terça-feira, 8 de setembro de 2015

O menino sírio morto na praia, com sua mãe e irmão numa malfadada tentativa de fuga dos horrores da guerra e da degradação de seu país; o pai que não sai da beira do túmulo; a solidariedade de populares alemães e austríacos aos refugiados; e a generosidade do Brasil de receber os imigrantes. Este foi certamente o assunto da semana. A tragédia no Oriente Médio é, sem dúvida, a expressão mais acabada da barbárie a que o capitalismo financeiro está conduzindo a humanidade.
Todos os valores se desmancham no ar, liberdade, igualdade, fraternidade, democracia, justiça, direitos. Vale tudo na busca desenfreada do lucro. O que é uma criança morta afogada numa praia do Mediterrâneo? Nada mais do que nada.
Penso que só tendo em vista esta tragédia se pode dar a devida dimensão ao “caso” Fábio Júnior. Um acontecimento zero, junto com muitos outros zeros que fazem a alegria de jornais, sites e tevês.
Um menino.


Roberto Elias Salomão

Aquele que diz sim, aquele que diz não: religiosidade e heresia


" Imaginação e religião entronizada são antitéticas. O dogma, cerne das
grandes religiões monoteístas, nada mais é que uma diligente e metódica rejeição à curiosidade, autonomia e inventividade. É nesta relação assimétrica entre aquele que ignora, teme e suplica, e o Outro que tudo sabe e tudo dispensa que reside o poder das Igrejas".
"Se tomarmos imaginação em sua acepção primeira, ela é quase o mesmo
que poesia: aquele modo de pensar e exprimir dúbio, sinuoso e plástico, linguagem elíptica e larga, na qual hesitações, contrastes e incoerências, o chiaroscuro dos obrigatórios oxímoros, enfim, são virtudes cardeais. A imaginação não teme o exagero nem o ambíguo, vagueia no fluxo contínuo e contraditório de ideias e humores, e é seu empenho fazer emergir o inesperado: numa palavra, cabe à imaginação dar vida ao sujeito. O sujeito ímpar, imprevisível e assertivo em sua incorrigível unicidade. Se a imaginação corteja o universal, é porque se nutre do absolutamente individual. Ela é inseparável do singular, do irrepetível, do novo,
da criatura se afirmando e se recriando, condensando seu potencial e cintilando, inconfundível. Desta perspectiva, qualquer exercício de imaginação, por tímido que seja, será sempre um insulto às religiões".

(Marília Pacheco FIORILLO)

AYLAN NO BRASIL SERIA SÓ MAIS UM SILVA


Ontem, a presidenta Dilma fez menção ao menino sírio Aylan Kurdi e disse que o Brasil está aberto para os que querem "vir e viver aqui para trabalhar e contribuir para a prosperidade e paz". Hoje, mais uma criança foi morta pelo Estado brasileiro. Cristian Soares da Silva, de 12 anos, estava jogando bola em Manguinhos, no Rio de Janeiro, e tombou frente à polícia que mais mata no mundo. Avisem aos sírios: assim tratamos nossas crianças. E avisem também que se morrer aqui, na favela, vira estatística, sem comoção nem referência. Aylan no Brasil seria só mais um Silva.


Por Renato Cosentino.
Leonardo Sakamoto

"Tá com dó? Leva para casa!" é uma daquelas frases icônicas, através das quais consegue-se avaliar se o interlocutor merece respeito ou um abraço forte e solidário. É utilizada por pessoas com síndrome de pombo-enxadrista (faz sujeira no tabuleiro, joga ignorando regras mínimas de sociabilidade e sai voando, cantando vitória), normalmente diante do clamor para políticas voltadas àquela gente pobre, parda, perdida ou violada que habita as frestas das grandes cidades.
É só falar da necessidade de políticas específicas que garantam qualidade de vida para esse pessoal mas, ao mesmo tempo, respeitem seu direito de ir e vir e ocupar o espaço público que o povo vira bicho. Ou melhor, vira pombo.
Este tema não é novo por aqui, mas vi que a frase passou a ser usada diante da última crise de refugiados na Europa. Gente empregando-a para negar a necessidade de acolher refugiados, não só da Síria, mas da Ásia, África e América Latina. "Querem trazer mais deles para o Brasil? Coloque-os na sua casa!"
Tanto na Europa quanto por aqui, ações individuais ajudam a mitigar o impacto inicial dos refugiados, garantindo apoio a quem perdeu tudo. E é ótimo que seja assim. Mas eles devem ser alvo, principalmente, de uma política pública, com intervenção direta do Estado, única instituição com tamanho e legitimidade para garantir uma ação nacional, transnacional e de escala. Porque isso também inclui a garantia da autonomia econômica e social às famílias. Quem acha que o Estado é um simples entrave e não a forma que construímos para impedir que nos devoremos, tem dificuldade de entender que o acolhimento de refugiados e migrantes não é caridade individual, mas sim a efetivação de compromissos assumidos internacionalmente por um povo.

(Mais no blog do Sakamoto )

Soneto XVIII

William Shakespeare 

Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e mais ameno:
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno.
Às vezes brilha o Sol em demasia
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na terna mutação da natureza.
Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste inverno:
Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver.

Tradução: Bárbara Heliodora


(Dica: Ivan Justen Santana.)
Há uns que nos falam e não ouvimos;
há uns que nos tocam e não sentimos;
há aqueles que nos ferem e
nem cicatrizes deixam, mas...
há aqueles que simplesmente
vivem e nos marcam por toda vida.

(Hannah Arendt)

Canción de la mujer




1. De noche junto al río en el oscuro corazón de los arbustos
a veces vuelvo a ver su rostro, el de la mujer que amé: mi
mujer, que murió.

2. Hace ya muchos años, y a ratos ya no sé nada de ella, la
que antes lo fue todo, pero todo se marchita.

3. Y ella era en mí como un pequeño enebro en las estepas de
Mongolia, cóncavas, con el cielo amarillo pálido y de gran tristeza.

4. Vivíamos en una cabaña negra junto al río, los mosquitos
solían perforar su blanco cuerpo, y yo leía el periódico
siete veces o decía: "tu pelo tiene un color sucio". O: "no tienes corazón".

5. Pero un día, cuando estaba yo lavando mi camisa en la
cabaña, ella se acercó a la puerta y me miró y quería salir.

6. Y quien le había pegado hasta cansarse, dijo: "ángel mío".

7. Y quien le había dicho te quiero la condujo fuera y
riendo miró al aire y alabó el buen tiempo y le dio la mano.

8. Como ya estaban afuera, al aire libre, y la cabaña estaba
desierta, cerró la puerta y se sentó tras el periódico.

9. Desde entonces no la he vuelto a ver, y de ella solo quedó
el gritito que dio cuando por la mañana volvió a la puerta que
ya estaba cerrada.

10. Ahora la cabaña se ha podrido y mi pecho está relleno de
papel de periódico y por las noches tumbado junto al río en
el oscuro corazón de los arbustos me acuerdo de ella.

11. El viento lleva olor a hierba en el pelo y el agua grita sin
fin pidiendo calma a Dios, y en mi lengua tengo un sabor amargo.


Bertolt Brecht


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