quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Qui a fait le jour et la nuit?
Who made the day and the night ?

D`où venons nous? D`où sortons nous ?
Where do we come from? Where do we leave from?

Quand saurait-je où je vais?
When will I know where I`m going?

Porquoi le toucher de la main de mon ami(e) m`este si agréable et me donne tant de plaisir ?
Why does the touch of my friend`s hand give me pleasure?

Pourquoi sommes-nous sur terre?
Why are we here ?

LOUISE BOURGEOIS le jour la nuit le jour, 8 octobre 2002 – 6 avril 2003, Palais de Tokyo, site de création contemporaine.
DERSU UZALA – DERUSU - USARA
DERSU UZALA, A ÁGUIA DAS ESTEPES



"A recepção desastrosa que teve Dodeskaden (talvez o maior fracasso da carreira de Kurosawa) teve graves consequências na vida do realizador acabando por marear o fim de uma fase da sua carreira. Aliás esse fim é paralelo de grandes transformações nos meios de comunicação em todo o mundo, mas que no Japão teve efeitos bastante graves no campo da produção cinematográfica. A quebra no número de espectadores provocada pela televisão foi, neste país, de particular importância pois era também um de maior número de espectadores. É evidente que isto, por si só, não foi responsável pelo desastre de Dodeskaden, mas explica grande parte dele. Porém, se o drama era geral no campo da produção, para Kurosawa foi mais grave porque desde há algum tempo se assumira como produtor dos seus próprios filmes. 0 desastre de Dodeskaden representou quase a sua ruína, provocando-lhe uma depressão psicológica que o levou à beira do suicídio. Durante dois anos Kurosawa julgou-se "arrumado", tanto mais que as companhias de produção que continuavam a laborar não ousavam arriscar o seu dinheiro com as "extravagâncias" do velho "imperador". Mas em 1972 recebeu um recado do cineasta soviético Guerassimov, convidando-o a trabalhar no seu país. Desconfiado, primeiro, do sistema de co-produção, Kurosawa acabou por aceitar quando lhe foi garantida liberdade total para o seu projecto, que acabou por representar, para o realizador, um "regresso" à sua juventude, ao escolher um romance de viagens que lera em adolescente, Dersu Uzala, do capitão VIadimir Arseneiev, onde este descreve o seu encontro com um singular habitante da estepe aquando das suas viagens de exploração nas regiões do Oussouri. 0 filme foi um triunfo, conquistando o Oscar para o melhor filme estrangeiro desse ano e mareou a ressurreição de Kurosawa no plano internacional. George Lucas e Francis Coppola ajudá-lo-iam a desbloquear a produção de Kagemusha, que entretanto substituira o seu ambicioso Ran, que capitais franceses, anos depois, permitiriam que se concretizasse.
Dersu Uzala marca, portanto, o início de urna nova carreira de Kurosawa. E com ela, também, um novo tipo de preocupações, a intenção objectiva de "dizer" alguma coisa, transmitir uma mensagem. Afinal, a sua obsessão de Akahige, que terá contribuído para a desastrosa carreira do filme, afirma-se com mais força e alguns filmes como Rapsódia em Agosto só ultrapassam esse obstáculo graças a um genial sentido de mise-en-scène e à poesia das suas imagens. Dersu Uzala está marcado pelas mesmas intenções. Contudo, no seu caso, elas apenas são visiveis a um segundo nível de leitura. 0 que primeiro se destaca deste belíssimo filme é a força das imagens onde a paisagem agreste é o verdadeiro personagem e, por conseguinte, Dersu, que nos surge como uma sua emanação. Só subliminarmente (o seu destino confundido com o da paisagem, e a sua morte coincidindo com o fim daquela região selvagem) o filme de Kurosawa encena a sua "mensagem" ecológica. Antes de mais é a história de uma aprendizagem, e, deste modo, Dersu Uzala junta-se aos clássicos do realizador como Os Sete Samurais e por extensão ao western clássico. Os personagens de Dersu e Arseniev prolongam os do samurai velho e o seu jovem discípulo naquele filme, sendo o primeiro o mestre, cuja experiência lhe permite ler sinais que passam despercebidos ao outro. Mas Dersu é um personagem mais singular, com o seu marcado primitivismo e as suas crenças anímicas. Para ele toda a natureza é um conjunto de seres vivos, o fogo, a água, o Sol e a Lua, todos são "seres" sujeitos aos mesmos caprichos dos humanos e com os quais é possível dialogar, senão mesmo invectivar. É este instinto que lhe permite conhecer a taiga, mas a sua sobrevivência depende do equilíbrio e do respeito por ela. Não se mata por prazer mas apenas por necessidade, nada se destrói ou desperdiça e é preciso pensar nos outros para que esse equilíbrio permaneça (o ritual da comida, sal e fósforos deixados na cabana deserta para outro possível hóspede). Por isso, Dersu é incapaz de se adaptar à vida na cidade, para onde o leva o seu amigo Arseneiev, quando confrontado com a sua perda de visão, o início das perdas das suas faculdades de sobrevivência que, de certo modo é, para ele, como um castigo dos deuses por ter quebrado a harmonia ao matar o tigre. Incapaz de se adaptar às regras da economia de compra e venda, ele que sempre vivera num regime de subsistência e de troca, sem entender o sentido do dinheiro (a narrativa sobre o comerciante que lhe rouba o dinheiro das peles, espantando-se com o seu comportamento). Por isso, também, ele será vítima dessas regras onde impera a rapina (assassinado para lhe roubarem a espingarda de último modelo, presente de despedida de Arseneiev).
Mas a "mensagem" ecológica e a apologia do "bom selvagem" passa para segundo plano perante a grandeza da encenação e a exploração, pela câmara de Kurosawa, dos elementos naturais, em particular na excelente sequência da tempestade na taiga onde, numa corrida contra o tempo, Dersu e Arseneiev, constroem de forma rudimentar um abrigo contra o vento gelado. É um filme também, por onde passa um toque de magia, aquela que a natureza desconhecida sempre inspira nos que a cruzam, acordando instintos primordiais, em particular na fabulosa sequência do encontro de Dersu e Artseneiev, numa noite em que as chamas da fogueira constroem na paisagem figuras fantasmagóricas que se recortam nos ramos das árvores, a paisagem de uma "noite de Walpurgis (noite de bruxas) como evoca Arsenciev, antes de um ruído lançar um alerta. Algo se aproxima e um grito ecoa: "Não disparem. É um homem", diz uma voz que se verá ser a de Dersu. Naquela simples apresentação, "um homem" se concentra todo o universo, porque Dersu é a materialização da própria natureza."

M.C.F.

in AKIRA KUROSAWA, “As Folhas da Cinemateca”, Lisboa,Ministério de Cultura, 2001, p.p. 88-90.
A GREVE



"Após o êxito de Alexandre Nevsky, que repôs Eisenstein na posição que ocupava na URSS rios anos 20, e enquanto este filme voltava às prateleiras em consequência do pacto germano-soviético, o realizador encenou para o Bolshoi a "Valquíria" de Wagner, que seria apresentada ao enviado do governo germano Nazi alemão. Segundo o próprio Eisenstein, a encenação serviu-lhe para experimentar uma série de ideias novas referentes a iluminação e cor, e à relação entre os cenários e os intérpretes, que iria utilizar exaustivamente em lvan o Terrível. No fim de contas, toda a carreira artística de Eisenstein parece resumir-se a este movimento, que o leva, numa espiral ascendente, a cruzar todas as formas artísticas até culminar numa síntese que é o filme. Ela é a melhor ilustração de um aforismo famoso do próprio Eisenstein que diz que o cinema é a síntese das artes e das ciências.
A Greve ilustra também, de modo perfeito, essa evolução, embora não tenha (e naturalmente, visto tratar-se não só de uma primeira obra, e nascida do entusiasmo e de uma manifestação artística febril e agitada) a serenidade e o rigor das obras futuras. Os seus limites foram apontados pelo próprio Eisenstein no seu texto "Do teatro ao cinema": "0 nosso entusiasmo traçou uma imagem plana, sem perspectiva. Sem perspectiva porque a pintura das massas exige que, no interior da colectividade, cada um dos indivíduos seja desenvolvido ao máximo", acrescentando, para evitar confusões que "se trata duma concepção absolutamente oposta à do individualísmo burguês". Nessa direcção seguira o seu amigo Pudovkine com A Mãe.
A Greve culmina, da parte de Eisenstein, um processo onde desenvolveu todas as experiências possíveis no campo da encenação teatral. A utilização do cinema representou, primeiro, uma "revolta contra o palco". Nas suas encenações no Proletkult utilizara uma mistura de todos os elementos expressivos, a que ele chamaria a "montagem de atracções" e que incluiria também um pequeno filme exibido nas representações. Eisenstein, com o seu "desejo de adoptar princípios radicalmente novos", estava maduro para a passagem ao cinema. Com o Colectivo do Proleticult de Moscovo, de que fazia parte, Eisenstein começou a estudar a possibilidade da realização de uma série de filmes que fossem o balanço das lutas dos trabalhadores que culminaram na Revolução de Outubro, sob o título genérico de Rumo à Ditadura (do Proletariado). 0 primeiro, que seria o único a chegar a bom termo, foi A Greve, escrito pelo Colectivo sob a direcção de Eisenstem. Na sua totalidade o plano compunha-se de 7 filmes, que eram:

1) De Genebra a Moscovo;

2) Clandestinidade;

3) 0 Primeiro de Maio;

4) 1905;

5) A Greve;

6) Prisões, Motins e Evasões;

7) Outubro.

Na sua realização Eisenstein vai dar rédea solta a todas as ideias que fervilhavam naquele tempo de grande agitação artística. Com A Greve ele dá de facto início ao cinema soviético, um cinema de formas novas para um conteúdo novo. Em A Greve Eisenstein iniciou uma frutuosa colaboração com o operador Eduard Tissé que duraria durante toda a sua carreira. Tissé, de origem Sueca, fora repórter cinematográfico durante a guerra civil, tendo trabalhado com Vertov no Kino Pravda. Com Eisenstein, Tissé encontrou o companheiro ideal para levar a cabo o seu gosto pela experimentação. A Greve é. deste ponto de vista, um filme experimental, onde uma série de ideias novas são postas à prova, e alcançarão mais tarde a perfeição no Potemkin, Outubro e Que Viva México! Para já, a posição da câmara com o efeito dramático da plongée, que Pudovkine desenvolverá, de forma brilhante, em A Mãe. As sucessivas sobreposições que sublinham a passagem, ou simultaneidade de tempo transformando-se também em metáforas visuais: as máquinas que param por cima das que mostram os operários de braços cruzados; a sucessiva exposição dos denunciantes e das suas alcunhas, a raposa, a coruja, etc., com os rostos dos homens sobrepondo-se aos dos animais; o denunciante nas latrinas, e as famosas e sempre citadas sequências do limão que o patrão esmaga no espremedor e os polícias a cavalo cercando e carregando sobre os operarios e as suas famílias, ou a montagem que opõe, para sintetizar a ideia da repressão, o massacre dos operários e a morte duma rês no matadouro. Esta "montagem de atracções” que Eisenstein desenvolve a partir das experiências teatrais de acções múltiplas, vários palcos e arenas, dá origem, no dizer de Jay Leyda, a um filme “pleno de metáforas cinematográficas, e as suas imagens evocam para além das sensações visuais, os sons, os cheiros, os contactos tactéis" A Greve reforça estas sensações com uma construção em forma de sinfonia com os Allegros vibrantes do começo e do fim e o Andante breve e calmo que os separa. Esta forma musical está subjacente a esta primeira fase da carreira cinematográfica de Eisenstein que vai até ao Que Viva México!, para dar lugar à ópera a partir de Alexandre Nevsky. Entre outras experiências destaquemos também um breve momento com a imaginação das letras dos intertítulos, logo no começo, quando os problemas começam a surgir e a queda da letra parece marear o desencadeamento dos conflitos, ou aquela sequência em que as fotografias dos denunciantes e espiões da polícia se animam.
A Greve é também, e já, a materialização de ideias que culminam em Outubro. Eisenstein já neste filme recusa o herói individual para dar destaque às massas como um herói colectivo, embora neste caso ainda se sinta o peso da representação teatral do grupo do Proletkult. Mas alcança, parcialmente, um dos objectivos de Eisenstein que era "anular a intriga", encarada como forma romanceada. Primeiro grande filme de uma nova cinematografia, A Greve vai influenciar toda a nova geração de cineastas que se forma: 0 Fim de São Petersburgo de Pudovkine, presta-lhe claramente homenagem, e tanto Dovjenko como Ermler falaram da influência do filme sobre eles. Mas também A Greve sofreu, por seu lado, influências. E a mais clara é a do episódio moderno de Intolerância, filme que gozava de grande prestígio na URSS. Eisenstein diria que todo o cinema soviético nasceu daquele filme de Griffith.
As reacções ao tempo, na URSS, foram significativas: o Kino Gazeta dizia: "Os écrans da União Soviética jamais viram filme mais importante, tanto no significado ideológico, como nas suas qualidades formais". E Vertov referia-se ao filme de Eisenstein dizendo: "Com A Greve, pela primeira vez o nosso cinema criou qualquer coisa de revolucionário". 0 crítico inglês David Sylvester escreveu: "A arte deste filme evoca a de um poema que lhe é quase contemporâneo 'The Waste Land' (de T. S. Elliot). Evoca-o pela mesma ligação rítmica de imagens heterogéneas, e pelas mesmas imagens, simultaneamente naturalísticas e simbólicas, que criam o choque pela sua sobreposição".

