"Lula saiu da cadeia, e isso é bom. Mas sua saída é um
efeito colateral de um plano dos mesmos que os colocaram lá e que zelarão para
que seus direitos políticos sigam cassados e que, se necessário, ele volte para
o cárcere quando as condições jurídicas forem satisfeitas, uma vez que as
condenações nas primeiras instâncias ainda estão valendo."
Publicado
em 11/11/2019 // 1 comentário
Por Mauro Luis Iasi.
“Quando o queijo e a goiabada se encontram na mesa do pobre,
devemos suspeitar dos três: do queijo, da goiabada e do
pobre.”
Barão de Itararé
Análise de conjuntura não é um exercício de premonição, mas
a capacidade de apontar cenários a partir das contradições que se apresentam. A
conjuntura atual começa a apontar, pelo que penso, três possíveis cenários.
Agregaremos um elemento importante na dinâmica dos fatos, que foi a saída de
Lula da cadeia da lava-jato. Vejamos esses cenários sem que a ordem indique o
que penso ser o desfecho de maior probabilidade.
Primeiro cenário: Barão de Itararé – tudo pode acontecer,
inclusive nada
A tendência quando avaliamos as contradições do governo
fundamentalista/miliciano é querer ver soluções dramáticas, seja do ponto de
vista de um retrocesso autoritário mais explícito e de corte fascista (que,
acreditem ou não, ainda não veio), ou, no sentido oposto, uma rebelião ao
estilo de nossos vizinhos latino-americanos.
Historicamente, o Brasil é pródigo em derrubar essas
alternativas extremas. O governo miliciano tem cumprido a agenda do capital com
esmero e dedicação. No entanto, a forma como o faz constitui um problema para a
ordem burguesa na medida em que cria tensões desnecessárias para tal agenda,
ainda que necessárias para a manutenção do bufão descontrolado e sua trupe.
Como veremos adiante, existe a possibilidade de que o projeto de tirá-lo do
poder para manter essa agenda já tenha começado, mas ao lado dessa
possibilidade, e devido aos riscos que envolve, apresenta-se a possibilidade de
deixar como está para ver como fica.
Eduardo Bolsonaro não será cassado, Moro permanece ministro,
Queiroz não será levado a prestar depoimento, continuaremos sem saber quem
mandou matar Marielle, uma outra artimanha jurídica tentará manter Lula fora do
pleito eleitoral e o chefe dos palhaços continuará fazendo asneiras e
proferindo impropérios enquanto a reforma administrativa e a tributária seguem
seu curso. A Globo alternará denuncias indignadas e loas à retomada do
crescimento após a administração do amargo remédio da austeridade e seus
inevitáveis efeitos colaterais, ao mesmo tempo em que seus comentaristas
cuidarão de depositar a culpa pelo atraso da retomada do crescimento na ameaça
de um Lula na oposição.
A centro-esquerda marchará tendo como norte um calendário
que só tem uma data: as eleições de 2022 (e uma escala nas eleições de 2020). A
reforma trabalhista, a reforma da previdência, as matas queimadas e praias
manchadas de óleo, os índios mortos, as crianças assassinadas, a morte da
universidade pública e o desmonte do SUS se convertem em argumentos de um
discurso eleitoral, uma macabra contabilidade do que perdemos e não há o que
fazer, criando a ideia de que a única alternativa para avançar é recuar ao
tempo da política de conciliação de classes.
Segundo cenário: Matrioska – o golpe dentro do golpe, dentro
do golpe
O primeiro cenário tem um limite: o quanto o caráter
burlesco e tosco do miliciano pode comprometer a pauta e os negócios de seus
patrões. Se, por um lado, a agenda do capital e suas contrarreformas estão
andando de acordo com o esperado, entre outras coisas pela boa vontade e
competência do Congresso Nacional e seus asseclas, as atitudes destemperadas do
presidente e sua trupe e os esqueletos no armário produzem um estrago
considerável que tem impacto nos interesses dos segmentos monopolistas
(indústria, agronegócio, bancos, comércio, etc.). A retomada raquítica da
economia, o resultado pífio do leilão do petróleo, a trava nos investimentos
diretos, começam a materializar um risco Bolsonaro que não deve ser desprezado.
