domingo, 14 de abril de 2013

Heterogenia


"Na hora de contar a história, tem gente que começa pelo meio dela. E dá certo. Mas na hora de vivê-la, não há jeito, existe um ponto de partida, que é sempre a transição do que existia antes para o que começa a existir depois. E tem meios materiais essa transição. Muita gente prefere alinhar o parlamento íntimo ao status quo. É uma opção razoável, claro, sobretudo quando se é permitido optar por alguma coisa nessa vida. Mas há um establishment aqui dentro que não se alinha a nada, que guerreia o tempo todo com a heterogenia do de dentro, que brinca com qualquer mecanismo autossustentável e que nunca referenda a palavra eterno."
Roberta Tostes, 2003.

Morte e Vida Severina


"...E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina."

- João Cabral de Melo Neto, trecho "Morte e Vida Severina".

A disciplina do amor


"Solução melhor é não enlouquecer mais do que já enlouquecemos, não tanto por virtude, mas por cálculo. Controlar essa loucura razoável: se formos razoavelmente loucos não precisaremos desses sanatórios porque é sabido que os saudáveis não entendem muito de loucura. O jeito é se virar em casa mesmo, sem testemunhas estranhas. Sem despesas."

- Lygia Fagundes Telles in: "A disciplina do amor" - página 28, Ed. O Journal, 1980

Poemas de Paul Eluard


Diz-se do amor


I

Nosso silêncio faz calar a tempestade
Acalmará a folhagem profunda

Carrego duas mãos abandonadas


II

O barco naufragava para sempre na bruma

Longe longe diz o ódio
Perto perto diz o amor


III

Os olhos de um ar vivo soberano inocente
Os seios leves ela ria de tudo

E o mar dispersou a areia de seu trono.


--


Diz-se da forma do amor


I

O sol duro como uma pedra
Razão compacta vinha feroz

E o espaço cruel é um muro que me encerra


II

Neste deserto que me habitava que me vestia

Ela me beijou e ao me beijar
Ela me ordenou que eu visse e escutasse.


III

Com beijos e palavras
Sua boca seguiu o caminho de seus olhos

Ali havia vivos mortos e vivos.



(O difícil desejo de permanecer – 1946)


Paul Eluard – Últimos poemas de amor.
Tradução: Maria Elvira Braga Lopes e Gilson Maurity.
Mais dois poemas de Paul Éluard


A aliança

Definitivamente são duas árvores pequenas
Sozinhas em um campo aberto
Que nunca mais se separarão.


--


N


I

Em que pensas
Eu penso no primeiro beijo que te darei.


II

Beijos semelhantes às palavras do sonhador
Estais a serviço de forças inventadas.


III

As ruas dos pequenos amores
Os muros acabam em noite negra

Eu amo
E minhas cortinas são brancas.


IV

Sem esplendor e doce em seu ninho
Ela aparece num sorriso.


V

No dia 21 de Junho de 1906
Ao meio-dia
Tu me deste a vida.


VI

Eu disse fácil o que é fácil
É a fidelidade.


VII

É preciso vê-la sob o sol forte das rochas
inacessíveis
É preciso vê-la em plena noite
É preciso vê-la quando ela está só.


(Uma longa reflexão amorosa – 1945)


Paul Éluard – Últimos poemas de amor.
Tradução: Maria Elvira Braga Lopes e Gilson Maurity.

No exílio

Ela é triste ela faz viver
A dúvida que tem de sua realidade nos olhos de outro
Planta maior no banho
Vegetal trabalhado moreno ou louro
À extrema flor de sua cabeça
Sua nudez contínua

Seus seios de favores recusados
Um riso dos cabelos de ébano

Entre as árvores
A tempestade que defende os seus

Quebra os caules de luz

Ela é também esta tempestade 
Que distribui armas desajeitadas
Às ervas aos insetos
Aos últimos calores
As névoas do outono
As cinzas do inverno
A pérola negra não é mais rara
O desejo e o enfado se irmanam
Manejo de manias
Tudo é esquecido
Nada é sacrificado
O odor dos escombros persiste

Os olhos cerrados é ela toda inteira.