M.C.F.

in SERGEI EISENSTEIN, “As Folhas da Cinemateca”, Lisboa,Ministério de Cultura, 1998, p.p. 11-14.
FOTOGRAFIA

"El 13 de julio(2003) acaba PhotoEspaña, el festival de fotografía que ha convertido Madrid en una inmensa galería con exposiciones y foros dedicados, en esta ocasión, a “Nos-Otros”. El Cultural ha invitado a Susan Sontag, tan apasionada del arte fotográfico como defensora en su obra literaria y política del Otro (del perseguido, del humillado), a que nos desvele las claves de la fotografía, esa manera moderna de mirar la realidad y de “ampliar el mundo”. Toda una declaración de principios éticos y estéticos, vertida al castellano por Aurelio Major.


La fotografía : breve suma
por Susan Sontag




Pierre Gonnord: Maki, 2003 (Injuve). A la dcha., Amid Shabi (Reuters): Palestina (Fundación Canal)


1. La fotografía es, antes que nada, una manera de mirar. No es la mirada misma.

2. Es la manera ineludiblemente “moderna” de mirar: predispuesta a favor de los proyectos de descubrimiento e innovación.

3. Esta manera de mirar, que tiene ya una dilatada historia, conforma lo que buscamos y estamos habituados a notar en las fotografías.

4. La manera de mirar moderna es ver fragmentos. Se tiene la impresión de que la realidad es en esencia ilimitada y el conocimiento no tiene fin. De ello se sigue que todos los límites, todas las ideas unificadoras han de ser engañosas, demagógicas; en el mejor de los casos, provisionales; casi siempre, y a la larga, falsas. Mirar la realidad a la luz de determinadas ideas unificadoras tiene la ventaja innegable de darle contorno y forma a nuestras vivencias. Pero también –así nos instruye la manera de mirar moderna– niega la diversidad y la complejidad infinitas de lo real. Por lo tanto reprime nuestra energía, nuestro derecho en efecto, a refundar lo que deseamos refundar: a nuestra sociedad o a nosotros mismos. Lo que libera, se nos dice, es notar cada vez más cosas.

5. En una sociedad moderna las imágenes realizadas por las cámaras son la entrada principal a realidades de las que no tenemos una vivencia directa. Y se espera que recibamos y registremos una cantidad ilimitada de imágenes acerca de lo que no vivimos directamente. La cámara define lo que permitimos que sea “real”; y sin cesar ensancha los límites de lo real. Se admira a los fotógrafos sobre todo si revelan verdades ocultas de sí mismos o conflictos sociales no cubiertos del todo en sociedades próximas y distantes de donde vive el espectador.

6. En la manera de conocer moderna, debe haber imágenes para que algo se convierta en “real”. Las fotografías identifican acontecimientos. Las fotografías le confieren importancia a los acontecimientos y los vuelven memorables. Para que una guerra, una atrocidad, una epidemia, o un denominado desastre natural sean tema de interés más amplio, han de llegar a la gente por medio de los diversos sistemas (de la televisión e internet a los periódicos y revistas) que difunden las imágenes fotográficas entre millones de personas.

7. En la manera de mirar moderna, la realidad es sobre todo apariencia, la cual es siempre cambiante. Una fotografía registra lo aparente. El registro de la fotografía es el registro del cambio, de la destrucción del pasado. Puesto que somos modernos (y si tenemos la costumbre de ver fotografías somos, por definición, modernos), sabemos que todas las identidades son construcciones. La única realidad irrefutable –y nuestro mejor indicio de identidad– es cómo aparece la gente.

8. Una fotografía es un fragmento: un vislumbre. Acopiamos vislumbres, fragmentos. Todos almacenamos mentalmente cientos de imágenes fotográficas, prestas a la recuperación instantánea. Todas las fotografías aspiran a la condición de ser memorables; es decir, inolvidables.

9. Según la perspectiva que nos define como modernos, hay un número infinito de detalles. Las fotografías son detalles. Por lo tanto, las fotografías se parecen a la vida. Ser moderno es vivir, hechizado, por la salvaje autonomía del detalle.
10. Conocer es, sobre todo, reconocer. El reconocimiento es la modalidad del conocimiento que ahora se identifica con el arte. Las fotografías de las crueldades e injusticias terribles que afligen a la mayoría de las personas en el mundo parecen decirnos –a nosotros, que somos privilegiados y estamos más o menos a salvo– que deberíamos sublevarnos, que deberíamos desear que algo se hiciera para evitar esos horrores. Y además hay otras fotografías que parecen reclamar un tipo de atención distinto. Para este conjunto de obras en curso, la fotografía no es una suerte de agitación social o moral, cuya meta es incitar a que sintamos algo y actuemos, sino una empresa de notación. Observamos, tomamos nota, reconocemos. Ésta es una manera más fría de mirar. La manera de mirar es lo que identificamos como arte.

11. La obra de los mejores fotógrafos comprometidos socialmente es a menudo condenada si se parece demasiado al arte. Y a la fotografía tenida por arte se le puede condenar de modo paralelo: marchita la emoción que nos llevaría a preocuparnos. Nos muestra acontecimientos y circunstancias que acaso deploremos y nos pide que mantengamos distancia. Nos puede mostrar algo en verdad horripilante, y ser una prueba de lo que es capaz de tolerar nuestra mirada y se supone que debemos aceptar. O a menudo simplemente nos invita –y esto es cierto en casi toda la fotografía contemporánea más brillante– a fijar la vista en la banalidad. Fijar la vista en la banalidad y también paladearla, recurriendo precisamente a los mismos hábitos de la ironía que se afirman mediante la surrealista yuxtaposición de consabidas fotografías en las exposiciones y libros más refinados.

12. La fotografía –la insuperable modalidad del viaje, del turismo– es el principal medio moderno de ampliación del mundo. En cuanto rama del arte, la empresa fotográfica que hace más amplio el mundo tiende a especializarse en los temas que al parecer son provocadores, transgresores. La fotografía puede estar diciéndonos: esto, también, existe. Y eso. Y aquello. (Y todo es “humano”.) Pero ¿qué hemos de hacer con este conocimiento, si acaso es un conocimiento, digamos, del ser, de la anormalidad, de mundos marginados, clandestinos?

13. Llámese conocimiento, llámese reconocimiento; de algo podemos estar seguros acerca de esta modalidad, singularmente moderna, de toda vivencia: la mirada, y el acopio de los fragmentos de la mirada, nunca pueden completarse.

14. No hay fotografía definitiva.



Ya en 1977 Susan Sontag (Nueva York, 1933) demostró con su libro On Photography su enorme interés por un medio todavía en pleno desarrollo artístico. En ese ensayo la escritora sentaba algunas de sus premisas básicas: la observación del medio, el sujeto de la fotografía, la técnica (cómo el fotógrafo se convierte en artista). Más adelante, y debido a sus actividades políticas e intelectuales, la fotografía se convierte también para Sontag en documento, en memoria. Su último libro, Ante el dolor de los demás (2003), también trata de la fotografía."

In www.elcultural.es
"O Futuro Político da Lusofonia",

Vamireh Chacon, na UBI.

"APRESENTAÇÃO

0 quinto centenário da Descoberta do Brasil proporciona muitas meditações sobre a presença de Portugal no Mundo e o futuro da lusofonia. Quinto centenário que coincide com o primeiro de nascimento de Gilberto Freyre, um dos maiores intérpretes do universo lusíada, diante de antigos e novos desafios.
Em 1940, auge das vitórias nazifascistas na Segunda Guerra Mundial, Gilberto Freyre pronunciava no Recife a conferência "Uma Cultura Ameaçada: A Luso-Brasileira", directamente contra a infiltracção hitleriana entre imigrantes alemães e seus descendentes concentrados no Sul do Brasil. Despreparados politicamente por sua situação em lugares então remotos, abandonados de qualquer ajuda ou instrução, socorriam-se apenas das instituições do seu país de origem, que lhes cobravam tal preço.
Naquela fase de imprecisão quanto aos futuros vencedores, o regime autoritário nacional-desenvolvimentista de Getúlio Vargas pendia a favor de quem lhe parecia o iminente triunfador. Gilberto Freyre opunha-se a esta opção, em companhia de alguns poucos anglo-americanófilos, pela própria formação pessoal gilbertiana: dez anos de cursos primário e secundário no Colégio Americano do Recife - a ponto de Gilberto se tomar protestante baptista, depois retornando aos poucos ao catolicismo luso-ibérico de origem - mais dois anos de bacharelado no Liberal Arts College da Universidade de Baylor e outros dois de mestrado em Ciências Sociais na Universidade de Colúmbia, ambas nos Estados Unidos, e um em Oxford. Ao todo, quinze anos de formação anglófona.
0 varguismo ou getulismo estendeu a Gilberto Freyre a violência com a qual costumava tratar os discordantes da sua política: Gilberto Freyre foi preso e torturado pela polícia política. Era a segunda vez que se defrontava com o getulísmo: em 1930, diante de sua ascensão pela força das armas, Gilberto Freyre havia sido exilado. Só quando da mudança da política externa de Vargas - reconhecendo a derrota nazifascista em Estalinegrado e El-Alamein, e a desequilibrante entrada dos Estados Unidos na guerra em favor dos Aliados - só então Gilberto Freyre se reaproximou de Getúlio Vargas, cujo nacional-desenvolvimentismo, e outros aspectos, muito prezava. Em sinal da consagração da sua previsão da vitória dos Aliados, Gilberto Freyre publica em pleno 1942, ano da mudança da situação militar na Europa, o livro Ingleses, de louvor ao povo a caminho da vitória, livro seguido por Ingleses no Brasil, mais sociológico e mais historiográfico.
Hoje o quadro está alterado, porém, apenas, com a mudança de protagonistas: a Alemanha foi reduzida de fora para dentro com actuação limitada internamente à União Europeia, a Itália ainda mais e o próprio Japão, outrora cúmplices nas tentativas de desagregação do Brasil. Na viragem do século XX ao XXI, outro crescentemente importante marco histórico, as ameaças de desculturação, de selectivas a massificadas, passaram a provir da cultura anglófona, a maior vitoriosa desde a Segunda Guerra Mundial.
Porque o mundo assim tem sido até agora, Gilberto Freyre já apontava desde 1940: «Há perigos reais. Não perigos de nações contra nações - estes são transitórios - nem de Estado contra Estado - estes são ainda mais superficiais; e sim os perigos de culturas contra culturas; sim, as ameaças de imposição violenta da parte dos grupos tecnicamente mais fortes a grupos tecnicamente ainda fracos, de valores de cultura e de formas de organização social, dentro das quais os povos menores se achatariam em vassalos dos vencedores, ou por serem mestiços, ou por serem considerados corruptos, ou por isto, ou por aquilo.»
Veja-se a actualidade gilbertiana, agora em relação a outros povos de pretensões hegemónicas: «nenhum de nós é hoje bastante ingénuo para acreditar em lutas entre a democracia e a tirania, entre o ideal ou o culto do Direito todo de um lado e a força bruta toda do outro, entre nações de homens justos, honrados e de um só parecer contra nações de velhacos; se nenhum de nós se deixa iludir por qualquer dessas mistificações, por outro lado alguns acham prudente acreditar em perigos concretos contra os quais se impõem defesas, precauções, vigilâncias: até mesmo o confiar desconfiando, do caboclo brasileiro».
Diante da penetração do francês na Guiné-Bissau e do inglês em Moçambique (em Goa, Damão e Diu a ameaça anglófona oficial da Índia já consumada), diante mesmo do bahasa indonésio em Timor Leste, cumpre reagir em defesa da lusofonia com seus valores, recordando as palavras gilbertinianas de 1940: «resguardá-la de imperialismos de qualquer espécie, mesmo o apenas o doutrinário; resguardá-la de qualquer espécie de intromissão imperialista no íntimo de sua vida e no essencial de sua cultura ... »
A fome, a enfermidade, o desemprego, os danos antiecológicos e a opressão não têm pátria, mas o capital também não a tem. A forma é também o limite do conteúdo da economia à cultura. 0 universal permanece o princípio e o fim, porém através de mediações culturais.
Diante dos consumismos e modismos, lembremos sempre - aos lusófonos de Portugal, Brasil, África, Ásia e Oceânia - a nunca renunciarmos ao «princípio e o método de democratização das nossas sociedades... pela miscigenação, pela mistura das raças, pelo intercurso entre as culturas. Princípio e método que são a maior contribuição portuguesa e brasileira para o melhor reajustamento das relações entre os homens».
Gilberto Freyre nunca afirmou a democracia racial pronta e acabada na lusofonia, e sim que Portugal e Brasil dela estão mais próximos que qualquer outra cultura ou civilização actual. Compare-se Brasil e Portugal nesta viragem de século XX ao XXI, com a Bósnia, Chechénia, Kosovo ou Ruanda-Burundi. Que a África, a Ásia e a Oceânia lusófonas sigam também este caminho ao seu modo e maneira, inovando-os embora e protestando, acrescentando. Compare-se ainda Portugal e Brasil com as relações internas interétnicas nos Estados Unidos e países europeus com pretensão de ditarem normas a este respeito.
Ninguém é perfeito, nisto somos menos imperfeitos, motivo não de comemoração imobilista e sim de incentivo, mesmo de desafio, a corrigirmo-nos mais e melhor à frente de quem nos quer diminuir no contexto do conflito cultural, dentro do qual se efectuam os económicos, políticos, tecnológicos e éticos, em proveito dos seus interesses nem sempre coincidentes com os nossos, por trás de todo o seu discurso mais moralista que realmente moral.
A presença de Portugal no Mundo é também a do Brasil e a de toda a lusofonia diante de antigos e novos desafios.

