sexta-feira, 5 de junho de 2015

A servidão involuntária



Desde os primórdios da humanidade a luta pela dignidade do trabalho tem sido prometeica. No Brasil, se o trabalho indígena foi um exercício comunal, a saga europeia do colonizador nos impôs o trabalho compulsório, inicialmente dos aborígenes e depois dos africanos.
Com a abolição da escravatura, o imigrante branco foi escolhido para o mundo industrial, excluindo-se os negros que povoavam a produção rural. E o trabalho negro, especialmente o das mulheres, foi empurrado para o emprego doméstico, perpetuando a herança servil da nova casa-grande urbana.
Foi a partir de 1930 que a modernização capitalista do país obrigou, depois de décadas de lutas operárias, a se pensar em uma legislação social protetora do trabalho.
De modo conflituoso e contraditório, nasceu a CLT, que tinha a aparência da dádiva, mas resultava de uma real impulsão operária. Converteu-se na verdadeira constituição do trabalho no Brasil, ainda que seus direitos excluíssem os assalariados do campo.
Hoje estamos à frente de um novo vilipêndio em relação aos direitos do trabalho, cujo significado e consequência têm requintes comparáveis à escravidão, ainda que em sua variante moderna. Descontentes com os direitos conquistados pela classe trabalhadora, neste contexto de crise, os capitais exigem a terceirização total, conforme consta do projeto de lei nº 4.330/04, agora rebatizado no Senado como projeto de lei da Câmara nº 30/2015.
Em nome da falaciosa "melhoria da qualidade do produto ou da prestação de serviço", o projeto elimina de uma só vez, a limitada disjuntiva existente entre atividades-meio e atividade-fim.
Uma empresa poderá recorrer a outra, para contratar trabalhadores, eliminando a relação direta entre empregador e assalariado. Como na escravidão. Neste passe de mágica, todas as modalidades de trabalho poderão ser terceirizadas. Até os pilotos de aeronaves.
Com um Congresso lépido e faceiro nas práticas negociais, impulsionado pela lógica volátil do capital financeiro, uma nova servidão involuntária está sendo urdida.
Dinheiro gerando mais dinheiro, na ponta fictícia do sistema financeirizado global e respaldado em uma miríade de formas pretéritas de trabalho (precarizado, flexibilizado, terceirizado, informalizado, "cooperado", escravo e semiescravo) na base da produção.
As falácias presentes no projeto de lei são todas conhecidas: em vez de criar empregos, ela desemprega, uma vez que os terceirizados trabalham mais tempo e ainda percebendo menores salários.
Em vez de "qualificar" e "especializar", temos o contrário, pois são nas atividades terceirizadas que se ampliam ainda mais os acidentes, as mutilações, os adoecimentos, os assédios, as mortes e os suicídios. Basta lembrar a indústria petrolífera e de energia elétrica.
Assim, o projeto de lei da Câmara não quer regulamentar os terceirizados, mas de fato desregulamentar o trabalho em geral. Se o quisesse, era só alterar seu o artigo 2º, eliminando a possibilidade de terceirização em "qualquer de suas atividades" e mantendo a regulamentação dos terceirizados que atuam nas atividades-meio. Simples assim, mas isso desmascara o real objetivo do famigerado projeto de lei.
O que motiva os seus defensores é de fato a redução salarial, de custos e de direitos da totalidade da classe trabalhadora, pejotizando ainda mais as relações de trabalho.
Já está mais do que hora de dizer –em alto e bom som– que a terceirização avilta o trabalho em todas as suas formas e deve, por essa razão, ser combatida por todos.
É preciso acrescentar, porém, que o que está na pauta hoje é o risco iminente da terceirização total, inclusive das atividades-fim, que deve ser obstada para que não se gere ainda mais trabalho aviltado.

RICARDO ANTUNES, 62, é professor titular de sociologia da Unicamp. É autor de "Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil III" (Boitempo) e de "The Meanings of Work" (os sentidos do trabalho), publicado na Índia pela editora Aakar Books
http://www1.folha.uol.com.br/…/1637855-ricardo-antunes-a-se…


Toda essa frenética luta de classes virtual mostra que estamos numa autêntica democracia deliberativa, com atores inteiramente orientados para os problemas da comunidade e dispostos a defender seus pontos de vista com argumentos racionais. Tudo isso é muito bom. Só não entendi uma coisa até agora: o que é que Amado Batista tem a ver com a diminuição da maioridade penal? Algum geniozinho das redes sociais poderia me explicar, please?
Sérgio Braga


"Não se curem além da conta.
Gente curada é gente chata.
Todo mundo tem um pouco de loucura.
Vou lhes fazer um pedido:
vivam a imaginação, pois ela
é a realidade mais profunda.
Felizmente, eu nunca conviví com pessoas ajuizadas."

