sábado, 8 de fevereiro de 2014

Ternura


Enquanto nesta atroz demora,
Que me tortura, que me abrasa,
Espero a cobiçada hora
Em que irei ver-te à tua casa;

Por enganar o meu desejo
De inteira e descuidada posse,
Ai de nós! que não antevejo
Uma só vez que ao menos fosse;

Sentindo em minha carne langue
Toda a volúpia do teu sonho,
Toda a ternura do teu sangue,
Minh'alma nestes versos ponho;

Por que os escondas de teu seio
No doce o pequenino vale,
— Por que os envolva o teu enleio,
Por que o teu hálito os embale;

E o meu desejo, que assim foge
Ao pé de ti e te acarinha,
Possa sentir que minha és hoje,
E és para todo o sempre minha...


- Manuel Bandeira, em "A cinza das horas", 1917.

Miscelânea de Opiniões e Sentenças

«Acreditamos que os contos e os brinquedos são coisas da infância. Como temos vista curta! Como poderíamos viver, não importa em que idade da vida, sem contos e sem brinquedos? É verdade que damos outros nomes a tudo isso e que o consideramos de outra forma, mas essa é precisamente uma prova de que é a mesma coisa, pois a criança, ela também considera seu brinquedo como um trabalho e o conto como uma verdade. A brevidade da vida deveria eliminar a separação pedante das idades - como se cada idade trouxesse algo de novo - e caberia a um poeta nos mostrar um dia o homem de duzentos anos de idade, que vivesse sem contos e sem brinquedos.


[Friedrich Wilhelm Nietzsche, in “Miscelânea de Opiniões e Sentenças”]

O conceito do Brasil cordial



Sergio Buarque de Holanda, o pai do Chico, formulou já faz um tempo o conceito do Brasil cordial. Precisa ser revisto. Deixamos de ser amistosos. Substituímos o carinho com que tratávamos uns aos outros por leis bem mais mesquinhas. Venceu a de Gerson: “farinha pouca meu pirão primeiro”. Lutamos para levar vantagem, passamos por cima de quem estiver no caminho, quase sempre com pouca ética. E na sanha de ganhar acabamos endurecendo o coração, perdendo a gentileza, estranhando quem está ao nosso lado. Talvez por termos tão pouco em todas as áreas. O resultado é uma sociedade assustadora em muitos sentidos. Violenta, conservadora, incapaz de observar com sensibilidade qualquer problema. A nossa gente continua não fugindo à luta. Mas tornou-se belicosa e cruel. Alia-se ao que há de mais reacionário em termos de pensamento. A merencoria luz da lua entranhou-se nos espíritos. Há uma dura melancolia nos envolvendo.

Ricardo Ramos Filho

Sono das Águas


Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água.
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Ma nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...


- João Guimarães Rosa, em 'Magma'.

Grande Sertão: veredas

"Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesmo nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é."


- João Guimarães Rosa, em "Grande Sertão: veredas".

Memórias do Cárcere

"Queria endurecer o coração, eliminar o passado, fazer com ele o que faço quando emendo um período — riscar, engrossar os riscos e transformá-los em borrões, suprimir todas as letras, não deixar vestígio de idéias obliteradas."


- Graciliano Ramos, em "Memórias do Cárcere", cap. 5, 1953

O povo Latino-Americano

"Nunca, em nossa história, nos faltaram tanto a lucidez e a clarividência indispensáveis para equacionar os nossos problemas. Nunca foi tão escasso o sentido de bem comum, a noção de interesse público, que é o ponto de vista do povo inteiro. O que nos sobra, nesses tristes dias, são as vozes de irresponsáveis só sensíveis aos interesses minoritários, às razões do lucro. É a consciência culposa do colonizado, querendo reinterar o velho projeto do Brasil servil."


- Darcy Ribeiro, “O povo Latino-Americano”, (p. 22). Brasília, nº 2, 1991, pp. 15-29.