Em Lisboa e Brasília, noutro início de século da lusofonía, da Europa à América, Áfríca, Oriente e Oceânia."

CHACON, Vamireh, “O Futuro Político da Lusofonia”, Lisboa-São Paulo, Verbo, 2002, p.p. 9 - 11.
A Ignorância

"0 regresso, em grego, diz-se nostos. Algos significa sofrimento. A nostalgia é portanto o sofrimento causado pelo desejo insatisfeito de regressar. Para esta noção fundamental, a maior parte dos europeus pode utilizar uma palavra de origem grega (nostalgia) e além disso outras palavras com raízes na sua língua nacional: anoranza, dizem os espanhóis; saudade, dizem os portugueses. Em cada língua, estas palavras possuem um matiz semântico diferente. Muitas vezes significam apenas a tristeza causada pela impossibilidade do regresso ao país. Recordação dolorosa do país. Recordação dolorosa do lugar. 0 que, em inglês, se diz: homesickness. Ou em alemão: Heimweh. Em holandês: heimwee. Mas trata-se de uma redução espacial da grande noção. Uma das mais antigas línguas europeias, o islandês, distingue bem dois termos: söknudur: nostalgia no seu sentido geral; e heimfra: recordação dolorosa do país. Os checos, a par da palavra nostalgie vinda do grego, têm para a noção o seu próprio substantivo, stesk, e o seu próprio verbo; a mais comovente expressão de amor checa: styska se mi po tobe: tenho nostalgia de ti; não posso suportar a dor da tua ausência. Em espanhol, anoranza vem do verbo anorar (ter nostalgia), que vem do catalão enyorar, derivado, por seu turno, da palavra latina ignorare (ignorar). A esta luz etimológica, a nostalgia aparece como o sofrimento da ignorância. Tu estás longe, e eu não sei o que te acontece. 0 meu país está longe, e não sei o que lá se passa. Certas línguas têm algumas dificuldades com a nostalgia: os franceses só podem exprimi-la por meio do substantivo de origem grega e não têm verbo para ela; podem dizer je m'ennuie de toi, mas o verbo s`ennuyer é fraco, frio e seja como for demasiado ligeiro para um sentimento tão grave. Os alemães raramente utilizam a palavra nostalgia na sua forma grega e preferem dizer Sehnsucht: desejo do que está ausente; mas Sehnsucht pode visar de igual modo tanto o que foi como o que nunca foi (uma nova aventura) e por isso não implica necessariamente a ideia de um nostos; para se incluir na Sehnsucht a obsessão do regresso, seria preciso acrescentar um complemento: Sehnsucht nach der Vergangenheit, nach der verlorenen Kindheit, nach der ersten Liebe (saudades do passado, da infância perdida, do primeiro amor).
Foi na aurora da antiga cultura grega que nasceu A Odisseia, a epopeia fundadora da nostalgia. Sublinhemo-lo: Ulisses, o maior aventureiro de todos os tempos, é também o maior nostálgico. Foi (sem grande prazer) para a Guerra de Tróia, onde ficou dez anos. Depois apressou-se a regressar à sua ítaca natal, mas as intrigas dos deuses prolongaram o seu périplo, primeiro por três anos recheados dos acontecimentos mais insólitos, depois por sete outros anos que ele passou, refém e amante, com a deusa Calipso que, apaixonada, não o deixava partir da sua ilha.
No final do canto quinto d`A Odisseia, Ulisses diz-lhe: «Por avisada que seja, sei que ao pé de ti Penélope ficaria sem grandeza nem beleza... E no entanto o único voto que faço todos os dias é voltar para lá, ver na minha casa o dia do regresso!». E Homero continua: «Enquanto Ulisses falava, o sol deitou-se; veio o crepúsculo: sob a abóbada, no fundo da gruta, voltaram para dentro para ficarem a amar-se nos braços um do outro».
Nada de comparável com a vida da pobre emigrada que Irena fora durante muito tempo. Ulisses viveu na ilha de Calipso uma verdadeira dolce vita, vida confortável, vida de alegrias. No entanto, entre a dolce vita no estrangeiro e o arriscado regresso a casa, escolheu o regresso. À exploração apaixonada do desconhecido (a aventura), preferiu a apoteose do conhecido (o regresso). Ao infinito (porque a aventura entende não findar jamais), preferiu o fim (porque o regresso é a reconciliação com a finitude da vida).
Sem o despertarem, os marinheiros da Feácia depuseram Ulisses envolvido em lençóis na costa de Ítaca, debaixo de uma oliveira, e partiram. Tal foi o fim da viagem. Ulisses dormia, exausto. Quando despertou não sabia onde estava. Depois Atena afastou a bruma dos seus olhos e foi a embriaguez; a embriaguez do Grande Regresso; o êxtase do conhecido; a música que fez vibrar o ar entre a terra e o céu: viu a enseada que conhecia desde a infância, as duas montanhas que a dominavam, e acariciou a velha oliveira para se certificar de que ela continuava a ser como há vinte anos.
Em 1950, quando Arnold Schönberg estava há catorze anos nos Estados Unidos, um jornalista americano fez-lhe algumas perguntas perfidamente ingénuas: é verdade que a emigração faz com que os artistas percam a sua força criadora? Que a sua inspiração murcha quando as raizes do país natal deixam de a alimentar?
Imagine-se! Cinco anos depois do Holocausto! E um jornalista americano não perdoa a Schönberg a sua falta de apego por esse pedaço de terra onde, diante dos seus olhos, o horror do horror se pusera em andamento! Mas nada a fazer. Homero glorificou a nostalgia por meio de uma coroa de louros e estipulou assim uma hierarquia moral dos sentimentos. Penélope ocupa o seu topo, muito acima de Calipso.
Calipso, ah, Calipso! Penso muitas vezes nela. Amou Ulisses. Viveram juntos sete anos. Não se sabe quanto tempo Ulisses partilhara o leito de Penélope, mas não foi decerto tanto tempo. No entanto exalta-se a dor de Penélope e troça-se das lágrimas de Calipso."

KUNDERA, Milan (trad. Miguel Serras Pereira), ?A Ignorância?, Porto, Edições Asa, 2002, p.p. 7-10.

Dolls

SÃO PETERSBURGO (fim)

As primeiras pedras


"...esta grande janela aberta recentemente no Norte, através da qual a Rússia olha para a Europa".
(Francesco Algarotti, 1739)

Velejando pela embocadura do rio Neva, recém conquistada aos suecos durante a Guerra do Norte, o czar Pedro, o Grande, decidiu desembarcar na pequena ilha de Zayachii ostrov. Arregaçando as mangas, ele que apreciava o trabalho físico, deu início as escavações do que viria a ser a futura fortaleza de Pedro-Paulo (que, em tempos de paz, pelos dois séculos em diante, serviu como central de encarceramento dos inimigos políticos do regime). Ao redor dela, nos canais que ainda seriam abertos, o czar mandou então que erguessem uma majestosa cidade. Exigiu-a de pedra para que a presença russa no Mar Báltico fosse para sempre. Uns anos antes ele viajara para o Ocidente, visitando a Alemanha, a Inglaterra e a Holanda, impressionando-se vivamente com a prosperidade reinante. Encantou-se quando viu a assombrosa paisagem de embarcações que os estaleiros de Amsterdã estavam construindo.

A Rússia tinha que deixar de ser asiática, dar um basta nos hábitos tártaros, fazer aparar ou cortar aquelas barbas imensas que os mujiques, os camponeses, usavam, imitando os patriarcas bíblicos. Era essa a razão que o levou a fundar no dia 27 de maio de 1703 a sua nova capital: São Petersburgo (homenagem a São Pedro). Através dela, transferindo o trono de Moscou, a Rússia ingressaria na Europa. Para melhor supervisionar as obras, um projeto do arquiteto francês Jean-Baptiste LeBlond, ele alojou-se numa izbá, uma casinhola, onde ficou pelos primeiros cinco anos, até 1708. O custo humano foi terrível. Dizem que boa parte dos palácios e demais prédios públicos foram erguido sobre o ossuário dos operários mortos, gente que ele arrebanhou de todos os lugares do país. Fundada, disse o historiador N. Karamzin “sobre lágrimas e cadáveres”. Pedro não viu a cidade pronta, mas a estrutura urbanística permaneceu sempre a mesma. Diderot, estranhando aquele translado de Moscou para a beira do rio Neva, comentou que “ era o mesmo do que colocar o coração na ponta do dedo”. O produto final, porém, foi uma maravilha. Os russos, que a chamam de Veneza do Báltico, até hoje dizem que ela é a mais bela cidade do mundo Pode ser, mas distou longe de ser a mais feliz.