Dr. Nise da Silveira

A natureza antidemocrática do capitalismo


 
A liberalização financeira teve efeitos para muito além da economia. Há muito que se compreendeu que era uma arma poderosa contra a democracia. O movimento livre dos capitais cria o que alguns chamaram de "parlamento virtual" de investidores e credores, que controlam de perto os programas governamentais e "votam" contra eles, se os consideram "irracionais", quer dizer, se forem em benefício do povo e não do poder privado concentrado.

Por Noam Chomsky, The Irish Times

O desenvolvimento de uma campanha presidencial norte-americana simultaneamente ao desenlace da crise dos mercados financeiros oferece uma dessas ocasiões em que os sistemas político e económico revelam vigorosamente a sua natureza.
É possível que a paixão pela campanha eleitoral não seja universalmente compartilhada, mas quase toda a gente pode sentir a ansiedade desencadeada pela execução hipotecária de um milhão de residências, assim como a preocupação com os riscos que correm os postos de trabalho, as poupanças e os serviços de saúde.
As propostas iniciais de Bush para resolver a crise cheiravam de tal maneira a totalitarismo, que não tardaram a ser modificadas. Sob intensa pressão dos lóbis, foram reformuladas "para o claro benefício das maiores instituições do sistema... uma forma de desfazer-se dos activos sem terem de ir à falência ou quase", como descreveu James Rickards, que negociou o resgate federal do fundo de risco (hedge fund) Long Term Capital Management em 1998, lembrando-nos de que estamos a caminhar em terreno conhecido.
As origens imediatas do desmoronamento actual estão no colapso da bolha imobiliária supervisionada pelo presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, que sustentou a economia dos anos Bush, misturando os gastos de consumo baseados em dívida, com a tomada de empréstimos no exterior. Mas as razões são mais profundas. Em parte, residem no triunfo da liberalização financeira dos últimos 30 anos, quer dizer, nas políticas consistentes de libertar o máximo possível os mercados da regulação estatal.
Como era previsível, as medidas tomadas a esse respeito vão aumentar a frequência e a profundidade dos grandes reveses económicos, e agora estamos diante da ameaça de se desencadear a pior crise desde a Grande Depressão.
Também era previsível que os poucos sectores que obtiveram enormes lucros oriundos da liberalização apelassem à intervenção maciça do Estado, para salvar as instituições financeiras em colapso.
Esse tipo de intervencionismo é um traço característico do capitalismo de estado, ainda que na escala actual seja inesperado. Um estudo dos investigadores em economia internacional Winfried Ruigrok e Rob van Tulder descobriu, há 15 anos, que pelo menos 20 companhias entre as100 primeiras do ranking da revista Fortune não teriam sobrevivido se não tivessem sido salvas pelos seus respectivos governos, e que muitas, entre as 80 restantes, obtiveram ganhos substanciais através dos pedidos aos governos para "socializarem as suas perdas", como ocorre hoje com o plano de resgate nos EUA, financiado pelo contribuinte. Tal intervenção pública "foi a regra, mais que a excepção, nos dois últimos séculos", concluíram.
Numa sociedade democrática efectiva, uma campanha política teria de abordar esses assuntos fundamentais, observar as causas e os remédios para estas, e propor os meios através dos quais o povo que sofre as consequências pudesse chegar a exercer um controlo efectivo.
O mercado financeiro "despreza o risco" e é "sistematicamente ineficaz", como escreveram há uma década os economistas John Eatwell e Lance Taylor, alertando para os gravíssimos perigos que a liberalização financeira engendrava, e mostrando os custos em que se já se tinha incorrido.
Além disso, propuseram soluções que, deve-se dizer, foram ignoradas. Um factor de peso é a incapacidade de calcular os custos que recaem sobre aqueles que não participam dessas transacções. Essas externalidades podem ser enormes. A ignorância do risco sistémico leva a que se corram mais riscos, o que não aconteceria numa economia eficiente, mesmo usando medidas mais exigentes.
A tarefa das instituições financeiras é arriscar-se e, se forem bem geridas, assegurar que as suas potenciais perdas sejam cobertas. A ênfase está no "suas". Segundo as regras do capitalismo de estado, não lhes cabe levar em conta os custos dos outros - as "externalidades" de uma sobrevivência decente - se as suas práticas levarem a crises financeiras, como regularmente acontece.
A liberalização financeira teve efeitos muito além da economia. Há muito que se compreendeu que é uma arma poderosa contra a democracia. O movimento livre dos capitais cria o que alguns chamaram de "parlamento virtual" de investidores e credores que controlam de perto os programas governamentais e "votam" contra eles, se os consideram "irracionais", quer dizer, se forem em benefício do povo e não do poder privado concentrado.
Os investidores e credores podem "votar" com a fuga de capitais, com ataques às divisas e com outros instrumentos oferecidos pela liberalização financeira. Essa é uma das razões pelas quais o sistema de Bretton Woods, estabelecido pelos EUA e pela Grã-Bretanha depois da II Guerra Mundial, instituiu o controlo de capitais e regulou as moedas 1.

