quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Pop Cult e a festa inquieta



Nesses dois anos e meio de coluna, a frase que mais escutei foi: ‘Não entendo nada do que você diz’

Vou começar pelo fim. And, in the end, the love you take is equal to the love you make. Obrigado por este espaço, pela companhia. Esta é a última. Nesses dois anos e meio de coluna, a frase que mais escutei foi: “Não entendo nada do que você diz”. Desde lá, da primeira coluna sobre Malcolm McLaren, decidi que falaria assim, sobre algumas paixões relacionadas à música, e desse jeito, obrigatoriamente, tangenciaria ou até alvejaria outros assuntos disfarçados no sangue das faixas dos discos (como disse Bob Dylan).
Passando por marginais e obscuros, Leonard Cohen, Jacques Tati, Patti Smith e Rimbaud, a música jamaicana, Cassavetes e “A morte do bookmaker chinês”, musas punks, Judee Sill, Lupicínio, Vince Taylor, a gravadora Trikont, Ocuppy Wall St., Matsuo Bashô, Replacements, Billy Childish, “O grande Gatsby”, “Zen arcade” do Hüsker Dü, “Trout mask replica” do Captain Beefheart, Scott Walker, Billy Wilder e Lubitsch, Phil Spector e Joe Meek, os Duprat e José Carlos Dias, Naked City e Farrapo Humano, entre milhares.
O papel do leitor é tão importante quanto o do colunista, é fato. O papel do crítico é tão importante quanto o do artista. Mas precisamos de dedicação para falar e absorver questões artísticas. Minha obsessão aqui foi a de gerar novas paixões. Tenho pedido insistentemente em redes sociais e espaços ao meu alcance que jovens dividam suas paixões e não seus ódios. Que falem sobre seus discos, filmes, peças, livros preferidos. Prefiro pensar que desperto a curiosidade de jovens como eu fui. A música popular os levará além. Ela me levou. Paulo Leminski a levou. E hoje, esses jovens têm as ferramentas que os projetam no mundo. Não existem mais desculpas que justifiquem o desconhecimento. Só o autêntico e válido desinteresse. É por isso que raramente ouço de jovens a frase: “Não entendo nada do que você diz”. Pelo contrário, minha dúzia de amigos se multiplicou em mensagens e músicas. É uma necessidade fundamental dividir canções. É um ato afetuoso. É claro que uma cultura como essa, específica, isolada do senso geral jornalístico e portanto histórico, atinge alvos marginais. Eu cresci ouvindo música no meu quarto. Meus amigos também. Morrissey ouvia New York Dolls no seu quarto em Hulme. E isso um dia o levou a Oscar Wilde. Rodávamos a cidade pequena em busca de um vinil de 180 gramas de Elvis Costello. Quando me deparei com “Get happy!!”, hiperventilei, meus pés formigaram, minhas mãos tremeram, meu coração quis fugir pela boca. Mas na volta, cruzando a casa do vampiro, minha cabeça queria saber mais sobre literatura Irlandesa. Dalton Trevisan me trouxe Machado de Assis que me levou a Laurence Sterne.
A cultura da música pop é de almanaque. Poucos foram os grandes teóricos que se dedicaram ao tema, como Greil Marcus no seu histórico livro “Mistery train” ou no brilhante “Lipstick traces”, sobre os Sex Pistols, o punk e os dadaístas, sobre os internacionais situacionistas e os libertinos, sobre a vanguarda e os revolucionários hereges medievais. Estou falando dos grandes. Lester Bangs é outro. Mas ele morreu muito novo, com 33 anos. Um beatnik desgarrado. A obra de Nick Kent, discípulo de Bangs, é resultado de sua paixão por Truman Capote e Hunter Thompson.
Quando fizemos “A vida é cheia de som e fúria” levamos milhares de jovens pela primeira vez ao teatro. Esse público nos segue desde então por repertórios mais complexos e sofisticados, como “Não sobre o amor”, “Temporada de gripe” e até em óperas como “O castelo do Barba Azul”, ou no cinema (”Insolação”). Nesses trabalhos, tentamos nublar as fronteiras entre as artes. Literatura, cinema, artes plásticas, teatro, arquitetura. A música nos ajudou. Ela é a arte com o menor tempo de mediação intelectual. Mesmo a bela dodecafonia de Schoenberg não consegue afastá-la de nós. Acredite, podemos ouvi-la como ouvimos Sex Pistols. E podemos ouvi-los como ouvimos Nelson Cavaquinho. Assim como podemos ler Thomas Pynchon (um grande amante da música pop) ou Kierkegaard (um grande amante) e listas de almanaques. As únicas fronteiras são as que nós mesmos levantamos. Superar nossa própria defesa é o plano mais saudável.
Paulo Leminski dizia que as pessoas sem imaginação estão sempre querendo que a arte sirva para alguma coisa. Não enxergam que a arte é a única chance que o homem tem de vivenciar a experiência de um mundo além da necessidade. O poeta curitibano dizia que um país pobre não pode desprezar nenhum repertório. Muito menos os repertórios mais difíceis de aceitar à primeira vista. Comece hoje pelo final. É o último dia do ano. Você não tem mais dias a perder. Comece por Morton Feldman — “Crippled symmetry”. Um dia nós nos reencontraremos e falaremos mais sobre isso.



Felipe Hirsch


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Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não uso das palavras
Fatigadas de informar.
Dou mais respeito
Às que vivem de barriga no chão
Tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou importância às coisas desimportantes
E aos seres desimportantes
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais do que as dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios
Amo os restos
Como boas moscas.
Queria que minha voz tivesse formato de canto
Porque não sou da informática
Eu sou da invencionática.
Só uso minhas palavras para compor meus silêncios."

- Manoel de Barros



"E enquanto uma chora, outra ri; é a lei do mundo, meu rico senhor; é a perfeição universal. Tudo chorando seria monótono, tudo rindo, cansativo; mas uma boa distribuição de lágrimas e polcas, soluços e sarabandas, acaba por trazer à alma do mundo a variedade necessária, e faz-se o equilíbrio da vida."

- Machado de Assis, in "Quincas Borba" (1891), capítulo XLV.

O MEU OLHAR




(Fernando Pessoa)

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...


Identidade




Preciso ser um outro
Para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que desgasta

Sou pólen sem inseto

Sou areia sustentando
O sexo das árvores

Existo onde me desconheço
Aguardando pelo meu passado
Ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
No mundo por que luto nasço.

- Mia Couto, in “Raiz de Orvalho e Outros Poemas”