Visões negativas

Coube a Nikolai Gogol, entre os literatos russos, expor suas desconfianças sobre a nova capital. Os seus personagens eram gente comum, sem raízes como Akaky Akakievich, que se via perdida em meio aquelas multidões que circulavam pela Perspectiva Nevski, a maior avenida da capital. Para ele tudo aquilo era um engano, a Rússia não era aquilo: “Tudo é sonho”, escreveu ele, “Tudo é outra coisa do que parece!” Afirmação que Dostoievski assinou em baixo quando assumiu-se como um eslavista hostil ao ocidente, dizendo-a uma “cidade para os meio-loucos”.. Para muito intelectuais conservadores, Pedro, o Grande, imortalizado com a magnifica estatua do Cavaleiro de Bronze mandada erguer por Catarina II em 1782, destruiu com seu projeto de modernização (inspirado pelo filósofo alemão Leibniz) os laços dos russos com a sua ancestralidade eslavo-bizantina e cristã-ortodoxa.

Cidade da cultura - da música de Glinka, de Mussorgski, Tchaikóvski, de Rimsky-Kórsakov, de Shostakovich, de Stravinski, do balé de Diaghilev, de Nijinski e de Ana Pavlovna, do teatro de Meyerhold, da poesia de Alexander Blok, de Maiakóvski, e de Ana Akhmatova, das telas de Chagall, de Malevich e de Kandinsky, a que possuiu o maior museu de artes do mundo, o Hermitage -, do epicentro das revoluções de 1905 e de 1917, que puseram fim aos 300 anos do domínio despótico da dinastia Romanov, sua existência foi ameaçada tanto pelos comunistas como pelos nazistas.

S.Petersburgo: Stalin e Hitler

Os primeiros fizeram duas grandes operações contra a intelectualidade da cidade, a primeira delas deu-se em agosto de 1918, logo após o atentado contra Lenin, a segunda depois de dezembro de 1934, em seguida ao assassinato de Kirov, o chefe stalinista local, ocasião em que, por ordem de Stalin, a NKVD, após um orgia de fuzilamentos, deportou de 30 a 40 mil peterburgueses (ditos “assassinos de Kirov”) para o arquipélago Gulag e para os confins da Sibéria (*). Os piores vaticínios feitos sobre o devir futuro de São Petersburgo (rebatizada em 1914 como Petrogrado, e como Leningrado em 1924) como o dito, ainda em 1892, por Dmitri Merejkovski, “estamos na beira de um abismo”, se confirmaram. O pior, entretanto, ainda estava ainda por vir Logo nos começos da invasão nazista da URSS, em 8 de setembro de 1941, teve início o Blokada, o grande cerco de 900 dias estreitado ao redor da grande cidade.
Instada pelo marechal Ritter von Leeb a se render, a população, orgulhosa, combativa, preferiu morrer de fome a levantar a bandeira branca. O resultado é que São Petersburgo, cidade mártir, registrou, entre 1941 e 1944, mais de 600 mil mortos pelas mais variadas privações. Foi como se Stalin e Hitler, sem se combinarem, se esforçassem, cada uma a o seu modo e por razões diversas, a destruir aquela bela cidade, despovoando-a da sua gente criativa e inteligente.

(*) O ditador soviético detestava o ar de independência que os habitantes de Petersburgo tinham. Também deve-se incluir na sua hostilidade o fato dele originar-se da plebe do império que via naquela cidade o símbolo de uma cultura aristocrática e refinada que o bolchevismo vinha para destruir.

O retorno do Cavaleiro de Bronze

Num plebiscito realizado em 1991, durante o colapso da União Soviética, os moradores de Leningrado, originalmente São Petersburgo, votaram em massa a favor da restauração do antigo nome. Atacada brutalmente pelos totalitarismos do século 20, eles resolveram buscar a proteção do antigo padroeiro da cidade, já que os deuses reformadores da intelligentsia russa, fossem eles Fourier, Bakunin ou Marx, todos fracassaram. E assim o Cavaleiro de Bronze, símbolo mor da determinação de Pedro , o Grande, em conquistar uma abertura definitiva para a Europa, glorificado no célebre poema de Puchkin “Um conto de Petersburgo”, de 1833-37, transcorridos os 300 anos da fundação daquela maravilha, volta a empinar o seu corcel estendendo o seu poderoso braço para o Ocidente, para onde afinal se encontra o único destino do russos.

in educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/2003/01/01/000.htm
POESIA

ANNA AKHMATOVA

MÚSICA

"Algo de miraculoso arde nela,
fronteiras ela molda aos nossos olhos.
É a única que continua a me falar
depois que todo o resto tem medo de estar perto.
Depois que o último amigo tiver desviado o seu olhar
ela ainda estará comigo no meu túmulo,
como se fosse o canto do primeiro trovão,
ou como se todas as flores explodissem em versos."

DE "OS MISTÉRIOS DO OFÍCIO"

"De que servem exércitos de canções
e o encanto das elegias sentimentais?
Para mim, na poesia, tudo tem de ser desmesurado,
e não do jeito como todo mundo faz.


Se vocês soubessem de que lixeira
saem, desavergonhados, os versos,
como dente-de-leão que brota ao pé da cerca,
como a bardana ou o cogumelo.


Um grito que vem do coração, o cheiro fresco de alcatrão,
o bolor oculto na parede...
E, de repente, a poesia soa, calorosa, terna,
Para a minha e tua alegria."

ATRAVÉS DOS ESPELHOS
(dois poetas e a musa)

"Esta beldade é muito jovem
mas não é deste século.
Não ficamos sozinhos pois - a terceira -
ela nunca nos abandona.
Puxas para ela uma cadeira
e eu, generosamente, divido com ela minhas flores...
O que estamos fazendo - nem nós mesmos sabemos
mas, a cada momento, mais isso nos assusta...
Como quem saiu da prisão,
sabemos algo um do outro,
algo terrível. Estamos num círculo infernal.
Mas talvez isto não sejamos nós."

À MUSA

Quanto, à noite, espero a tua chegada,
a vida me parece suspensa por um fio.
Que importam juventude, glória, liberdade,
quando enfim aparece a hóspede querida
trazendo nas mãos a sua rústica flauta?
Ei-la que vem. Soergue o seu véu,
olha para mim atentamente.
E lhe pergunto: "Foste tu quem a Dante
ditou as páginas do Inferno?". E ela: "Sim, fui eu".

Do Livro "Anna Akhmátova - Poesia: 1912-1964"
Tradução de Lauro Machado Coelho
Editora L&PM, 1991.
“Que é o tempo? Um mistério: é imaterial e – omnipotente. É uma condição do mundo exterior; é um movimento ligado e relacionado com a existência dos corpos no espaço e com a sua marcha. Mas, deixaria de haver tempo, se não houvesse movimento? Não haveria movimento sem o tempo? É inútil perguntar. É o tempo uma função do espaço? Ou vice-versa? Ou são ambos idênticos? Não adianta prosseguir perguntando. O tempo é activo, tem carácter verbal, «traz consigo». Que é que traz consigo? A transformação. O Agora não é o Então; o Aqui é diferente do Ali; pois entre ambos se intercala o movimento. Mas, visto ser circular, e fechar-se sobre si mesmo, o movimento pelo qual se mede o tempo, trata-se de um movimento e de uma transformação que quase poderiam ser qualificados de repouso e de imobilidade: o Então repete-se constantemente no Agora, e o Ali reaparece no Aqui. Como, por outro lado, nem sequer os mais desesperados esforços nos podem fazer imaginar um tempo finito ou um espaço limitado, decidimo-nos a configurar eternos e infinitos o tempo e o espaço, evidentemente na esperança de obter dessa forma um resultado, senão perfeito, ao menos melhor. Ora, estabelecer o postulado do eterno e do infinito não significa, porventura, o aniquilamento lógico e matemático de tudo quanto é limitado e finito, e a sua redução aproximada a zero? É possível uma sucessão no eterno ou uma justaposição no infinito? São compatíveis com as hipóteses de emergência do eterno e do infinito, conceitos como os da distância, do movimento, da transformação, ou a simples existência de corpos limitados no Universo? Quantas perguntas improfícuas!” (…)

MANN, Thomas, “A Montanha Mágica” (trad. Herbert Caro), Lisboa, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, 2000, p. 362.
“Havia ou não uma guerra dos Balcãs? Tivera lugar uma intervenção, isso era certo; mas ele não sabia se se tratava de uma guerra. Muitas coisas estavam agitando a humanidade. Fora batido o recorde de altitude em avião: um belo feito. Se não estava em erro a tabela estava agora em 3700 metros e o homem chamava-se Jouhoux. Um boxeur negro vencera o campeonato mundial e arrebatara o título: o seu nome era Johnson. O presidente da República Francesa ia à Rússia: dizia-se que a paz estava ameaçada. Um tenor, descoberto havia pouco, ganhava na América do Sul quantias que a própria América do Norte desconhecida. Um terramoto tremendo enlutara o Japão: pobres japoneses. Numa palavra, estavam-se passando muitas coisas, vivia-se uma época agitada, fins de 1915 princípios de 1914 [sic]. Porém, dois ou três anos antes vivera-se também uma época agitada, cada dia tivera as suas emoções e, apesar de tudo, já ninguém se lembrava, ou quase, do que se passara então. Podia-se fazer um relatório a tal respeito. O novo remédio contra a sífilis tivera… As investigações acerca do metabolismo vegetal parece que… A conquista do pólo Sul afigura-se… As experiências de Steinnach despertam…; era possível suprimir assim metade dos dados, isso não tinha grande importância. Que engraçada, a História da História! Podia-se afirmar com certeza que este ou aquele acontecimento encontrara ou iria encontrar nela o seu lugar: mas que tal acontecimento se houvesse realmente passado, disso ninguém estava certo. Porque, para que um acontecimento tenha lugar, é preciso que ele sucede em determinado ano e não noutro; e é preciso ainda que seja esse acontecimento e não outro parecido. Ora, é precisamente isso que ninguém pode exigir da História, a menos que seja a própria pessoa a escrevê-la, como fazem os jornalistas, ou então que se trate de assuntos profissionais ou financeiros; é importante, claro está, saber-se dentro de quantos anos se terá direito à reforma ou em que momento possui ou se irá gastar uma determinada soma; desse ponto de vista as pr´prias guerras podem tornar-se memoráveis. (…)

Que ideia louca tivera a pequena Clarisse de fazer um Ano do Espírito! Concentrou a sua atenção neste ponto. Por que motivo isso se lhe afigurava tão absurda? Também se podia perguntar por que razão a Acção patriótica de Diotima era absurda.
Resposta número um: porque a História universal não nasce indubitavelmente, senão da mesma forma que as outras histórias. Os autores, incapazes de levantarem nada de novo, copiam-se uns aos outros. Por essa razão todos os homens políticos estudam a história e não a biologia ou qualquer outra ciência desse género. Isto quantos aos autores.
Número dois: no entanto, na sua maior parte, a história nasce sem autores. Ela não nasce do centro, mas sim da periferia, suscitada por causas menores. Não é preciso uma transformação tão grande como se julga para fazer do homem medieval ou do grego clássico o homem civilizado do século XX. O ser humano, com efeito, tanto pode comer outros homens como escrever a Crítica da Razão Pura; com as mesmas convicções e as mesmas qualidades se as circunstâncias o permitem, ele poderá fazer uma e outra coisa e as grandes diferenças exteriores ocultam outras diferenças mínimas no interior.
Digressão número um: Ulrich recordou-se de uma experiência semelhante, dos seus tempos da tropa: o esquadrão avança em filas de dois a dois e exercita-se a transmitir ordens; isto é, a ordem circula de homem, a meia voz; e se a ordem à partida era: «Marcha o cabo à frente da coluna!», no fim acaba por ser transmitido: «Marcha à frente o coronel!» ou qualquer coisa no género. A história universal escreve-se da mesma maneira.
Resposta número três: se portanto transplantássemos uma geração de europeus actuais, de tenra idade, para o Egipto do sexto milénio e ali abandonássemos, a História universal recomeçaria no ano 5000 e repetir-se-ia durante um certo tempo: depois, por motivos desconhecidos de todos, começaria pouco a pouco a desviar-se.
Digressão número dois: o princípio da História universal, lembrava-se agora, não era mais do que o velho princípio político do ramerrão da Cacânia. A Cacânia era um estado superiormente inteligente.
Digressão número três (ou resposta número quatro?): por consequência, a trajectória da História não é a das bolas de bilhar que, uma vez lançadas, percorrem um caminho definido; lembra antes o movimento das nuvens, o trajecto de um homem errando pelas ruas, intimidado aqui por uma sombra, ali por um grupo de basbaques ou por uma estranha combinação de fachadas e que acaba por ir parar a um sítio desconhecido, para o qual não pensava dirigir-se. O caminho da História é, muitas vezes, um equívoco. O presente representa sempre a derradeira casa de uma cidade, aquela que, de certo modo, já não faz parte do aglomerado. Cada nova geração pergunta, admirada: quem sou eu?, quem eram os meus predecessores? Faria melhor em perguntar onde estou eu? E em supor que os seus predecessores não são outros diferentes dela, mas sim que se encontravam noutro lugar; isso seria um grande passo… cogitou.” (…)