(Uma longa reflexão amorosa – 1945)


*

Corpo ideal

Sob o grande céu aberto o mar dobra suas asas
Nos cantos de teu sorriso um caminho se abre em mim

Sonhadora toda em carne luz toda em fogo
Aumenta meu prazer anula o que se estende

Apressa-te em dissolver e meu sonho e minha vista.


(O difícil desejo de permanecer – 1946)


Paul Éluard – Últimos poemas de amor.
Tradução: Maria Elvira Braga Lopes e Gilson Maurity.


Ao infinito



Ela surgia de suas semelhanças
E de seus contrários

Por vezes a víamos melhor mais publicamente
Do que ocultando os seios sob um coração materno

Poderá ela inspirar indiferença
Aquela que sou eu mesmo

Ela exalta meu irmão
Meu irmão a primeira imagem

O sol brilha através dele ele nasceu dela
E é por isso que tenho certeza que todos o amam

Ela surgiu do homem
E o homem surgiu dela
Ela surgiu do desejo do homem
De um homem
De mim
E de outro homem
E talvez também de uma mulher
De muitas mulheres desejáveis ideais
E de muitas mulheres sem atrativos

Surgiram infâncias vagas 
Dos sonhos mais belos em espirais coloridas
E de duras realidades
Corcundas debilitadas brancas e negras
Sonho e realidade e rosa e a roseira
A dor e seus muros a extensão de uma rua tranquila
A dor aceitável e o prazer possível

Seca
Dos pés à cabeça
Ela caminhava sobre os pântanos
E submergia nas dunas

Eu frio ou cálido
De vez em quando eu era seu leito
Seus lençóis alvos seus lençóis encardidos
E seu íntimo prazer

Seu sangue navegava a remar
Contornando a ilha de seu coração
Caçávamos os dois juntos o sono
Dois sóis se erguiam em nós. 


Paul Éluard - Corpo memorável (1948)
Últimos poemas de amor

Trad. Maria Elvira Braga Lopes e Gilson Maurity


"E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne."

(Herberto Helder)

complexo de Cinderela


"Uma mulher inteligente falando dos homens", ao menos entenderia que uma relação afetiva bacana para ambas as partes, não é a do tipo jogo de tênis e sim a do tipo frescobol: essa mulher já teria lido a maravilhosa crônica de Rubem Alves (http://www.rubemalves.com.br/cronicas-descricao.php?id_cronicas=41) e percebido a banalidade cruel em que vive quando não presta atenção no "guerreiro menino" que vive com ela, sendo que não só ela, como também ele, precisa de suavidade, de respeito, de candura e de cuidados...

Lemos, aqui e ali, o repasse de mensagens "femininas", nas quais o homem é aquele que deve e incondicionalmente, servir à sua parceira, a qual - geralmente uma patente (e potente) portadora do complexo de Cinderela, vive a proclamar aos quatro ventos que nasceu para ser tratada como se fosse mesmo uma princesa de contos de fadas... A vida não é assim e mesmo que ela já saiba disso, afinal já não é nenhuma garotinha, insiste em acusar o seu parceiro de ser o causador de todos os seus males e mazelas, todos, indistintamente... Ela não está feliz, acusa-o enfim de sua infelicidade e nada importa como o outro se sente, afinal, a princesa é ela e a ele, cuja única função é a de ser o seu príncipe, mesmo que desencantado, resta abaixar a cabeça e ouvir os seus infindáveis lamentos...

Não se trata aqui de uma questão de gênero, ou seja, homem X mulher e seus "verdadeiros" papéis numa relação a dois: isso pouco importa quando o assunto é uma relação afetiva que deveria ser, pasmemos, de afeto, mas, justa e comumente, a questão de gênero se sobressai e nos moldes heterossexuais ora expostos, porque ainda vivemos, infelizmente, sob o paradigma sexista de relações nas quais ao "sexo forte" cabe a bravura indômita e ao "sexo frágil", a passividade (e a consequente comodidade) da obtenção de mimos e muito, muito carinho...

E daí a conclusão fatal de Gonzaguinha, na linda letra que segue abaixo, através da antológica interpretação de Fagner: "Não dá pra ser feliz, não dá pra ser feliz"...


