O editorial da Gazeta do Povo desta segunda-feira, dia 21 de
abril, retomou o debate sobre a retirada do busto do ex-reitor Flávio Suplicy
de Lacerda pelos estudantes, no último dia 1.º de abril. Para o jornal, a
atitude dos estudantes é “extemporânea” e “questionável em um cenário de
estabilidade institucional como o que vivemos agora”. Será?
O próprio editorial comprova que não. Há um encontro
interditado, ainda hoje, sobretudo por aqueles que apoiaram a ação dos
militares em 1964, da nossa democracia com a verdade. A ditadura varreu seus
crimes para debaixo do tapete, em especial com a lei da autoanistia de 1979,
impedindo a condenação formal dos seus atos, bem como a elaboração desse
período na memória coletiva nacional.
Mesmo que a historiografia tenha se debruçado exaustivamente
sobre o tema, suas conclusões ainda ficam circunscritas aos muros das
universidades. Prevalece no imaginário popular a tese, sempre reforçada pela
grande imprensa, da “ditabranda”, na qual se admite ter ocorrido “alguns
excessos”, mas o golpe é justificado pela defesa da pátria contra a ameaça dos
comunistas “terroristas”.
É exatamente isso que o editorial da Gazeta ratifica quando
afirma que alguns ícones da ditadura deixaram um “legado misto, de atos
condenáveis e também louváveis”. É isso que está implícito quando dizem que
Suplicy é mais uma “vítima”, assim como os ex-ditadores Costa e Silva, Castello
Branco e Garrastazu Médici, daqueles que querem “remover da vista do cidadão os
sinais da ditadura militar”.
Os editores da Gazeta acham compreensível que uma pessoa se
sinta constrangida por morar em uma rua com o nome do delegado Sérgio Fleury,
conhecido torturador da época da ditadura. Todavia, não veem nenhum
constrangimento em se deparar todos os dias, na entrada da universidade, com o
busto em homenagem ao ministro da Educação do governo do ex-ditador marechal
Humberto Castello Branco. Curioso.
Suplicy foi o responsável pela primeira lei que extinguiu a
UNE e proibiu as manifestações estudantis (Lei 4.464/64), dando início a uma
longa batalha contra os jovens que lutavam pela democracia. Quando era
ministro, foi ele quem operou os primeiros acordos brasileiros com a Agência
dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), com o objetivo
de desmontar o ensino público básico, que em duas décadas passou de referência
para sinônimo de ineficiência. Também naquela época, escancarou a educação
superior para o mercado privado, formatando o modelo que temos ainda hoje no
país. Quando Suplicy saiu do ministério e voltou a ser reitor da UFPR, em 1966,
criou o curso pago de Engenharia e estabeleceu a cobrança de anuidades aos
calouros de 1968.
As medidas de Suplicy na UFPR somente foram revertidas após
a ocupação da Reitoria pelos estudantes em maio daquele ano, assim como a
ditadura somente não foi mais longe na eliminação das universidades públicas
porque houve muita resistência nesse período. Justamente esses jovens, que
lutaram em defesa da soberania nacional e da educação, foram taxados pelos
agentes da ditadura como “subversivos” e “criminosos”.
O próprio Suplicy, após as manifestações dos estudantes em
1968, teve encontros reservados com o general José Campos de Aragão, comandante
das Forças Armadas na região do Paraná e Santa Catarina, para pedir a
intervenção militar na captura de lideranças estudantis, denominando-os de
“bandidos”.
Ora, se é verdade que Fleury é uma figura deplorável na
história brasileira, foi através das leis que cercearam as liberdades de
organização e expressão, instituídas por políticos como Suplicy, que os jovens
foram enquadrados pela Lei de Segurança Nacional e levados às suas salas de
tortura. Cada qual ocupando o seu papel, tanto os agentes civis quanto os militares
sustentaram a ditadura no Brasil.
Não existiria Fleury sem Suplicy.
A retirada do busto é a condenação de um sistema que Suplicy
apoiou e ajudou a operar. Não é, portanto, uma ação de negação a eventuais
realizações ou mesmo de uma avaliação de seu caráter – como mau ou bom –, como
levam a crer os editores da Gazeta quando retomam os argumentos falaciosos do
atual reitor, Zaki Akel, ou diferenciam Suplicy de Fleury. Não tem nada a ver
com essa “fulanização”. A ação dos estudantes faz parte de uma disputa, bem
atual, para revelar a verdade que ainda está soterrada e silenciada por detrás
desses monumentos.
André Machado, historiador formado pela UFPR e mestre pela
UTFPR, é secretário de Imprensa do Sindicato dos Bancários de Curitiba e
suplente de vereador em Curitiba pelo PT. Ana Lúcia Canetti é psicóloga formada
pela UFPR e mestre pela UFSC.
Fonte :Gazeta do Povo .
24042014