosmos. Se o preço da paz
interior é a apatia, eu prefiro este vulcão permanente dentro de mim. Em vez da
bonança e da paz da Arcádia, o ímpeto e a tempestade. Mesmo sabendo que sou --
meu ego, este que escreve, ou acha que escreve este texto -- uma ilusão. Ou por
isso mesmo.
Otto Leopoldo Winck