Lá onde outros propõem suas obras, eu não pretendo fazer
outra coisa senão mostrar meu espirito.
A vida é de queimar as questões.
Eu não concebo nenhuma obra separada da vida.
Eu não gosto da criação separada. Eu não concebo tampouco o
espirito como separado de si próprio. Cada uma de minhas obras, cada um dos
planos de mim mesmo, cada uma das florações glaciais de minha alma interior
baba sobre mim.
Eu me reencontro tanto em uma carta escrita para explicar a
contração intima de meu ser e a castração insensata de minha vida, quanto em um
ensaio que é exterior à mim mesmo, e que se me aparece como uma gravidez
indiferente de meu espirito.
Eu sofro porque o Espirito não está na vida e porque a vida
não seja o Espirito, eu sofro por causa do Espirito-orgão, do
Espirito-tradução, ou do Espirito-intimidação-das-coisas para fazê-las entrar
no Espirito.
Este livro, eu o ponho em suspensão na vida, eu quero que
ele seja mordido pelas coisas exteriores e, em primeiro lugar, por todos os
sobressaltos em cisalhas, todas as cintilações de meu eu por vir.
Todas as páginas se espalham como pedras de gelo no
espirito. Que me desculpem minha liberdade absoluta. Eu me recuso a fazer
diferenças entre qualquer dos minutos de mim mesmo. Eu não reconheço plano em
meu espirito.
É preciso acabar com o Espirito assim como com a literatura.
Eu digo que o Espirito e a vida comunicam em todos os graus. Eu gostaria de
fazer um Livro que perturbasse os homens, que fosse como uma porta aberta e que
os levasse lá onde jamais consentiriam em ir, uma porta simplesmente aberta
para a realidade.
E isto não é mais prefacio a um livro do que todos os
poemas, por exemplo, que o balizam ou a enumeração de todas as raivas do
mal-estar.
Isto não é mais que uma pedra de gelo, também mal engolida.
(Antonin Artaud)