LITERATURA
"Se o gosto pelos livros aumenta com a inteligência, os perigos, como vimos, diminuem com ela. Um espírito original sabe subordinar a leitura à actividade pessoal. Ela é para ele apenas a mais nobre das distracções, sobretudo a mais enobrecedora, pois, só a leitura e o saber conferem “as boas maneiras” do espírito. O poder da nossa sensibilidade e da nossa inteligência, só o podemos desenvolver dentro de nós próprios, nas profundezas da nossa vida espiritual. Mas é nesse contacto com os outros espíritos que a leitura é, que se faz a educação das “maneiras” do espírito. Os letrados permanecem, apesar de tudo, como as pessoas notáveis da inteligência, e ignorar um determinado livro, uma determinada particularidade da ciência literária, será sempre, mesmo num homem de génio, uma marca de grosseria intelectual. A distinção e a nobreza consistem na ordem do pensamento também, numa espécie de franco-maçonaria de costumes, e numa herança de tradições.
Muito rapidamente, no gosto e no divertimento de ler, a preferência dos grandes escritores vai para os livros dos clássicos. Mesmo aqueles que pareceram aos meus contemporâneos mais “românticos” não liam senão os clássicos. Nas conversas de Victor Hugo, quando ele fala das suas leituras, são os nomes de Molière, de Horácio, de Ovídio, de Regnard, que surgem mais vezes. Alphonse Daudet, o menos livresco dos escritores, cuja obra toda feita de modernidade e de vida parece ter rejeitado qualquer herança clássica, lia, citava, comentava incessantemente Pascal, Montaigne, Diderot, Tácito. Poder-se-ia quase ir ao ponto de dizer, renovando talvez, com esta interpretação aliás perfeitamente parcial, a velha distinção entre clássicos e românticos, que são os públicos (os públicos inteligentes, evidentemente) que são românticos, enquanto os mestres preferidos (mesmo os mestres ditos românicos, os mestres preferidos dos públicos românticos) são clássicos. (Observação que se podia estender a todas as artes. O público vai ouvir a música do Sr. Vincent d`Indy, o Sr. Vincente d`Indy relê a de Monsigny. O público vai às esposições do Sr. Vuillard e do Sr. Maurice Denis enquanto estes vão ao Louvre.) Isso deve-se provavelmente ao facto desse pensamento contemporâneo que os escritores e os artistas originais tornam acessível e desejável ao público, fazer em certa medida de tal modo parte deles próprios que um pensamento diferente os diverte melhor. Pede-lhes, para que cheguem até ele, mais esforço, e dá-lhes também mais prazer; é sempre agradável sair um pouco de nós próprios, viajar, quando lemos.
Mas há uma outra razão à qual prefiro, para terminar, atribuir essa predilecção dos grandes espíritos pelas obras clássicas. É que estas não têm para nós, como as obras contemporâneas, a beleza que nelas soube incutir o espírito o espírito que as criou. Recebem outra ainda mais comovente pelo facto da própria matéria, refiro-me à língua em que foram escritas, ser como que um espelho da vida. Um pouco de felicidade que sentimos ao darmos um passeio por uma cidade como Beaune que guarda intacto o seu hospital do século XV, com o seu poço, o lavadouro, a abóboda de madeira revestida de lambris e pintada, o telhado de empena alta trespassado de clarabóias coroadas por leves espigas de chumbo martelado (todas as coisas que uma época ao desaparecer como que deixou ali esquecidas, todas essas coisas que só a ela pertenciam, visto que nenhuma das épocas que se lhe seguiram viu nascer outras parecidas), sentimos ainda um pouco dessa felicidade ao deambularmos pelos meandros de uma tragédia de Racine ou de um volume de Saint-Simon. Porque eles cont~em todas as belas formas de linguagem abolidas que guardam as recordações de usos, ou de maneiras de sentir que já não existem, marcas persistentes do passado com que coisa alguma do presente se parece e de que o tempo, ao passar por elas, foi o único a avivar-lhes mais a cor.
Uma tragédia de Racine, um volume das Memoires de Sainte-Beuve assemelham-se a coisas lindas que já não se fabricam. A linguagem em que foram esculpidas por grandes artistas com uma liberdade que lhes faz brilhar a suavidade e sobressair a força inata emociona-nos como a visão de certos mármores, hoje inusitados, que os operários de outrora utilizavam. É provável que num desses velhos edifícios a pedra tenha fielmente guardado o pensamento do escultor, mas também, graças ao escultor, a pedra, de uma espécie actualmente desconhecida, foi-nos conservada, revestida de todas as cores que ele dela soube extrair, fazer aparecer, harmonizar.(...)
Várias vezes no Evangelho de São Lucas, ao encontrar os dois pontos que o interrompem antes de cada uma das partes quase em forma de cânticos de que está semeado, ouvi o silêncio do crente, que acabava de parar a leitura em voz alta a fim de entoar os versículos seguintes como um salmo que lhe fizesse lembrar os salmos mais antigos da Bíblia. Este silêncio enchia ainda a pausa da frase que, ao ter-se cindido para o englobar, guardara a forma dele; e mais de uma vez, enquanto eu lia, ele me trouxe o perfume de uma rosa que a brisa entrando pela janela aberta espalhara pela sala de tecto alto onde estava reunida a Assembleia e que se não evaporara desde há quase dois mil anos. A Divina Comédia, as peças de Shakespear, dão também a impressão de contemplarem, inserido na hora actual, um pouco do passado; esta impressão tão exaltante que faz com que certos “Dias de leitura” se assemelhem a certos dias de deambulação por Veneza, pela Piazetta por exemplo, quando se tem diante nós, na sua cor semi-real de coisas situadas a poucos passos e a muitos séculos, as duas colunas de granito cinzento e rosa que têm nos capitéis, uma o leão de São Marcos, a outra Santo Teodoro esmagando o crocodilo; estas duas belas e esbeltas estrangeiras vieram outrora do Oriente trazidas pelo mar que a seus pés se quebra; sem compreenderem as conversas tidas à sua volta, continuam a alongar os seus dias do século XII na multidão de hoje, naquela praça pública onde brilha ainda distraidamente, ali tão perto, o seu sorriso distante."
PROUST, Marcel, “O Prazer da Leitura”, Lisboa, Editorial Teorema, 1997, p.p. 56-62.
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