MUSIL, Robert, “O Homem Sem Qualidades” (trad. DR. Mário Braga), Vol. II, Lisboa, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s.d., p.p. 55-58.
O que me aconteceu nas minhas férias

(Para Elias Fawcett, 1978-1996)

“Fomos dar as úldimas braçadas: o Blapo bringou gom o seu dubarão insuflável e levava os «bracinhos» insufláveis bosdos. E quando xegou a aldura de nos fazermos à esdrada, o Baplo regusou-se a deixar figar o beixinho. Disse que queria levá-lo bara gasa e insdalá-lo num sago, no seu quardo… o beixinho ia ser o animal dele – em vez de um gão ou um gado!
No garro, eu disse:
- Bem, Baplo, esse garapau há-de dar um rigo ambiendador bara o deu quardo.
- Borquê? – berguntou ele.
- Borquê? Borque não darda gomeça a xeirar a beixe mordo.
- Não me imbordo.
- Borque não?
- Besundo-o gom greme.
- Ai sim? Que esbécie de greme, Baplo?
- Greme bara beixes.
Dodos soldámos uma boa gargalhada ao ouvir isdo. E eu disse:
- E os rados, Baplo? Se abarece um rado de noide?
- Não me imbordo.
- Borque não?
- Borque gausa do greme de beixe.
Mais gargalhadas.
- Borque é que não voldas ao Dead Man`s Landing, Baplo, e vais busgar o garankejo mordo? Era um bom gombanheiro bara o teu beixe.
Mas o meu bai disse que o Baplo já dinha o brado xeio, brimeiro o beixe, debois o rado.
Quando xegámos a gasa dele, o Baplo abresendou a mãe ao seu novo animal.
- Esde é o meu beixe. É bradeado. É bequeno. Esdá mordo. Veio do mar. Mora nesde sago.
Gomo se esdar mordo fosse só mais uma goisa de beixe, mais um dos seus adribudos. A mãe do Baplo figou dudo menos endusiasmada. Mas quando delefonámos na manhã seguinde, bara saber novidades, o Baplo disse que o seu beixe esdava ódimo. (…)

Era evidende que o Baplo ainda não gombreendia o que é a morde.
Mas quem gombreende?
A morde esdeve muito na minha gabeça no cerão; muido na minha gabeça. Bor causa do Iliaz. O Iliaz morreu, na Cidade de Londres. E bor isso a morde andou muido na minha gabeça.
O meu papá disse que no brincíbio do verão o Iliaz foi a gasa. Foi a gasa busgar o gasago, mas o esdava no garro do meu babá e o garro esdava noudro sídio a arranjar a baderia, edc., edc. díbigo do Iliaz, andar bela cidade adrás de um gasago. (…)

Foi a gaminho do aerobordo que surgiu o dema Iliaz: o dema da morde. O meu babá disse:
- Sendes-de diferende quanto a isso? Quando à morde?
Eu disse:
- Agora já gombreendo que as bessoas morrem.
O Jagob indromedeu-se e disse:
- Eu há anos que bercebi isso.
- Não seu idioda. – Disse eu. – Eu bercebia. Mas só agora é que gombreendi.
E o Jagob gongordou. Dambém ele dinha gombreendido.
Andes, eu sabia que os garankejos morrem e que os beixes morrem. Sabia que os velhos, gom dodas as suas dores emazelas, bodiam der razões bara se sentirem grados ande a bersbecdiva do fim. E glaro que, em dodo o mundo, um crante número de bessoas dem desadres, bassa fome, sangra, arde, leva bauladas, murros, fagadas, e gaem, gaem em crante número, em dodo o mundo. Mas a morde nunga dinha esdado dão berdo, onde não devia esdar. O Baplo, O Jagob, o Iliaz. Somos a juvendude. Não somos? (…)

As férias vieram e foram-se. As férias acabaram.
Adeus a tudo.
E foi isto o que aconteceu nas minhas férias.

New Yorker, 1997.”

AMIS, Martin (trad. Telma Costa), “Água Pesada”, Lisboa, Editorial Teorema Lda., 1998, p.p. 225-230.
XIII

El hombre aquel que allí habla en la esquina,
por qué bracea tanto?,
qué importa lo que dice?
Porque no importa es el aspar de brazos,
que si importara…
Y quien soy yo para medir los grados
de importancias ajenas?
Dios le conserve al hombre su entusiasmo!
Mientras así bracea,
de sí mesmo se olvida, y con los años
su agitación, mi calma,
irán a descansar al mismo lago
de aguas muertas estériles…
Bracea ciudadano!...
Es una gran gimnasia, y en la vida
lo que importa es vivir contento y sano.

Septiembre, 1907


VII

Cerré el libro que hablaba
de esencias, de existencias, de sustancias,
de acidentes y modos,
de causas y de efectos,
de materia y de forma,
de conceptos e ideas,
de nóumenos, fenómenos,
cosas en sí y en otras, opiniones,
hipótesis, teorías…
Cerré el libro y abrióse
a mis ojos el mundo.
Transpuesto había el sol ya la colina;
en el cielo esmaltábanse los álamos
y nacian entre ellos las estrellas;
la luna enjalbegaba el firmamento,
cuyo fulgor difuso
en las aguas del río se bañaba.
Y mirando a la luna, a la colina,
las estrellas, los álamos,
el río y el fulgor del firmamento
sentí la gran mentira
de esencias, de existencias, de sustancias,
de acidentes y modos,
de causa y de efectos,
de materia y de forma,
de conceptos e ideas,
de nóumenos, fenómenos,
cosas en sí y en otras, opiniones,
hipótesis, teorías;
esto es: palabras.
Sobre el libro cerrado
que yacia en la yerba
por la luna su pasta iluminada,
mas su interior a oscuras,
descansaba una rana
que iba rondando su nocturna ronda.
Oh, Kant, cuánto te admiro!

Abril o mayo, 1908.

UNAMUNO, Miguel de, “Rimas de Dentro”, Barcelona, Mondadori, 2000, p.p. 57, 58 e 69.
“É muito fundo o poço do passado. Não seria melhor dizermos que é um poço sem fundo?
Sim, um poço sem fundo, se o passado a que nos referimos (e talvez só neste caso) é o da espécie humana, a enigmática essência de que fazem parte as nossas existências, naturalmente insatisfeitas e sobrenaturalmente desditosas. O mistério dessa enigmática essência abrange sem dúvida, o nosso próprio mistério – é o alfa e o ómega de todos os nossos problemas – ligado estreitamente a tudo o que dizemos, dando uma significação a todos os nossos esforços. Quanto mais fundo sondamos, quanto mais longe buscamos o mundo inferior do passdo, mais as remotas origens da humanidade, a sua história e a sua cultura se nos revelam imprescutáveis. Quanto mais longe nos aventuramos nas sondagens, mais distante nos parece o fundo do poço e, à medida que vamos descobrindo novos pontos de apoio e atingindo aparentes metas, mais longe temos de levar a nossa sonda, que se estira e aprofunda cada vez mais, como se tudo quanto encontramos de investigável estivesse preparado para zombar das nossas laboriosas pesquisas, tal como um navegador que segue ao longo da costa e não pode prever o termo da viagem. Após cada descoberta, ele avista inesperadamente, por trás de um promontório, outro promontório, e assim se vê forçado a cobrir novas distâncias.
Há portanto origens provisórias constituídas praticamente, efectivamente, pelos primórdios da tradição especial mantida por determinada comunidade, por um povo, ou uma simples crença de família, e a memória, embora certa de que as profundezas não estão suficientemente sondadas, fia-se nessas origens.
O jovem José, por exemplo, filho de Jacob e da formosa Raquel que tão cedo largou para o Oeste, viveu quando em Babel reinava Carigalzu, o Cassita, senhor das Quatro Regiões, rei da Suméria e da Acádia, altamente suave ao coração de Bel-Marduk, soberano severo e pomposo, cuja barba caía em canudos tão regularmente alinhados que lembravam uma legião de escudeiros em parada.
José viveu quando em Tebas, terra a que ele dava o nome de «Mizraim» e também de «Kemt, o Negro», Sua Santidade o bom Deus, cognominado «Amun está satisfeito», terceiro do mesmo nome, filho querido do próprio Sol, brilhava no horizonte do seu palácio, ofuscando os olhos maravilhados de seus vassalos nascidos no pó. Viveu na época em que Assur crescia em poderio, graças aos seus deuses e à grande estrada rente ao mar, que se estendia desde Gaza até aos desfiladeiros das montanhas de cedros, por onde as régias caravanas iam e vinham, da corte do País dos Rios à do Faraó, carregadas de lápis-lazúli e barras de ouro. (…)

Em conclusão, José (e pela quinta ou sexta vez repito o nome dele com prazer, porque há mistério nos nomes e estou em crer que o de José outorga poderes para evocar essa personalidade tão viva e tão falada noutras eras ainda que depois esmaecida pela voragem do tempo), José, por seu lado, considerava uma certa cidade da Babilónia Meridional chamada Uru, à qual na sua língua o nome Ur Kasdim, a Ur dos Caldeus, como o princípio de todas as coisas, isto é, de todas as coisas que lhe diziam respeito.”

MANN, Thomas (trad. Elisa Lopes Ribeiro), “José e Seus Irmãos”, I Vol., Lisboa, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s.d. p.p. 13-15.

Thomas Mann

“Na maioria dos casos, a condição primordial da felicidade não consiste, decerto, em resolver as contradições, mas sim em fazê-las desaparecer, da mesma forma que se fecham os espaços nas longas avenidas. Assim como as relações visíveis se deslocam perante os nossos olhos, de maneira a formar-se uma imagem aparente em que as coisas mais próximas, iminentes, parecem grandes, mas em que, mais longe, até as coisas enormes se afiguram pequenas e o todo, enfim, se arredonda e aperfeiçoa completamente, assim também as relações invisíveis se deslocam mercê da inteligência e do sentimento, de modo a formarem inconscientemente qualquer coisa no interior da qual nos sentimos à vontade. É precisamente essa operação, pensou Ulrich, «que não consigo realizar como deve ser.»
Ficou um instante parado, numa grande poça de luz que lhe cortava o caminho. Talvez fosse esse clarão aos seus pés, talvez fossem também as árvores, nuas como vassouras, aos lados, que lhe avocaram, de súbito, uma rua de aldeia e veio acordar nele aquela monotonia da alma, hesitante entre a plenitude e a futilidade particular ao campo, que, desde a sua primeira aventura juvenil o incitara por mais de uma vez a repetir a tentativa. «tudo se torna tão simples», cogitou. «Os sentimentos adormecem, os pensamentos destacam-se uns dos outros como as nuvens após a tempestade e, de repente, a alma transforma-se num lindo céu límpido e azul! Mas se uma vaca surge de repente à beira da estrada, em face deste céu – o acontecimento é tão vivo que nada tem do outro mundo! Porém se uma nuvem peregrina fizer o mesmo sobre aquela zona, a erva escurece, um momento depois brilha de novo, nada se passou de extraordinário, e foi, no entanto, como que uma travessia de uma margem do oceano para a outra! Um velho perde o seu último dente: essa pequena ocorrência faz, na vida de todos os seus vizinhos, um corte, ao qual podem ligar as suas recordações! Os pássaros cantam todas as noites da mesma maneira, por cima da aldeia, quando vem o silêncio que acompanha o pôr do Sol: de cada vez é um acontecimento novo, como se o mundo não contasse mais do que sete dias de existência! No campo, os deuses descem ainda até aos homens, ali ainda somos alguém, ainda vivemos alguma coisa! Na cidade, onde surgem mais de mil acontecimentos nem sequer nos encontramos em estado de os relacionar connosco: assim começa a progressiva abstracção da vida, em que tanto se fala…»
Enquanto pensava isto sabia que esta evolução confere ao poder do homem uma extensão mil vezes maior; mesmo que a dilua dez vezes nos pormenores, ela cresce cem vezes no seu conjunto. Portanto ele não encarava a sério qualquer espécie de regresso. Veio-lhe de repente à ideia (tratava-se de um desses pensamentos à primeira vista deslocados e abstractos, que assumem muitas vezes na vida um significado imediato) que a lei dessa vida a que aspiramos, sobretudo quando nos vemos sobrecarregados de tarefas e sonhamos com a simplicidade, não era mais do que a lei da narração clássica! Dessa ordem simples que permite dizermos: «Depois disto passado, aconteceu isto!» Éa sucessão pura e simples, a reprodução da diversidade opressora da vida sob uma forma unidimensional, como diria um matemático, que nos tranquiliza; o alinhamento, ao longo de um fio, de tudo quanto se passou no espaço e no tempo, esse famoso «fio da narrativa», precisamente, com o qual acaba por se confundir o fio da vida. Feliz daquele que consegue dizer: «Quando», «Depois de», «Antes de»! Pode também acontecer-lhe alguma fatalidade, ver-se envolvido nos piores sofrimentos: desde que seja capaz de reproduzir os acontecimentos na sucessão do seu seguimento temporal, ele sente-o tão bem como sente o sol a brilhar sobre o seu ventre. Foi disto que o romance soube tirar um hábil partido; tanto faz que o viajante siga a cavalo através dos campos sob chuva a potes, como faça estalar neve debaixo das botas, o leitor está sempre confortável. Isto seria difícil de compreender se essa eterna habilidade de prestidigitação da arte narrativa, à qual até as amas recorrem para acalmar as criancinhas, se essa «perspectiva da inteligência», esse «encurtamento das distãncias» não fizesse já parte integrante da vida. (…)

