"A maravilhosa alteridade do outro foi banalizada e
enturvecida em uma simples troca de cortesias estabelecida como um comércio
interpessoal de alfândegas." [Emmanuel Lévinas, 1906-1995]
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014
( Senhor, dá-me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a
insanidade de toda adoração, afasta de mim essa tentação de amor que me
entregaria para sempre a Ti. Que o vazio se estenda entre o meu coração e o
céu! Não desejo ver meus desertos povoados com Tua presença, minhas noites
tiranizadas por Tua luz, minhas Sibérias fundidas sob Teu sol. Mais solitário
do que Tu, quero minhas mãos puras, ao contrário das Tuas que sujaram-se para
sempre ao modelar a terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. Só peço à Tua
estúpida onipotência respeito para minha solidão e meus tormentos. Não tenho
nada a fazer com Tuas palavras. Conceda-me o milagre recolhido antes do
primeiro instante, a paz que Tu não pudeste tolerar e que Te incitou a abrir
uma brecha no nada para inaugurar esta feira dos tempos, e para condenar-me
assim ao universo, à humilhação e à vergonha de existir.)
Cioran
"É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas
insone; e sem fantasmas. É terrível – sem nenhum fantasma. Inútil querer
povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina
que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos
houvesse o vento. Vento é ira, ira é vida. Ou neve, que é muda, mas deixa
rastro – tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma
continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode
falar do silêncio como se fala da neve."
- Clarice Lispector, em “Onde Estivestes de Noite”, 1998.
Voz já sem eco, só
visões de mescalina;
Minha pátria, o silêncio
— imagem desfocada
ou oblívio —
no transmutar-se em água.
(Um jogo de
decapitações:
extravio dos prováveis,
sem desfibrar a
rocha.)
(Yin Hsi, exaurido após luas e sóis de inútil leitura —
tarefa insana como polir pedra com pluma, mover montanhas, secar o sol —
incinera o códice de nós.)
fonte: Cláudio Daniel
MINHA PÁTRIA
Minha pátria não é a língua portuguesa.
Nenhuma língua é a pátria.
Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci
e o vento que sopra em Maceió.
São os caranguejos que correm na lama dos mangues
e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando
sonho.
Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas
carcomidas,
os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar,
e o céu encurvado pelas constelações.
Minha pátria são os apitos dos navios
e o farol no alto da colina.
Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa.
São os estaleiros apodrecidos
e os cemitérios marinhos onde os meus ancestrais
tuberculosos
[e impaludados não param de tossir e tremer nas noites frias
e o cheiro de açúcar nos armazéns portuários
e as tainhas que se debatem nas redes dos pescadores
e as résteas de cebola enrodilhadas na treva
e a chuva que cai sobre os currais de peixe.
A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria.
Nenhuma língua enganosa é a pátria.
Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre
pátria muda,
minha pátria disentérica e desdentada, sem gramática e sem
dicionário,
minha pátria sem língua e sem palavras.
LÊDO IVO
Poema sobre a recusa
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.
Maria Teresa Horta
DEFESA DA ALEGRIA
Defender a alegria como uma trincheira
defendê-la do escândalo e da rotina
da miséria e dos miseráveis
das ausências transitórias
e das definitivas
defender a alegria como um princípio
defendê-la do pasmo e dos pesadelos
dos neutros e dos nêutrons
das doces infâmias
e dos graves diagnósticos
defender a alegria com uma bandeira
defendê-la do raio e da melancolia
dos ingênuos e dos canalhas
da retórica e da parada cardíaca
das endemias e das academias
defender a alegria como um destino
defendê-la do fogo e dos bombeiros
dos suicidas e dos homicidas
do descanso e do cansaço
da obrigação da alegria
defender a alegria como uma certeza
defendê-la da ferrugem e da sarna
da célebre pátina do tempo
do relento e do oportunismo
dos rufiões do riso
defender a alegria como um direito
defendê-la de deus e do inverno
das maiúsculas e da morte
dos sobrenomes e das lástimas
do acaso
e também da alegria
MARIO BENEDETTI
Tradução: Fabiano Calixto
OUTRE
Des fois, aussi,
tout irisée se
balade
naïve
une bulle
en la
fraîcheur
du vent,
pourquoi si beau
dehors oh
pourquoi enfermée
elle se dit
et explose
aussitôt
du plaisir
d'exploser
Un poema de Annie Salager
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