Um efeito secundário, mas não menos importante, é o fato de
que se o risco Lula alimentou a possibilidade de Bolsonaro e permitiu que o
desqualificado chegasse à presidência, o risco Bolsonaro dá uma sobrevida ao
lulismo e ao mito do retorno aos tempos do pacto.
Tudo isso leva ao cenário no qual os segmentos da classe
dominante podem optar por retirar a peça que os incomoda para manter a agenda
no que é fundamental. Duas dificuldades se apresentam nesse caminho. Primeiro,
a amputação precisa ser feita sem que pareça uma anulação do golpe de 2016, o
que abriria caminho para uma volta do petismo e do pacto de classes que o
sustentava. O segundo problema é como a peça amputada reagiria.
Ao que parece, a garantia para que isto se dê, pelo menos na
intenção de seus protagonistas, é a passagem do poder para o vice-presidente
Mourão. Os segmentos que conspiram nesta direção têm os meios e os recursos
necessários mas não controlam as condições materiais que garantiriam a
estabilidade desejada, uma vez que estas radicam no comportamento da economia,
no terreno pantanoso daquilo que Mészáros descreveu como a tentativa de
controle de um sociometabolismo incontrolável. Em poucas palavras, a crise e
sua profundidade.
Vemos desde 2016 uma promessa que não se cumpre quanto a
estabilidade. Tira-se a Dilma e que Temer constrói uma ponte segura… não deu.
Elege-se um presidente que cercado de legitimidade estabiliza o país… também
não deu. Por que com Mourão seria diferente? O que os conspiradores esperam é
que as contrarreformas comecem a dar resultados para o crescimento do capital
de modo que se forje, com a aval dos militares, uma unidade no campo dominante
que seja capaz de manter a ordem enquanto os efeitos deste ajuste ainda se
manifestem de forma mais contundente, dando o tempo necessário para que se crie
uma alternativa eleitoral que se sustente e seja capaz de derrotar a
centro-esquerda e a extrema-direita.
A denúncia da Globo e o andamento das investigações que vinculam
o presidente e sua família às milícias aproximando-o do assassinato de
Marielle, se somam agora à soltura de Lula, como veremos, para demonstrar que o
esquema já começou a se mover nesta direção. Ratos que abandonam o navio (como
o MBL, artistas pornôs, roqueiros e advogados golpistas) e a popularidade em
queda, indicam que o isolamento que antecede a queda esta em curso.
A segunda barreira é mais complexa. O que se supõe é que já
se dispõe de recursos de chantagem suficientes para que o capitão renuncie
alegando uma doença, real ou imaginária (creio que ele deve ter as duas),
facilitando assim o caminho do golpe dentro do golpe. Ocorre que o personagem,
diferente de outros, parece não ser suscetível a esse tipo de manobra e terá
que ser forçado a largar o osso. Aqui a incógnita: terá ele recursos de reação,
ou será blefe?
Além da fidelidade do fundamentalismo religioso, que pode
oscilar na última hora, uma vez que o pentecostalismo de negócios aprendeu com
a Igreja católica a sobreviver aos regimes que apoia (vamos lembrar que esses
setores apoiaram o petismo antes de transitarem para Temer e agora se alinharem
o demônio), o presidente parece ter um apoio importante em milícias armadas com
ligações com as corporações policiais. Tem, ainda, uma base fiel que deve estar
entre algo em torno de 7 a 10% do eleitorado que se identifica com sua pregação
de extrema direita, com reflexos em segmentos de massa corrompidas por um
discurso antipetista e anticomunista irracional e raivoso.
Tudo isso já é um problema, mas ainda não chegamos à
verdadeira incógnita – a saber: qual é o apoio real do presidente na corporação
militar? Os generais parecem divididos, com o Heleno de um lado e Cruz e Souza
de outro, junto com outros que abandonaram a nau insana (parece que já são onze
os militares que pularam fora do governo). Mas a dúvida é a capacidade de
Bolsonaro arrastar um segmento das forças armadas na defesa de seu governo. Os
militares brasileiros preferem operações que não encontrem resistência, e podem
recuar diante da possibilidade de reação e buscar outros cenários.
A alternativa Mourão é uma busca de estabilidade. Se o
caminho que leva até ele produzir o caos, será descartado e voltamos ao
primeiro cenário.