Quando recomeçou a andar, enriquecido com esta descoberta recordou-se de que Goethe escrevera num ensaio sobre arte: «O homem não é um ser que ensina, mas sim um ser que age, vive e é eficiente!» Encolheu respeitosamente os ombros. «Se acaso o homem consegue hoje esquecer o pano de fundo brumoso da doutrina, da qual dependem todas as suas actividades, fá-lo, quando muito, como o comediante que ao tomar consciência do cenário e do esgar que faz, imagina estar a agir na realidade!» pensou. “

MUSIL, Robert (trad. DR. Mário Brga), “O Homem sem Qualidades”, II Vol., Lisboa, Edição «Livros do Brasil» Lisboa, s.d., p.p. 411-413.

Guantanamo

DIÁLOGOS


Kundera a Philip Roth
“Aprendí a valorar el humor durante el terror estalinista”

El 1 de mayo se celebra en todo el mundo el Día del Trabajo, refugio, según Oscar Wilde, “de los que no tienen nada que hacer”, fuente de salvación para quienes creen que “aleja el aburrimiento, el vicio y la necesidad”, y maldición bíblica para los demás, incluso cuando el trabajo es la literatura. Javier Tomeo analiza la escritura como profesión en la Primera Palabra. Además, El Cultural ofrece unas conversaciones de Philip Roth y Milan Kundera sobre literatura, sexo y política que forman parte de un libro de próxima aparición, titulado, precisamente, El oficio: un escritor, sus colegas y sus obras (Seix Barral). También escritores como Landero, José María Merino, Mendicutti o Ruiz Zafón desvelan los secretos de su labor.


Durante nuestras conversaciones, Kundera se expresó alguna que otra vez en francés, pero casi siempre en checo, mientras Vera, su mujer, nos hacía de intérprete a ambos.

Roth: ¿Cree que llegará pronto la destrucción del mundo?
Kundera: Depende de lo que entienda usted por pronto.

Roth: Mañana o pasado.
Kundera: La idea de que el mundo se precipita hacia su perdición es muy antigua.

Roth: Entonces, no hay de qué preocuparse.
Kundera: Al contrario. Si este miedo lleva desde hace tantísimo tiempo en la mente de los hombres, por algo será.

Roth: Durante la Primavera de Praga, su novela La broma y sus relatos del Libro de los amores ridículos tuvieron tiradas de 150.000 ejemplares. Tras la invasión rusa, fue apartado de su cátedra de la academia cinematográfica y sus libros desaparecieron de las biblioteca públicas. Años más tarde, su mujer y usted echaron unos cuantos libros y algo de ropa al maletero del coche y no pararon hasta llegar a Francia, donde se ha convertido en uno de los autores más leídos. ¿Cómo se siente ahora, en su condición de emigrante?
Kundera: Para un escritor, la experiencia de vivir en varios países es una bendición. No se puede entender el mundo sin verlo desde varios lados. El libro de la risa y el olvido, que nació en Francia, se desarrolla en un espacio geográfico especial: los hechos que ocurren en Praga están vistos con ojos de europeo occidental, y, en cambio, lo que ocurre en Francia se ve con ojos de Praga. [...]

Roth: ¿Vive en Francia como un extranjero o se siente culturalmente en casa?
Kundera: Soy muy amante de la cultura francesa, y le debo muchísimo. Sobre todo en lo que se refiere a la literatura antigua. Rabelais es el escritor que más quiero entre todos los escritores. Y Diderot. Jacques el fatalista me gusta tanto como Lawrence Sterne. Son los mayores experimentos en forma de novela que se han hecho nunca. Y son experimentos, por así decirlo, divertidos, gozosos, llenos de alegría; algo que hoy en día ya no existe en la literatura francesa y sin lo cual todo pierde significación, en el campo del arte. Cuando oigo esas eruditas exposiciones donde se explica que la novela ha agotado sus posibilidades, me doy cuenta de que pienso exactamente lo contrario: en el transcurso de la historia, la novela ha perdido y dejado de explotar muchas de sus posibilidades. [...]

Roth: El libro de la risa... no se da el nombre de novela; no obstante, usted declara en el texto: “Este libro es una novela en forma de variaciones”. ¿Es o no es una novela?
Kundera: En lo que atañe a mi juicio estético personal, es realmente una novela; pero no pretendo imponerle esa opinión a nadie. Hay una enorme libertad latente en la forma novelística. Es un error pensar que la esencia de la novela está en una determinada estructura típica.

Roth: No obstante, algo habrá que convierta un libro en una novela y que limite tanta libertad.
Kundera: Una novela es una larga pieza de prosa sintética basada en un argumento con personajes inventados. Esos son los únicos límites. Cuando digo sintética, me refiero al deseo del novelista de asir su tema desde todas las perspectivas y del modo más completo posible. El ensayo irónico, la narrativa novelística, el fragmento autobiográfico, el hecho histórico, la fantasía libre... No hay nada que la capacidad de síntesis de la novela no logre combinar en un todo unitario, como las voces de la música polifónica. La unidad de un libro no tiene por qué derivarse del argumento, porque también puede suministrarla el tema. En mi último libro hay dos temas: la risa y el olvido.

Roth: La risa siempre ha sido algo cercano a usted. Sus libros provocan la risa por medio del humor o la ironía. Cuando sus personajes han de enfrentarse al dolor, es porque tropiezan con un mundo que ha perdido el sentido del humor.
Kundera: Aprendí a valorar el humor durante la época del terror estalinista. Tenía yo veinte años. Para identificar a alguien que no fuera estalinista, al que no hubiera que tener miedo, bastaba con fijarse en su sonrisa. El sentido del humor era una señal de identificación muy fiable. Desde aquella época, me aterroriza la idea de que el mundo está perdiendo su sentido del humor.

Roth: En El libro de la risa y el olvido, sin embargo, hay otras cosas en juego. En una pequeña parábola, compara la risa de los ángeles con la risa del diablo. El diablo ríe porque el mundo de Dios no tiene sentido para él; los ángeles ríen de alegría porque en el mundo de Dios todo tiene su sentido.
Kundera: Sí, el hombre utiliza la misma manifestación fisiológica –la risa– para expresar dos actitudes metafísicas distintas. Si de pronto a alguien se le cae el sombrero encima del ataúd, en una tumba recién abierta, el entierro pierde todo su sentido y nace la risa. Dos enamorados corren por un prado, cogidos de la mano, riéndose. Su risa no tiene nada que ver con ningún chiste: es la risa seria de los ángeles cuando manifiestan su alegría de existir. Ambas modalidades de risa forman parte de los placeres de la vida, pero, llevados al extremo, también indican un apocalipsis dual: la risa entusiasta de los fanáticos-ángel, tan convencidos de su importancia en el mundo, que están dispuestos a colgar del cuello a todo el que no comparta su alegría. Y la otra risa, procedente del lado opuesto, la que proclama que nada tiene ya sentido. La existencia transcurre entre dos abismos: a un lado, el fanatismo; al otro, el escepticismo absoluto.

Roth: Lo que ahora llama usted risa de los ángeles es una nueva manera de denominar la “actitud lírica ante la vida” de sus novelas anteriores. En una de sus novelas, dice que la era del terror estalinista fue el reino del verdugo y del poeta.
Kundera: El totalitarismo no es sólo el infierno, sino también el sueño del paraíso: el antiquísimo sueño de un mundo en que todos vivimos en armonía, unidos en una sola voluntad y una sola fe comunes, sin guardarnos ningún secreto unos a otros. También Breton soñaba con este paraíso cuando se refería a la casa de cristal en que ansiaba vivir. Si el totalitarismo no hubiera explotado estos arquetipos, que todos llevamos en lo más profundo y que están profundamente arraigados en todas las religiones, nunca habría atraído a tanta gente, sobre todo durante las fases iniciales de su existencia. No obstante, el sueño del paraíso, tan pronto como se pone en marcha hacia su realización, empieza a tropezar con personas que le estorban, y los regidores del paraíso no tienen más remedio que edificar un pequeño gulag al costado del Edén. Con el transcurso del tiempo, el gulag va creciendo en tamaño y perfección, mientras el paraíso se hace cada vez más pobre y pequeño.

Roth: En su libro, Paul Éluard se eleva hacia los cielos con el paraíso y el gulag, cantando. ¿Es auténtica esta anécdota?
Kundera: Después de la guerra, Éluard abandonó las filas del surrealismo para convertirse en el mayor exponente de lo que podríamos llamar “poesía del totalitarismo”. Cantó la fraternidad, la paz, la justicia, el mañana mejor, la camaradería, en contra del aislamiento, a favor de la alegría y en contra del pesimismo, a favor de la inocencia y en contra del cinismo. Cuando, en 1950, los dirigentes del paraíso sentenciaron a un amigo suyo, el surrealista Závis Kalandra, a morir en la horca, Éluard no se permitió ningún sentimiento de amistad: se puso al servicio de los ideales suprapersonales, declarando en público su conformidad con la ejecución de su camarada. El verdugo matando, el poeta cantando. Y no sólo el poeta. Todo el período del terror estalinista fue un delirio lírico colectivo. Es algo que ya está completamente olvidado, pero resulta de crucial importancia para entender el caso. A la gente le encanta decir: qué bonita es la revolución; lo único malo de ella es el terror que engendra. Pero no es verdad. El mal está presente ya en lo hermoso, el infierno ya está contenido en el sueño del paraíso; y si queremos comprender la esencia del infierno, he-
mos de analizar también la esencia del paraíso en que tiene origen. Es extremadamente fácil condenar los gulags, pero rechazar la poesía totalitaria que conduce al gulag, pasando por el paraíso, sigue siendo tan difícil como siempre. Hoy, no hay en el mundo nadie que no rechace de modo inequívoco la noción del gulag, pero todavía hay mucha gente que se deja hipnotizar por la poesía totalitaria y se pone en marcha hacia nuevos gulags al son de la misma canción lírica que entonaba Éluard. [...]

