Parece que a cada dia que passa desde o assassinato da
vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes o episódio se torna
mais e mais revelador da profundidade e do caráter irreversível da crise
brasileira. Dentre tantos fatos e tendências relevantes me ocorre citar o que
me parece ser o mais significativo: o caráter das manifestações públicas aos
assassinatos caracterizados pela repulsa a um ato bárbaro, covarde e
inaceitável. E ai reside uma das faces mais interessantes da atual crise porque
revela o perfil inédito das manifestações populares. Vimos como no caso do
julgamento do ex-presidente lulla no TRF-4 em Porto Alegre, em janeiro o ex-ministro
Zé Dirceu, apesar de ter convocado a militância (que compareceu em peso) para
“luta e combate” absolutamente nada aconteceu além de um tipo de
compartilhamento coletivo de derrota sem qq efeito prático e esvaziado de
sentido político. Trata-se de mais um episódio típico da assim chamada
“conciliação” de classes praticada desde sempre pelo lullismo. Outro tipo de
manifestação popular foram as motivadas pelo protesto e/ou luto pelos
assassinatos de Marielle e Anderson, caracterizadas pela multiplicidade de
apropriações do evento praticadas pelas diversas militâncias identitárias
pós-modernas. Relegando a segundo plano a luta da falecida vereadora contra a
violência policial, tais militâncias se apressaram em converte-la em ícone das
demandas das mulheres, dos negros, dos favelados, das lésbicas, dos bissexuais,
das mães solteiras e por ae afora. Até mesmo os manifestantes lullistas
pretenderam associar o que alegam ser a perseguição a lulla aos assassinatos
como se ambos eventos fizessem parte de um mesmo “golpe”. Ou seja, tais
manifestações apenas aparentemente são de massa porque revelam a profunda
divisão que existe entre os que delas participam. Além de divididos os
manifestantes fazem questão de explicitar seu antagonismo aos demais, uma vez
que a excludente e insular categoria do “lugar-de-fala” pregada pela militância
identitária neoliberal a serviço do rentismo internacional pressupõem o
monopólio do protagonismo por cada fração – minúscula como possa ser – na
reivindicação do sentido político dos assassinatos. Dae a hostilidade, senão
condenação, aos manifestantes que pretendem protagonizar os protestos em se
tratando de indivíduos não-negros, moradores das regiões centrais,
heterossexuais, cisgeneros, lullistas, etc. Neste caso temos uma multidão que é
só aparente porque se trata na verdade de um conjunto de militâncias não apenas
profundamente divididas mas hostis umas às outras e entre si msms. Com base nos
dois exemplos citados pode-se elencar os novos tipos de manifestação popular do
contexto atual: 1) manifestação com perfil militante definido mas sem propósito
concreto; 2) manifestação que aparenta ser coletiva mas que na verdade é tão
heterogênea que de evento de massa conserva só a aparência e seu sentido último
pode ser, no limite, a confrontação entre seus participantes. É duvidoso que se
possa contar com qualquer uma delas para se provocar qq mudança relevante. Pode
ser que estejamos presenciando não apenas o fim da multidão como propôs Mike
Davis (1990) mas também o fim do povo brasileiro enquanto possibilidade
histórica, aquele que noutros tempos teria tornado possível as maiores
manifestações de massa da história recente, como foram as da campanha em prol
de eleições diretas-já (1984). A crise segue se aprofundando e é duvidoso, tomando
como exemplo os dois tipos de manifestações citadas, que se possa contar com o
protagonismo popular para definir seu desfecho. A possibilidade histórica de
uma solução conservadora, senão reacionária, para a crise só aumenta, devendo
os precedentes históricos de 1990 e 1964 serem tomados como base para reflexão.
Dennison de Oliveira