Um Homem Também Chora (Guerreiro Menino)

Gonzaguinha

Um homem também chora, menina morena
Também deseja colo, palavras amenas
Precisa de carinho, precisa de ternura
Precisa de um abraço da própria candura

Guerreiros são pessoas são fortes, são frágeis
Guerreiros são meninos no fundo do peito
Precisam de um descanso, precisam de um remanso
Precisam de um sonho que os tornem perfeitos

É triste ver esse homem, guerreiro, menino
Com a barra de seu tempo por sobre seus ombros
Eu vejo que ele berra, eu vejo que ele sangra
A dor que traz no peito, pois ama e ama

Um homem se humilha se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida e a vida é o trabalho
E sem o seu trabalho, um homem não tem honra
E sem a sua honra, se morre, se mata

Não dá pra ser feliz, não dá pra ser feliz...
Não dá pra ser feliz, não dá pra ser feliz...

http://youtu.be/2Qs6bDAZqV8
Monica de Castro

EM MEMÓRIA DE MIM MESMO


Paul Auster


Simplesmente ter-me detido.

Como se pudesse começar
onde minha voz se deteve, eu mesmo
o som de uma palavra

que não posso dizer.

Tanto silêncio
trazido à vida
nesta pensativa carne, neste rítmico
tambor interno de palavras,
tantas palavras

perdidas no vasto mundo
de meu interior, e desse modo ter sabido 
que apesar de mim mesmo

estou aqui.

Como se fosse o mundo.

(in "Facing the Music", Paul Auster, Trad. Raul Macedo )
Quando o ser da luz for
o ser da palavra,
no seu centro arder
e subir com a chama
(ou baixar à água)
então estarei em casa.

Eugénio de Andrade

A imaginação não é mais do que a pessoa arrebatada nas coisas.
Gaston Bachelard
O que distingue um grande poeta é o fato dele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós.
José Ortega y Gasset


"A insônia é uma lucidez vertiginosa que poderia converter o paraíso num centro de tortura. Qualquer coisa é preferível à vigília permanente, essa ausência criminosa do esquecimento."

 Emil Cioran

Se buscan bares en la Ciudad autónoma de Buenos Aires o en cualquier lugar del mundo que quieran adherirse al movimiento "Tienes un café pendiente". El mismo consiste en: Voy a un bar, me pido un café y pago dos. Cual es la gracia? que luego viene una persona en situación de calle y entra al bar y dice: Hay algún café pendiente? y le dan el café que he dejado pago con anterioridad. Ahora que viene el frío, que hay cientos, miles de personas en la calle, un café caliente puede significar una gran diferencia. Los bares estarían señalados con esta imagen en sus vidrieras para que la gente pueda solicitarlo. Se que muchos pensarán que tener un indigente sentado a su mesa es incómodo, pero no es necesario que se sienten, con darle el café o lo que haya quedado pendiente y pagado es suficiente. Aun este gesto significa la diferencia. La solidaridad: Un pequeño paso para el hombre, un paso inmenso para la humanidad.

Mercedes Mayol

'Nada existe para descobrir, porque o mundo foi dado por toda a eternidade, mas a revelação espera o peregrino, o cavaleiro, o vagabundo nas encruzilhadas dos caminhos. Na verdade, a revelação existe em cada indivíduo: percorrendo o mundo, ele busca em si mesmo, busca-se ao longe, até repentinamente jorrar, como uma fonte mágica que a pureza de um gesto faz surgir no próprio lugar onde o perseguidor desprovido de graça nada teria encontrado.'

Raoul Vaneigem

ENIGMA DO AMOR




Olho-te fixamente para que permaneças em mim.
Toda esta ternura é feita de elementos opostos
Que eu concilio na síntese da poesia.

O conhecimento que tenho de ti
É um dos meus complexos castigos.
Adivinho através do véu que te cobre
O canto de amor sufocado,
O choque ante a palavra divina, a antecipação da morte.

Minha nostalgia do infinito cresce
Na razão direta do afastamento em que estou do teu corpo.

 MURILO MENDES 

A MUSA


Tu és a relação entre o poeta e Deus.
Tu prefiguras uma imagem do Eterno
Porque a todo o instante organizas o mundo.
Sem ti minha poesia extinguirá,
Sem ti eu ficaria mirando as construções do tempo.
Tu assistes aos movimentos da minha alma,
E aumentas minha sede do ilimitado.
Um dia, quando o Eterno me der a grande força,
Prenderei tua cabeça entre as constelações
A fim de orientar os poetas futuros.


MURILO MENDES