Roth: Lo característico de su prosa es la constante confrontación entre lo privado y lo público. Pero no en el sentido de que el telón de fondo de los relatos privados sea lo público, ni de que los hechos políticos invadan las vidas privadas. Es, más bien, que usted continuamente nos está haciendo ver que los hechos políticos están gobernados por las mismas leyes que los privados, logrando que su prosa se convierta en una especie de psicoanálisis de la política.
Kundera: La metafísica del hombre es la misma en la esfera privada que en la pública. Tomemos, por ejemplo, el otro tema del libro, el olvido. Éste es el gran problema privado del hombre: la muerte en cuanto pérdida del yo. Pero ¿qué es el yo? es la suma de todo lo que recordamos. Así, lo que nos aterroriza de la muerte no es la pérdida del futuro, sino la pérdida del pasado. El olvido es una forma de muerte que siempre está presente en la vida. Ése es el problema de mi protagonista femenina, que trata desesperadamente de preservar la evanescente memoria de su amado marido difunto. Pero el olvido es también el gran problema de la política. Cuando una gran potencia quiere despojar a un pequeño país de su conciencia nacional, acude al método del olvido organizado. La política desenmascara la metafísica de la vida privada, la vida privada desenmascara la metafísica de la política.

Roth: Casi todas sus novelas hallan su desenlace en grandes escenas de coito. Incluso la parte que lleva el inocente título de “Madre” no es sino una prolongada escena de sexo a tres bandas, con prólogo y epílogo. ¿Qué significa el sexo para usted, como novelista?
Kundera: Hoy que la sexualidad ha dejado de ser tabú, la mera descripción, la mera confesión sexual, resultan notablemente aburridas. Lawrence se nos ha quedado anticuado, e incluso Miller, con su lírica de la obscenidad. Y, sin embargo, ciertos pasajes eróticos de Bataille sí me han dejado una impresión duradera, quizá porque no son líricos sino filosóficos. Tiene razón, todo lo mío termina en grandes escenas eróticas. Creo que toda escena de amor físico genera una luz extremadamente fuerte que pone de manifiesto la esencia de los personajes.

Roth: De hecho, la última parte sólo se ocupa de la sexualidad. ¿Por qué esta parte cierra el libro?
Kundera: Metafóricamente hablando, Tamina muere entre las risas de los ángeles. Por otra parte, a lo largo de toda la última sección del libro resuena la risa contraria, la que se oye cuando las cosas pierden todo su sentido. La imaginación traza una línea divisoria más allá de la cual las cosas empiezan a parecernos tan ridículas como carentes de sentido. Una persona se pregunta: ¿Tiene algún sentido levantarme por las mañanas, ir al trabajo, pertenecer a un país, sólo porque así nací? El hombre vive muy cerca de esa frontera y no es nada difícil que de pronto se encuentre al otro lado. Es una frontera que está en todas partes, en todas las áreas de la existencia humana, e incluso en la más profunda y biológica de todas: la sexualidad. Y porque es la región más profunda de la vida, la pregunta que se plantea a la sexualidad es la más profunda de todas. Tal es la razón de que mi libro de las variaciones no pueda terminar en ninguna otra variación.

Roth: ¿Es éste el punto más lejano a que ha llegado usted en su pesimismo?
Kundera: Tengo siempre mucho cuidado con las palabras pesimismo y optimismo. Una novela no afirma nada: una novela busca y plantea interrogantes. No sé si mi nación perecerá y tampoco sé cuál de mis personajes tiene razón. Invento historias, las pongo frente a frente, y por este procedimiento hago las preguntas. La estupidez de la gente procede de tener respuesta para todo. La sabiduría de la novela procede de tener una pregunta para todo. Cuando don Quijote sale al mundo, éste se convierte en un misterio puesto ante sus ojos. Tal es el legado de la primera novela europea a toda la historia de la novela que vino después. El novelista enseña al lector a aprehender el mundo como pregunta. Hay sabiduría y tolerancia en esta actitud. En un mundo edificado sobre verdades sacrosantas, la novela está muerta, El mundo totalitario, básese en Marx, en el islam o en cualquier otro fundamento, es un mundo de respuestas, en vez de preguntas. En él no tiene cabida la novela. En todo caso, me parece a mí que hoy en día , en el mundo entero, la gente prefiere juzgar a comprender, contestar a preguntar. Así, la voz de la novela apenas puede oírse en el estrépito necio de las certezas humanas.

in www.elmundo.es
(...) «Quanto a isso de que o homem tem culpa por todos os homens e por tudo, para além dos seus pecados próprios, o seu raciocínio é muito correcto e é admirável como o senhor conseguiu abranger esta ideia em toda a sua plenitude. Também é uma verdade das verdades que, quando as pessoas compreendem finalmente esta ideia, chegará para elas o reino os céus, não em sonho mas na realidade.» «Mas quando se realizará isso, se é que alguma vez se realiza? Não será apenas um sonho?», exclamei com amargura. E ele: «Já não tem fé nisso, está pregá-lo e, ao mesmo tempo, não tem fé. Saiba, então, que a realização deste sonho está iminente, acredite, embora não seja para já, porque para cada coisa existe a sua lei. É um fenómeno espiritual, psicológico. Para transformar o mundo é preciso que as pessoas enveredem, psicologicamente, por outro caminho. Antes de nos tornarmos irmãos de cada qual não haverá fraternidade. Nunca as pessoas concordarão, com base em qualquer vantagem ou em qualquer ciência, partilhar com justiça a sua propriedade e os seus direitos. Cada qual achará que recebeu pouco, toda a gente se queixará, invejará os outros e exterminá-los-á. Pergunta-me quando se realizará esse sonho. Realizar-se-á, sim, mas primeiro deve acabar o período da solidão humana.» «Que solidão?», pergunto-lhe eu. «A solidão que agora reina por todo o lado, especialmente no nosso século, e ainda vem longe o fim dela. Porque cada um, hoje em dia, deseja isolar cada vez mais a sua pessoa, quer experimentar em si mesmo a plenitude da vida e, no entanto, o resultado é que todos os seus esforços, em vez da plenitude da vida, acabam num suicídio absoluto, porque em vez da plenitude da definição da sua personalidade entra num isolamento total. Porque todos, no nosso século, se separam, cada qual se isolando na sua toca, cada qual se afastando do outro, escondendo-se e escondendo o que possui, acabando por rejeitar os outros e ser rejeitado pelos outros. Acumula a sua riqueza em solidão e pensa: que forte eu sou, que rico... e mal sabe, o louco, que quanto mais acumula mais mergulha na impotência suicida. Porque está habituado a contar apenas consigo e, como unidade, se separou do comum, habituou a sua alma a não acreditar na ajuda dos outros, nas pessoas e na humanidade e apenas receia que o seu dinheiro e os seus direitos adquiridos se percam. Hoje, por todo o lado, a mente humana irónica começa a perder consciência de que o verdadeiro sustento do indivíduo não consiste no seu esforço pessoal e solitário, mas num esforço em comunidade humana. É inevitável, porém, que chegue o fim deste terrível isolamento e que se compreenda, de uma vez por todas, como é antinatural esta separação de uns dos outros. Será assim o espírito da época, e as pessoas espantar-se-ão por terem passado o tempo na escuridão, sem verem a luz. Surgirá então nos céus o sinal do filho do homem... Mas, até lá, é necessário guardar bem a bandeira e, de vez em quando, nem que seja como acto isolado, um homem sozinho deve dar o exemplo e tirar a alma do isolamento para a elevar até à façanha da convivência em amor fraterno, nem que seja na qualidade de maluquinho religioso. É necessário isso para que não morra a grande ideia...» (...)

in Os Irmãos Karamázov, Fiódor Dostoiévski.
Notícias da guerra

Luís Fernando Veríssimo

(…) Contam que num determinado vale do Azerbeijão viviam duas etnias: os curtos e os surdos. Os curtos era em menor número mas mais inteligentes do que os surdos, que de tanto se abaixarem para ouvir o que os curtos estavam dizendo acabaram criando os tortos, que culpam os surdos pela sua condição e vivem em guerra com eles apesar de serem da mesma etnia, apenas com desvio na coluna, o que os torna da mesma altura dos curtos, aos quais se aliaram pata controlar todo o petróleo e as concessões Prada e Vuitton na região. Os surdos, na sua luta contra os tortos e os curtos, aliaram-se aos mofas, uma tribo de caçadores das montanhas, apesar de estes gostarem de mover os lábios e fingir que estão falando, para os surdos gritarem «Ahn?» e revelarem a sua posição na trincheira ao inimigo, o que os diverte muito. Os americanos tentaram reunir todas essas etnias numa só frente contra o Iraque, que teria o nome de «Desert Friends», com uma vaga promessa de visita da Jennifer Aniston à região, dirigida pelo general Mack Truck, também conhecido no Pentágono como «Mack sem Tacto» e cujo primeiro acto no comando da operação foi distribuir latinhas de laca usada pelo Presidente americano durante suas apresentações na TV aos líderes das etnias com a bem-humorada mensagem de Bush «Boa sorte com o seu cabelo» escrita, por descuido, em hebraico. Não ajudou o facto de o general Truck, na chegada, desorientado por uma tempestade de areia, gritar para os curtos ouvirem e inclinar-se para falar com a barriga dos surdos, apontando a bunda para os tortos e os mofas, nem a sua prelecção a seguir, que terminou com uma debandada geral e indignada dos pretendidos aliados, para grande surpresa de Truck. De volta a Washington, Truck foi avisado que a única coisa que unia as quatro etnias era o seu ódio aos turcos, que volta e meia invadiam o vale para estuprar as suas cabras e roubar suas mulheres, e que não pegara bem seu anúncio de que, para maior eficiência da operação, ela seria comandada por turcos. «Por isso que eu odeio a política», teria dito Truck, lamentando que o Mundo não fosse dividido em apenas duas etnias, nós e eles, o que o tornaria bem mais manejável, antes de voltar para a região, desta vez levando dinheiro. (…)

in Actual, Expresso de 5 de Abril de 2003.
(…) Estás a ver, Alióchetchka – riu-se nervosamente Grúchenka -, gabei-me perante o Rakitka de ter oferecido uma cebola, mas a ti não me gabo, conto-te a coisa com outro propósito. É apenas uma fábula, mas é uma boa fábula, ouvi-a ainda em criança da boca da minha Matriona, que agora me serve de cozinheira.É assim: «Era uma vez uma campónia, muito má, muito mazinha, que finalmente morreu. E não deixou, depois de morta, qualquer virtude. Pegaram nela os diabos e atiraram-na para o lago de fogo. Vai daí, põe-se o anjo da guarda dela a pensar: de que virtude dela me posso lembrar para a dizer a Deus? Então lembrou-se e disse a Deus: esta mulher, na horta arrancou uma cebola da terra e deu-a a uma pedinte. Responde-lhe Deus então: pega nesta cebola e estende-lha, que se agarre a ela, e tu puxa-a, e se conseguires puxá-la para fora do lago, então que vá para o paraíso; mas se a cebola se espedaçar que a mulher fique onde está. O anjo correu, estendeu-lhe a cebola: toma, agarra-te a ela, diz-lhe, vou puxar-te. E começou a puxá-la com cuidado e já quase a tirara toda para fora quando os outros pecadores do lago, ao verem-na ser puxada, começaram todos a agarrar-se a ela para que fossem também puxados para fora. E como a campónia era mazinha, começou aos coices aos outros: É a mim que estão a puxar, a cebola é minha, não é vossa. Mal o disse, a cebola espedaçou-se. A campónia caiu no lago e ainda hoje lá está a arder. O anjo deitou a chorar e foi-se embora.» (…)

Fiódor Dostoiévski in Os Irmãos Karamázov.
TEORIA DAS CORES

HERBERTO HELDER

Era uma vez um pintor que tinha um aquário com um peixe vermelho. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor vermelha até que principiou a tornar-se negro a partir de dentro, um nó preto atrás da cor encarnada. O nó desenvolvia-se alastrando e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário o pintor assistia surpreendido ao aparecimento do novo peixe.
O problema do artista era que, obrigado a interromper o quadro onde estava a chegar o vermelho do peixe, não sabia que fazer da cor preta que ele agora lhe ensinava. Os elementos do problema constituíam-se na observação dos factos e punham-se por esta ordem: peixe vermelho, vermelho, pintor – sendo o vermelho o nexo entre o peixe e o quadro através do pintor. O preto formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar sobre as razões da mudança exactamente quando assentava na sua fidelidade, o pintor supôs que o peixe, efectuando um número de mágica, mostrava que existia apenas uma lei abrangendo tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Era a lei da metamorfose.
Compreendida esta espécie de fidelidade, o artista pintou um peixe amarelo.