Terceiro cenário: o contragolpe que é o verdadeiro golpe
fascista
McNamara já dizia que a primeira vítima da guerra é a
racionalidade. O risco nesse sentido é pensarmos como agiriam os sujeitos e
atores principais supondo uma racionalidade que já foi ultrapassada pela crise.
Bolsonaro pode já ter ultrapassado o patamar de uma peça com problemas,
gangrenou e supurou e tem que ser extirpado. Tomadas as medidas para diminuir
sua popularidade (ao que parece é a Globo que tem esse papel), produzir seu
isolamento parlamentar (o que cabe a Rodrigo Maia), desacreditá-lo
internacionalmente (tarefa realizada pelo próprio Bolsonaro e seus ministros),
se desfecharia o golpe dentro do golpe para manter o golpe.
Caso seja blefe e Malafaia apareça abençoando Mourão e as
milícias fizerem um acordo (o problema de esperar fidelidade de ladrões,
assassinos, traficantes e criminosos é que eles não têm amigos, têm
interesses), fora a choradeira dos bolsominions, um exército de robôs
descontrolados gritando “perigo, perigo” e um certo ministro da justiça fugindo
do país com alguns procuradores, estaríamos no bojo do segundo cenário.
Nosso terceiro cenário se apresenta, portanto, caso não seja
blefe e o capitão apresente resistência. Ao que parece, a estratégia do
inominável não era ganhar as eleições – cada vez estou mais convencido que ele
não se preparou para este caminho. Devemos supor que sua estratégia era, diante
de uma vitória de Haddad, dividir o país e propor uma solução de força de corte
claramente fascista. Essa não é uma suposição leviana, uma vez que o presidente
falou abertamente isso e seus filhos, com o destaque para aquele que apresenta
mais nitidamente traços delirantes, o vereados do Rio, defendem isso sem
disfarces, como escapou na fala de Deputado Federal que defendeu o AI-5.
O problema deste cenário é que ele não prevê a benção dos
segmentos monopolistas e sua real força e acredita que pode chegar a manter um
governo forte contra o capital. Lamentavelmente, a burguesia brasileira é
pródiga em perder o controle dos processos que ela parece controlar, como estou
convencido que aconteceu em 2016. Isso abre a perigosa possibilidade da
aventura golpista da “familícia” encontrar condições político-militares de
resistir ao possível golpe que tentaria tirá-lo do governo e conseguir
apresentar uma solução de força, simultaneamente para evitar a perda de
controle (risco Chile) e atacar seus adversários do campo conservador: o
Congresso e o STF.
Este cenário depende de quanto o miliciano tem de fato de
apoio na corporação militar e policial (legal e miliciana), e sua capacidade de
ser a alternativa que resta ao capital diante do risco de descontrole social,
seja pela revolta de massas, seja pela possibilidade de retorno pela via
eleitoral do petismo.
Uma suspeita
Os leitores mais atentos devem ter notado que os cenários se
apresentam no campo das alternativas dos setores dominantes. Ocorre que a alma
da conjuntura se encontra na correlação de forças e dos instrumentos e recursos
que os atores dispõem para realizar seus interesses. O campo popular está
derrotado e isso desloca o centro da conjuntura para as alternativas em disputa
no interior do campo dominante.
Na direção oposta desta leitura estão muitos amigos e
incorrigíveis otimistas que veem no cenário quase insurrecional na América
Latina (Equador, Chile, Haiti, etc.) e nos novos ventos eleitorais que sopram
da Argentina e, possivelmente, no Uruguai a esperança de alternativas mais à
esquerda se apresentarem também no Brasil.
Evidente que o cenário latino-americano interfere nos
acontecimentos no Brasil, mas é necessário avaliar de que forma isto se dá. A
derrubada de uma presidente eleita por meio de um casuísmo escandaloso não
produziu uma reação à altura. Um governo ilegítimo impõe uma reforma
trabalhista com efeitos dramáticos para a classe trabalhadora, e não encontrou
resistência significativa. Por fim, a reforma da previdência foi aprovada, como
disse um amigo, sem que se riscasse um único fósforo, nem sequer para acender
uma vela para chorar pela morte de um dos direitos mais fundamentais.
