posted by luis Sexta-feira, Maio 16, 2003
“Logo no dia seguinte à tarde, o persistente viajante fez nova diligência no sentido de apurar o que se passava à sua volta, e desta vez com o maior sucesso. Encontrando-se na Praça de São Marcos, dirigiu-se à agência de viagens inglesa ali estacionada e, depois de ter trocado algum dinheiro na caixa, aproximou-se do balcão e depôs junto do funcionário, na atitude de estrangeiro desconfiado, a sua pergunta fatal. Era um britânico todo vestido de lã, ainda novo, de cabelos abertos ao meio por uma risca, olhos quase ligados entre si e com aquele ar de lealdade bem enraizada que tão singular e estranho contraste fazia com a presteza finório do sul. Começou por dizer: «Não há razão para se preocupar, Sir. É uma medida sem significado de maior. Tomam-se muitas vezes disposições dessas para precaver os maus efeitos do calor e do siroco sobre a saúde…». Mas, levantando a cabeça, os seus olhos azuis encontraram os do estrangeiro, de expressão cansada e algo triste, postos com ligeiro desprezo nos seus lábios. E o inglês corou. «Isto é», continuou a meia voz e com certa agitação, «a explicação oficial, que aqui achamos por bem seguir. Mas a si digo-lhe que há mais qualquer coisa por detrás disso.» Então, à sua maneira honesta e directa, contou toda a verdade. Há alguns anos a esta parte, a cólera asiática revelara uma tendência crescente para se expandir e rebentava em surtos dispersos com progressiva frequência. Gerada no calor do delta pantanoso do Ganges, onde germinava na atmosfera mefítica daquele mundo ermo de ilhas, de selva luxuriante, quase intocada pela criação e hostil ao homem, onde o tigre rugia, agachado, entre espessuras de bambus, a epidemia alastrara persistentemente por todo o Indostão com desusada virulência, avançara para leste e, invadindo a China, para oeste, atacando o Afeganistão e a Pérsia e seguindo as rotas principais das caravanas, estendera os seus malefícios até Astracã e mesmo até Moscovo. Mas, enquanto A Europa tremia ante a perspectiva de que a praga fizesse dali entrada no continente, já ela penetrara, transportada por por comerciantes sírios vindos de outras bandas do oceano, aparecendo quase simultaneamente em vários portos do Mediterrâneo, e levantava a cabeça em Toulon e Málaga, mostrara várias vezes a sua máscara em Palermo e Nápoles e parecia não querer arredar de toda a Calábria e da Apúlia. O norte da península fora poupado. No entanto, em meados de Maio desse ano detectaram-se num só dia os terríveis vibriões nos cadáveres emaciados e enegrecidos de um barqueiro e uma vendedeira de hortaliça. Os dois casos foram abafados. Mas uma semana depois eram já dez, eram vinte, trinta, e em bairros diferenciados. Um visitante do interior austríaco, que viera passar alguns dias a Veneza em recreio, morrera já de volta à sua terra natal, sob sintomas que não deixavam margem para dúvidas, e assim apareceram em jornais de expressão alemã os primeiros rumores do mal que assolava a cidade das lagunas. As autoridades venezianas declararam que as condições sanitárias da cidade eram melhores do que nunca e tomaram medidas mais prementes para combater o mal. Mas é provável que houvesse géneros alimentícios – legumes, carne ou peixe – já contaminadas, pois, desmentida e escamoteada, morte grassava e devorava em becos e vielas e a estiagem precoce, que tornava tépida a água dos canais, era particularmente favorável à propagação. Sim, dir-se-ia que o flagelo ganhara novo ímpeto, como se a tenacidade e a virulência dos seus focos geradores tivessem duplicado. Os casos de recuperação eram poucos. Por cada centena de contagiados, oitenta morriam, e morriam de morte horrível, pois a doença atacava com ferocidade extrema e revestia frequentemente a sua forma mais perigosa, conhecida pelo nome de «seca». Nestes casos, o corpo perdia mesmo a sua capacidade de expelir a água segregada em espacial abundância pelos vasos sanguíneos. Dentro de poucas horas, o doente ressequia e asfixiava pelo sangue, tornado viscoso como pez, entre convulsões e gemidos roucos de agonia. E afortunado era aquele – como por vezes acontecia – que, após se ter declarado a doença, apenas num ligeiro mal-estar, caía num estado de semidesperto. No princípio de Junho encheram-se à socapa os pavilhões de isolamento do ospedale cívico, nos dois orfanatos o espaço tornou-se exíguo e reinava um movimento arrepiante, por desusado, entre o cais de Nuovo Fundamento e San Michele, a ilha do cemitério. Mas a cidade acusava mais abertamente o receio de um prejuízo generalizado, o peso da exposição de pintura pouco antes inaugurada nos jardins públicos, das avultadas perdas que ameaçavam os hotéis, o comércio e toda a multifacetada indústria do turismo, em caso de pânico ou propagado o descrédito, do que o amor à verdade e o respeito pelas convenções internacionais. E essa apreensão decidia o poder público a perseverar obstinadamente na sua política de silêncio e de desmentidos. A autoridade sanitária de Veneza, um homem de mérito, pedira, indignado, a sua demissão e fora sub-repticiamente substituído por uma personalidade mais condescendente. O povo sabia disso – e a corrupção das altas esferas, aliada à incerteza reinante e ao estado de excepção em que o espectro da morte mergulhava a cidade, deu lugar a uma certa desmoralização das camadas inferiores, a um encorajamento de instintos obscurantes e anti-sociais, que se manifestava por desregramento, indecoro e criminalidade crescente. Contra o habitual, viam-se, ao cair da tarde, pelas ruas, muito embriagados: corria que uma vadiagem duvidosa enchia as ruas de insegurança; repetiam-se os roubos e mesmo os assassinatos, pois já por duas vezes ficara demonstrado que duas pessoas dadas como vítimas da epidemia haviam afinal sido riscadas da vida por envenenamento de parentes seus; e o vício profissional ocorria com insistência e depravação jamais verificadas na região e normalmente restritas ao Sul do país e a Leste.” (…)
MANN, Thomas, (trad. Sara Seruya), Morte em Veneza, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1990, p.p. 109-113.
Nenhum comentário:
Postar um comentário