A Grande Depressão e a Guerra despertaram poderosas correntes democráticas radicais que iam da resistência antifascista às organizações da classe trabalhadora. Essas pressões tornaram necessário que se tolerassem políticas sociais democráticas. O sistema Bretton Woods foi, em parte, concebido para criar um espaço no qual a acção governamental pudesse responder à vontade pública, permitindo alguma democracia.
John Maynard Keynes, o negociador britânico, considerou que a instituição do direito dos governos a restringir os movimentos de capitais era a mais importante conquista estabelecida em Bretton Woods.
Num contraste espectacular, na fase neoliberal que se seguiu ao colapso do sistema de Bretton Woods nos anos 70, o Tesouro norte-americano passou a considerar a livre circulação de capitais um "direito fundamental", diferente de alegados "direitos", como os garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos: direito à saúde, à educação, ao emprego decente, à segurança, e outros direitos de que as administrações de Reagan e de Bush desdenharam como sendo "cartas ao Pai Natal", "absurdos", meros "mitos".
Nos primeiros anos, as pessoas não tiveram maiores problemas. Barry Eichengreen estudou as razões para que isso tivesse acontecido, na sua história académica do sistema monetário. Ele explica que, no século XIX, os governos ainda não estavam "politizados pelo sufrágio universal masculino, pelo ascenso do sindicalismo e dos partidos trabalhistas parlamentares." Por conseguinte, os graves custos impostos pelo parlamento virtual podiam ser transferidos para a população em geral.
Mas, com a radicalização da população durante a Grande Depressão e a guerra antifascista, o poder e a riqueza privados foram forçados a privar-se desse luxo. Assim, no sistema de Bretton Woods "os limites da democracia como fonte de resistência às pressões do mercado foram substituídos por limites à mobilidade do capital."
O corolário óbvio é que, após o desmantelamento do sistema do pós-guerra, a democracia foi restringida. Foi assim necessário controlar e marginalizar de algum modo a população e a opinião pública, processos particularmente evidentes nas sociedades mais avançadas no mundo dos negócios, como os EUA. A gestão das extravagâncias eleitorais por parte da indústria de relações públicas é disso uma boa ilustração.
"A política é a sombra dos grandes negócios sobre a sociedade", concluiu o maior filósofo norte-americano do século XX, John Dewey, e assim continuará a ser, enquanto o poder consistir "nos negócios para benefício privado através do controlo privado da banca, das terras e da indústria, reforçados pelo controlo da imprensa, dos jornalistas e de outros meios de publicidade e propaganda."
Os EUA têm efectivamente um sistema de um só partido, o partido dos negócios, com duas facções, republicanos e democratas. Há diferenças entre eles. No seu estudo "A Democracia Desigual: a Economia Política da Nova Era de Ouro", Larry Bartels mostra que durante as últimas seis décadas "os rendimentos reais das famílias de classe média cresceram duas vezes mais rápido sob administrações democratas que republicanas, enquanto os rendimentos reais das famílias pobres da classe trabalhadora cresceram seis vezes mais rápido sob os democratas que sob os republicanos".
Essas diferenças também podem ser detectadas nestas eleições. Os eleitores deveriam tê-las em conta, mas sem ter ilusões sobre os partidos políticos, e reconhecendo que, nos últimos séculos, a legislação progressista e de bem-estar social sempre foi conquista das lutas populares, nunca oferta dos de cima.
Estas lutas seguem ciclos de êxitos e de retrocessos. Hão de ser travadas a cada dia, não só a cada quatro anos, e sempre com o objectivo de criar uma sociedade genuinamente democrática, da cabine de voto ao posto de trabalho.

Noam Chomsky, professor de linguística no MIT - Massachussets Institute of Technology

Tradução de Luis Leiria

1 O sistema de Bretton Woods de gestão financeira global foi criado por 730 delegados de 44 nações aliadas na II Guerra Mundial, que compareceram a uma Conferência Monetária e Financeira organizada pela ONU no hotel Mont Washington, em Bretton Woods, New Hampshire, em 1944. Bretton Woods, que entrou em colapso em 1971, era o sistema de normas, instituições e procedimentos que regulavam o sistema monetário internacional e sob cujos auspícios se criou o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) - hoje uma das cinco instituições que compõem o Grupo do Banco Mundial- e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que passaram a funcionar em 1945. O traço principal de Bretton Woods era a obrigação de todos os países de adoptar uma política monetária que mantivesse dentro de valores fixos a taxa de câmbio da sua moeda. O sistema entrou em colapso quando os EUA suspenderam a convertibilidade do padrão ouro do dólar. Isso criou a insólita situação em que o dólar chegou a converter-se em "moeda de reserva" para os outros países que estavam em Bretton Woods.

Dossier:
Dossier 095: Crise Financeira Internacional (2008)


"Os capitalistas chamam ‘liberdade de imprensa’ a compra dela pelos ricos. Servindo-se da riqueza para fabricar e falsificar a opinião pública.”

(Vladimir Lenin)