Nesses dois anos e meio de coluna, a frase que mais escutei foi: ‘Não entendo nada do que você diz’
Vou começar pelo fim. And, in the end, the love you take is equal to the love you make. Obrigado por este espaço, pela companhia. Esta é a última. Nesses dois anos e meio de coluna, a frase que mais escutei foi: “Não entendo nada do que você diz”. Desde lá, da primeira coluna sobre Malcolm McLaren, decidi que falaria assim, sobre algumas paixões relacionadas à música, e desse jeito, obrigatoriamente, tangenciaria ou até alvejaria outros assuntos disfarçados no sangue das faixas dos discos (como disse Bob Dylan).Passando por marginais e obscuros, Leonard Cohen, Jacques Tati, Patti Smith e Rimbaud, a música jamaicana, Cassavetes e “A morte do bookmaker chinês”, musas punks, Judee Sill, Lupicínio, Vince Taylor, a gravadora Trikont, Ocuppy Wall St., Matsuo Bashô, Replacements, Billy Childish, “O grande Gatsby”, “Zen arcade” do Hüsker Dü, “Trout mask replica” do Captain Beefheart, Scott Walker, Billy Wilder e Lubitsch, Phil Spector e Joe Meek, os Duprat e José Carlos Dias, Naked City e Farrapo Humano, entre milhares.
O papel do leitor é tão importante quanto o do colunista, é fato. O papel do crítico é tão importante quanto o do artista. Mas precisamos de dedicação para falar e absorver questões artísticas. Minha obsessão aqui foi a de gerar novas paixões. Tenho pedido insistentemente em redes sociais e espaços ao meu alcance que jovens dividam suas paixões e não seus ódios. Que falem sobre seus discos, filmes, peças, livros preferidos. Prefiro pensar que desperto a curiosidade de jovens como eu fui. A música popular os levará além. Ela me levou. Paulo Leminski a levou. E hoje, esses jovens têm as ferramentas que os projetam no mundo. Não existem mais desculpas que justifiquem o desconhecimento. Só o autêntico e válido desinteresse. É por isso que raramente ouço de jovens a frase: “Não entendo nada do que você diz”. Pelo contrário, minha dúzia de amigos se multiplicou em mensagens e músicas. É uma necessidade fundamental dividir canções. É um ato afetuoso. É claro que uma cultura como essa, específica, isolada do senso geral jornalístico e portanto histórico, atinge alvos marginais. Eu cresci ouvindo música no meu quarto. Meus amigos também. Morrissey ouvia New York Dolls no seu quarto em Hulme. E isso um dia o levou a Oscar Wilde. Rodávamos a cidade pequena em busca de um vinil de 180 gramas de Elvis Costello. Quando me deparei com “Get happy!!”, hiperventilei, meus pés formigaram, minhas mãos tremeram, meu coração quis fugir pela boca. Mas na volta, cruzando a casa do vampiro, minha cabeça queria saber mais sobre literatura Irlandesa. Dalton Trevisan me trouxe Machado de Assis que me levou a Laurence Sterne.
A cultura da música pop é de almanaque. Poucos foram os grandes teóricos que se dedicaram ao tema, como Greil Marcus no seu histórico livro “Mistery train” ou no brilhante “Lipstick traces”, sobre os Sex Pistols, o punk e os dadaístas, sobre os internacionais situacionistas e os libertinos, sobre a vanguarda e os revolucionários hereges medievais. Estou falando dos grandes. Lester Bangs é outro. Mas ele morreu muito novo, com 33 anos. Um beatnik desgarrado. A obra de Nick Kent, discípulo de Bangs, é resultado de sua paixão por Truman Capote e Hunter Thompson.
Quando fizemos “A vida é cheia de som e fúria” levamos milhares de jovens pela primeira vez ao teatro. Esse público nos segue desde então por repertórios mais complexos e sofisticados, como “Não sobre o amor”, “Temporada de gripe” e até em óperas como “O castelo do Barba Azul”, ou no cinema (”Insolação”). Nesses trabalhos, tentamos nublar as fronteiras entre as artes. Literatura, cinema, artes plásticas, teatro, arquitetura. A música nos ajudou. Ela é a arte com o menor tempo de mediação intelectual. Mesmo a bela dodecafonia de Schoenberg não consegue afastá-la de nós. Acredite, podemos ouvi-la como ouvimos Sex Pistols. E podemos ouvi-los como ouvimos Nelson Cavaquinho. Assim como podemos ler Thomas Pynchon (um grande amante da música pop) ou Kierkegaard (um grande amante) e listas de almanaques. As únicas fronteiras são as que nós mesmos levantamos. Superar nossa própria defesa é o plano mais saudável.
Paulo Leminski dizia que as pessoas sem imaginação estão sempre querendo que a arte sirva para alguma coisa. Não enxergam que a arte é a única chance que o homem tem de vivenciar a experiência de um mundo além da necessidade. O poeta curitibano dizia que um país pobre não pode desprezar nenhum repertório. Muito menos os repertórios mais difíceis de aceitar à primeira vista. Comece hoje pelo final. É o último dia do ano. Você não tem mais dias a perder. Comece por Morton Feldman — “Crippled symmetry”. Um dia nós nos reencontraremos e falaremos mais sobre isso.
Felipe Hirsch
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