Quando se pergunta “quando a revolta que explodiu no Chile,
explodirá no Brasil?”, me assoma um misto de pena e espanto. Essa explosão já
aconteceu… em 2013. E foi enfrentada de forma dura e brutal pelos chamados
governos progressistas de plantão. Um processo contraditório e heterogêneo, mas
que trazia como uma de suas vertentes um questionamento aos ajustes neoliberais
e à política de austeridade, uma reação às condições de vida dos esquecidos,
contra a violência policial cujos exemplos mais gritantes é o assassinato de
Amarildo e o corpo de Claudia arrastado por uma viatura, mas aos quais se deve
somar as chacinas quase diárias nas periferias e favelas, as remoções
supostamente para os eventos esportivos, a destruição da natureza, o leilão do
petróleo no campo de Libra, o ataque aos direitos dos trabalhadores, a
prioridade do agronegócio e farra orçamentária que sangra o fundo público em
nome do apetite insaciável do capital financeiro.
A resposta do governo Dilma e do seu infame ministro da
Justiça, senhor José Eduardo Cardoso, foi a Portaria Normativa de dezembro de
2013 que iguala manifestantes a quadrilhas criminosas, que colocava em prática
as chamadas Operações de Garantia da Lei e da Ordem com as consequências
conhecidas, seguida pela Lei Antiterrorismo de 16 de março de 2016. O governo
preferiu conciliar com seus algozes e, assim, selou seu destino. Desarmadas de
sua força autônoma e sua direção de luta, as massas se tornam presas da
manipulação e da extrema direita, o resultado nós conhecemos.
É neste contexto que devemos entender a saída da prisão do
ex-presidente Lula. É perfeitamente compreensível que o centro esquerda tenha
se empenhado em sua defesa e estão todos de parabéns pela campanha em defesa de
sua liderança. Todos nós nos solidarizamos contra a farsa jurídica que o
condenou e sabemos, como ficou provado pelas denúncias do The Intercept –
Brasil, que a intenção maior sempre foi evitar que Lula participasse das eleições,
porque, provavelmente, as ganharia.
Mas não foi a campanha Lula Livre que o tirou da prisão, foi
o STF, a mesma instituição que legitimou a farsa que o prendeu e que o manteve
preso ao arrepio da lei e da simples observância da constituição. A pergunta é:
por que agora agiu de forma diferente? Não posso aceitar o discurso que o STF
agiu em defesa da Constituição, restabeleceu a justiça e garantiu a mítico e
fantasioso Estado Democrático de Direito, pelo simples motivo que esta mesma
instituição foi fundamental para (1) ungir de legitimidade jurídica uma farsa
casuística que levou ao golpe de 2016 (2) acompanhar com inoperância
bovinamente subserviente as hienas do Congresso descarnado a constituição dos
direitos mais fundamentais (3) recusou todos os Habeas Corpus impetrados pela
defesa do presidente Lula, inclusive com a palhaçada do voto da ministra Rosa
Weber que argumentou no mérito a favor e o recusou por que a maioria assim se
pronunciou, inovando ao criar o “centralismo democrático” jurídico na Suprema
Corte.
Mais provável é que esta corja de golpistas, coniventes e
responsáveis pela destruição do país, agora se movem em outra direção e ela
está longe de ser a defesa do país. O STF está, como mostrou a votação,
dividido entre os dois primeiros cenários descritos, isto é, deixar tudo como
esta (até porque esteve o tempo todo comprometido com o golpe e o arbítrio) ou
apostar na operação que visa eliminar a peça incomoda. Não tenho dúvidas que,
se o fascismo vencer, encontrará entre os nobres ministros quem encontre
justificativa jurídica para legitimar o crime, varrendo para baixo de suas
togas toda a sujeira e o sangue, como fizeram em 1964.
Lula saiu da cadeia, e isso é bom. Mas sua saída é um efeito
colateral de um plano dos mesmos que os colocaram lá e que zelarão para que
seus direitos políticos sigam cassados e que, se necessário, ele volte para o
cárcere quando as condições jurídicas forem satisfeitas, uma vez que as
condenações nas primeiras instâncias ainda estão valendo.
O velho Maquiavel já dizia que nada é mais instável do que o
poder que não se apoia na própria força e, assim, depende, da boa vontade dos
outros. Tanto o descontentamento das massas, como a pregação de oposição de
Lula, se não forem partes de uma alternativa realmente popular, podem acabar
servindo aos propósitos de outras forças que tramam em segredo seus planos.
Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social
da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP
13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de
Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os
livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do
Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por
Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na
TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir
conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.