sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

“Quantas vezes


esfregou

os dedos nas unhas

o sol caindo atrás

das paredes

quantas vezes revezou-se

consigo mesmo em silêncio

quantas vezes esteve

no justo oriente de qualquer limo

quantas vezes quis

ser Rimbaud e traficou

aspirina

os dias passaram, severos,

como o vazio

hoje?, ontem?, quantas vezes

as grimpas não giraram

o amor era das palavras, entre elas

fria estrela que irrompe

(Canção 4. De Remorso do Cosmos, 2003)

ATÉ AGORA

Autor: Régis Bonvicino. Editora: Imprensa Oficial
“Me


transformo,

outra janela–

outro

que se afasta e não se

reaproxima

nas desobjetivações e

reativações,

nas linhas e realinhamentos

outros

me atravessam

morto de ser

coisas perdem sentido

expressões figuradas como

ossos de borboleta

me transformo

na observação

de uma pétala

*

Me destransformo

a mesma janela –

outro

que não se afasta

Nas objetivações,

alinhamentos

e linhas inexistentes

iguais me repassam

Retrato desativado,

taxidermista de mim mesmo

Régis Bonvicino

(Me Transformo. Ossos de Borboleta, 1999)
“O que matou com disparos


na cabeça

O que eletrocutou o

estuprador

- fio puxado do bico de luz

da cela -

e pediu perdão a Deus

O que decepou um dos seus

O que trocava de nome & de sexo

a cada morte

O que ouvia vozes

O que estuprou a filha

(meses)

O que atraía garotos

com revistas de mulheres nuas

“Papillon” traficava cocaína

e crack

Narque espancou o cara

até abrir sua carne

(O Que. Outros Poemas, 1993)

Régis Bonvicino

Le juriste 1566

“O lobo-guará é manso


foge diante de

qualquer ameaça

é solitário

avesso ao dia, tímido

detesta as cidades

para fugir do ataque

cada vez mais inevitável

dos cachorros

atravessa estradas

onde quase sempre é

atropelado

onívoro, com mandíbulas

fracas

come pássaros, ratos, ovos,

frutas

às vezes, quando está perdido,

vasculha latas de lixo nas ruas

engasga ao mastigar garrafas

de plástico ou isopores

se corta e ou morre ao morder

lâmpadas fluorescentes

ou engolir fios elétricos

morre ao lamber inseticidas

ou restos de tinta

ou ao engolir remédios

vencidos

ou seringas e agulhas

descartáveis

dócil, sem astúcia,

é facilmente capturado e morto

por traficantes de pele

quando então uiva

(Extinção. Página Órfã, 2007)

Pena Capital

Mário Cesariny

Em todas as ruas te encontro

em todas as ruas te perco

conheço tão bem o teu corpo

sonhei tanto a tua figura

que é de olhos fechados que eu ando

a limitar a tua altura

e bebo a água e sorvo o ar

que te atravessou a cintura

tanto tão perto tão real

que o meu corpo se transfigura

e toca o seu próprio elemento

num corpo que já não é seu

num rio que desapareceu

onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro

em todas as ruas te perco.

Mário Cesariny


Pena Capital I. Assírio & Alvim, 2ª ed., 1999