in OS PASSOS EM VOLTA, Assírio & Alvim.
ESTILO

HERBERTO HELDER

- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida…compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?
Uma vez fui a um médico.
- Doutor, estou louco – disse. – Devo estar louco.
- Tem loucos na família? – perguntou o médico. – Alcoólicos, sifilíticos?
- Sim senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas, homossexuais. Estarei louco?
O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos.
- Não preciso de remédios – disse eu. – Sei histórias tenebrosas acerca da vida. De que me servem barbitúricos?
A verdade é que eu ainda não havia encontrado o estilo. Mas ouça, meu amigo: conheço por exemplo a história de um homem velho. Conheço também a de um homem novo. A do velho é melhor, pois era muito velho, e que poderia ele esperar? Mas veja, preste bem atenção. Esse homem velhíssimo não se resignaria nunca a prescindir do amor. Amava as flores. No meio da sua solidão tinha vasos de orquídeas.
O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo. Seria bom colocar grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na televisão e nos cinemas. Procure o seu estilo, senão quer dar em pantanas. Arranjei o meu estilo estudando matemática e ouvindo um pouco de música. – João Sebastião Bach. Conhece o Concerto Brandeburguês n.º 5? Conhece com certeza essa coisa tão simples, tão harmoniosa e definitiva que é um sistema de três equações a três incógnitas. Primário, rudimentar. Resolvi milhares de equações. Depois ouvia Bach. Consegui um estilo. Aplico-o à noite, quando acordo às quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos, e toda a imensa melancolia do mundo parece subir do sangue com a sua voz obscura… Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este. Às vezes uso o processo de esvaziar as palavras. Sabe como é? Pego numa palavra fundamental. Palavras fundamentais, curioso… Pego numa palavra fundamental: Amor, Doença, Medo, Morte, Metamorfose. Digo-o baixo vinte vezes. Já nada significa. É um modo de alcançar o estilo. Veja agora esta artimanha:

As crianças enlouquecem em coisas de poesia.
Escutai um instante como ficam presas
no alto desse grito, como a eternidade as acolhe
enquanto gritam e gritam.
(…)

- E nada mais somos do que o Poema onde as
crianças
se distanciam loucamente.

Trata-se do excerto de uma poesia. Gosta de poesia? Sabe o que é poesia? Tem medo da poesia? Tem o demoníaco júbilo da poesia?
Pois veja. É também um estilo. O poeta não morre da morte da poesia. É o estilo.
Está a ouvir como essas enormes crianças gritam e gritam, entrando na eternidade? Note: somos o Poema onde elas se distanciam. Como? Loucamente. Quem suportaria esses gritos magníficos? Mas o poeta faz o estilo.
Perdão, seja um pouco mais honesto. Seja ao menos mais inteligente. Vê-se bem que não estou louco. Eu, não. As crianças é que enlouquecem, e isso porque lhes falta o estilo.
Sabe de que lhe estive a falar? Da vida? Da maneira de se desembaraçar dela? Bem, o senhor não é estúpido mas também não é muito inteligente. Conheço. Conheço o género. Talvez eu já tivesse sido assim. Pratica as artes com parcimónia: não a poesia, mas as poesias. Cultiva-se, evidentemente. Se calhar está demasiado na posse de um estilo. Mas, escuta cá, a loucura, a tenebrosa e maravilhosa loucura… Enfim, não seria isso mais nobre, digamos, mais conforme ao grande segredo da nossa humanidade?
Talvez o senhor seja mais inteligente do que eu.

in OS PASSOS EM VOLTA, Assírio & Alvim.
(…) Hans Castorp entregava-se a profundas investigações; lia, enquanto a lua seguia a sua órbita por cima do vale alpino, cintilante de cristais; lia coisas sobre a matéria organizada, sobre as qualidades do protoplasma, da substância sensível que, entre a composição e a decomposição, se mantém num estranho estado intermédio, e sobre a evolução das suas formas desenvolvidas de tipos originais mas sempre presentes, lia, com insistente interesse, o que os livros diziam sobre a vida e o seu mistério sagrado e impuro.
Que era a vida? Não se sabia. Ela tinha consciência de si mesma, indubitàvelmente, desde que era vida, mas ignorava o que era. Era incontestável que a consciência, como sensibilidade despertava até certo ponto ainda nas fases inferiores, menos adiantadas da vida; não era possível fixar em determinado ponto da sua vida colectiva ou individual a primeira aparição de fenómenos conscientes, e, por exemplo, fazer depender a consciência, da existência de um sistema nervoso. As formas animais inferiores não dispunham de sistema nervoso, e muito menos de um cérebro e no entanto ninguém se atrevia a negar-lhes que possuíssem reflexos. Além disso, podia-se parar a vida, a própria vida, e não sòmente os órgãos particulares da sensibilidade que a constituíam, não sòmente os nervos. Podia-se suspender temporàriamente a sensibilidade de toda a matéria dotada de vida, no reino vegetal tanto como no reino animal; era possível narcotizar ovos e espermatozóides por meio de clorofórmio, de cloral hidratado ou de morfina. A consciência de si era, pois, muito simplesmente uma função da matéria organizada, e num grau mais elevado esta função dirigia-se contra o seu próprio portador, convertia-se na tendência para pesquisar e explicar o fenómeno; tornava-se uma tendência que a tinha suscitado uma tendência cheia de promessas e de desespero da vida para se conhecer a si própria, auto-investigação da natureza, investigação vã em última análise, visto a natureza não se poder resolver em conhecimento, dado que a vida não pode surpreender a última palavra de si mesma.
Que era então a vida? Ninguém sabia. Ninguém conhecia o ponto da natureza donde ela brotava e no qual se acendia. A partir desse ponto, nada havia que fosse espontâneo; mas a própria vida surgia bruscamente. A única coisa que se podia, talvez, afirmar a seu respeito, era que a sua estrutura devia ser de tal modo evoluída que não tinha, nem de longe, igual no mundo inanimado. Entre o pseudópodo da amiba e o animal vertebrado, a distância era insignificante, desprezível, em comparação com aquela que existe entre o fenómeno mais simples da vida e esta natureza que nem sequer merecia ser qualificada de morta, uma vez que era inorgânica. Pois que a morte não era senão a negação lógica da vida; mas entre a vida e a natureza inanimada abria-se um abismo que a ciência em vão tentava atravessar. Alguns esforçavam-se por o circunscrever por meio de teorias que ele sorvia sem nada perder da sua profundidade nem da sua extensão. Para estabelecerem um laço, haviam-se perdido na hipótese contraditória de uma matéria viva incompleta, de organismos não organizados, que se condenavam por si mesmos na solução de albumina, como o cristal na água-mãe, embora, na realidade, a diferenciação orgânica constituísse a condição primeira e a manifestação de toda a vida, e posto que não se conhecesse nenhum ser vivo que não devesse a sua existência a uma concepção. O triunfo com que se saudara o protoplasma primevo, pescado nas profundezas do mar, transformara-se em confusão. Demonstrou-se que haviam sido confundidos depósitos de gesso com protoplasma. Mas os cientistas, para não se deterem à frente do milagre – porque a vida a compor-se dos mesmos elementos e a decompor-se nos mesmos elementos que a natureza inorgânica, sem formas intermédias, seria um milagre – viram-se, contudo, forçados a admitir uma concepção inicial, isto é, que o orgânico nascia do inorgânico o que, aliás, era igualmente um milagre. Destarte continuaram a admitir-se graus intermediários e uma solução de continuidade, a supor a existência de organismos inferiores a todos os que se conheciam, mas que, por sua vez, tivessem como predecessores esboços de vida ainda mais primitivos, protozoários que ninguém veria jamais porque eram de uma pequenez inframicroscópia, e antes de cujo suposto nascimento devia ter-se produzido a síntese das combinações de albumina… (…)

in Montanha Mágica, Thomas Mann.
(…) Que era, então, a vida? Era calor, calor produzido por um fenómeno sem substância própria que conservava a forma; era uma febre da matéria que acompanhava o processo de incessante decomposição e reconstituição de moléculas de albumina de uma estrutura intimamente complicada e infinitamente engenhosa. Era o ser daquilo que na realidade não pode ser, que oscila numa doce e dolorosa suspensão sobre o limite do ser, nesse processo contínuo e febril de decomposição e renovação. Não era matéria nem era espírito. Era qualquer coisa entre os dois, um fenómeno sustentado pela matéria, como o arco-íris sobre a queda de água, e semelhante à chama. Mas, se bem que não dependesse da matéria, era sensual até à volúpia e até ao desgosto o impudor da natureza tornada irritável e sensível com respeito a si própria e à forma impúdica do ser. Era uma veleidade secreta e sensual no frio casto do universo, uma impureza intimamente voluptuosa composta de nutrição e de excreção, um sopro excretor de ácido carbónico e de substâncias nocivas de procedência e natureza desconhecidas. Era a vegetação, a desenvolução, a proliferação de uma coisa túmida, de água, de albumina, de sal e de gorduras a que se chamava carne e se convertia em forma, imagem e beleza, mas que era o princípio da sensualidade e do desejo. Porque essa forma, essa beleza não eram conduzidas pelo espírito, como nas obras da poesia e da música, nem tão pouco por uma substância neutra e absorvida pelo espírito, que encarnasse o espírito de uma maneira inocente, como o são a forma e a beleza das obras plásticas. Era, pelo contrário, conduzida e alaborada pela substância, despertada, de modo desconhecido, para a voluptuosidade, pela substância orgânica, pela própria matéria que vive decompondo-se, pela carne perfumada…
Agasalhado de lã e de peles destinadas a evitarem perda de calor, o jovem Hans Castorp repousava acima do vale cintilante, enquanto, nessa noite glacial, iluminada pelo brilho do astro cintilante lhe aparecia a imagem da vida. Flutuava diante dele, num lugar do espaço, longínquo e todavia próximo dos seus sentidos, esse corpo de uma brancura embaciada, exalando odores e nevoeiros, viscoso e nessa imagem havia, a pele com toda a impureza e imperfeição que lhe eram peculiares, com manchas, papilas, rugas, despigmentações, zonas granulosas ou escamosas, revestida de correntes e dos suaves torvelinhos da lanugem rudimentar. Distante do frio da matéria inanimada repousava na sua esfera vaporosa, descuidada, a cabeça coroada de alguma coisa fresca, córnea, pigmentada, que era um produto da sua pele, as mãos unidas por detrás da nuca, e sob as pálpebras baixas, olhava o espectador, com aqueles olhos que uma dobra da pele da pálpebra fazia aparecer oblíquos, com os lábios entreabertos, um tanto grossos, apoiada numa das pernas, de modo que o osso ilíaco que suportava o peso ressaltava nitidamente da carne, ao passo que o joelho da outra perna, levemente dobrado, roçava o interior da perna de apoio e o pé tocava o solo apenas com a ponta dos dedos. Estava ali de pé, voltava-se sorrindo, certa da sua graça, com os cotovelos luzidios apontando para a frente, na simetria das suas pernas gémeas.
À sombra das axilas, de exalação acre, correspondia, num triângulo místico, a obscuridade do sexo, assim como aos olhos a boca vermelha e epitelial, e às corolas rubras dos seios o umbigo vertical e alongado. Sob a acção de um órgão central e de nervos motores que partiam da coluna vertebral, o ventre e o tórax, a caverna pleuroperitonal, dilatava-se e retraía-se, o hálito esquentado e humedecido pelas mucosas do trato respiratório, escapava-se por entre os lábios, após ter combinado, nos alvéolos dos pulmões, o seu oxigénio com a hemoglobina do sangue, para possibilitar a respiração interna. (…)

in A Montanha Mágica, Thomas Mann.