sábado, 8 de agosto de 2015

Horas vivas


Noite: abrem-se as flores . . .
Que esplendores!
Cíntia sonha seus amores
Pelo céu.
Tênues as neblinas
Às campinas
Descem das colinas,
Como um véu.
Mãos em mãos travadas,
Animadas,
Vão aquelas fadas
Pelo ar;
Soltos os cabelos,
Em novelos,
Puros, louros, belos,
A voar.
— "Homem, nos teus dias
Que agonias,
Sonhos, utopias,
Ambições;
Vivas e fagueiras,
As primeiras,
Como as derradeiras
Ilusões!
— "Quantas, quantas vidas
Vão perdidas,
Pombas mal feridas
Pelo mal!
Anos após anos,
Tão insanos,
Vêm os desenganos
Afinal.
— "Dorme: se os pesares
Repousares,
Vês? — por estes ares
Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
E lascivas,
Somos — horas vivas
De dormir. —"

[Machado de Assis]

O momento político

Estamos em experimentando um momento político que embora aparente desespero, pode ser visto como positivo, exatamente ao demonstrar mazelas de nossa democracia, ainda sendo construída e por este motivo, tal construção desenvolve-se sob ódios e situações até burlescas. Vislumbramos como nossas instituições precisam se consolidar de forma mais saudável e equilibrada. Observamos o embate entre egos e megalomanis que em nada contribuem para nossa rés pública. Ficou evidente como a coisa pública se tornou refém das aspirações privadas. Se temos ditadura: conglomerados e estruturas autoritárias que se expressam na figura dos partidos e estes expressam interesses de outras estruturas que ou se fazem mais visíveis ou mesmo invisíveis. Crise política? Sim! Mas que pode ser importante para reoxigenar nossas instituições e principalmente, a participação popular. Infelizmente, esta se coloca em alguma parte no meio de um antagonismo do ódio, fabricado para fins de dividir e conquistar, totalmente inútil para o que queremos constituir como um ambiente democrático. E o fim de um período? O lulismo agoniza? E o fim do PT? A direita se fortaleceu? Previsões e teorias podem ser traçadas, mas fica difícil dizer um certo ou errado, diante de um processo marcado pela fluidez e ao mesmo tempo que acena com um fim nada positivo. Falar em fim pode ser errado, pois os rearranjos de poder são feitos e desfeitos com muita rapidez. Discordo de alguns conhecidos que defendem demais o PT e outros que o atacam demais. Este extremismos de nada servem. Muito ao contrário. Servem para os fins de quem quer governar de modo abusivo e autoritário. Que seja da esquerda ou da direita. Creio inclusive que a ideologia aqui seja secundária. Afinal, para muitos dos nossos políticos e partidos esta questão é até terciaria. A questão é como nos recusar a sermos governados abusivamente. Por determinados indivíduos e com determinados fins que se coloquem em um âmbito fora do público. Talvez este seja o ponto mais preocupante: nosso atual congresso e se não generalizo, pois sempre é uma postura burra, a maioria encontra-se conivente com praticas e ações abusivas. E nesta questão, até o governo federal. E principalmente nos. O povo! Aquele que basicamente só pode opinar na urna eletrônica. Em sua maioria, apoiamos estas praticas, pois estamos muito enredados no antagonismo do ódio, fabricado exatamente com a seguinte finalidade: só vejam a superfície. Só odeiem uma ou outra imagem. Não respeitem opiniões dissidentes. Sigam medíocres, megalomaníacos e os considerem heróis. Fiquem cegos para a verdadeira questão: a dissidência popular é importantíssima, mas quando ocorre de modo espontâneo e saudável.

Rogério UFRJ.filosofo 

1ª Elegia de Duíno

"Quem, se eu gritasse, entre as legiões de Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse
inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo Anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. (…)


Rainer Maria Rilke, 

Meu coração desnudado

"Uma vez, perguntou-se, em minha presença, em que consistia o maior prazer do amor. Alguém naturalmente respondeu: 'em receber'. E um outro: 'em dar-se'. Um outro ainda: 'prazer do orgulho'. E mais outro: 'volúpia da humildade'. (...) Houve, por fim, um descarado utopista que afirmou que o maior prazer do amor era o de formar cidadãos para a pátria.
Quanto a mim digo: a volúpia única e suprema do amor está em fazer o mal. E o homem e a mulher sabem, desde o nascimento, que no mal se encontra toda a volúpia."


Charles Baudelaire, 'Meu coração desnudado'. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p. 18.

Arte poética


Fitar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sonho
que sonha não sonhar e que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.
No dia ou no ano perceber um símbolo
dos dias de um homem e ainda de seus anos,
transformar o ultraje desses anos
em música, em rumor e em símbolo,
na morte ver o sonho, ver no ocaso
um triste ouro, tal é a poesia,
que é imortal e pobre. A poesia
retorna como a aurora e o ocaso.
Às vezes pelas tardes certo rosto
contempla-nos do fundo de um espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nosso próprio rosto.
Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
verde e humilde. A arte é essa Ítaca
de verde eternidade, sem prodígios.
Também é como o rio interminável
que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.
- Jorge Luis Borges, em "O fazedor".

 [tradução de Josely Vianna Baptista]. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


Arte poética

Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.
Sentir que la vigilia es otro sueño
que sueña no soñar y que la muerte
que teme nuestra carne es esa muerte
de cada noche, que se llama sueño.
Ver en el día o en el año un símbolo
de los días del hombre y de sus años,
convertir el ultraje de los años
en una música, un rumor y un símbolo,
ver en la muerte el sueño, en el ocaso
un triste oro, tal es la poesía
que es inmortal y pobre. La poesía
vuelve como la aurora y el ocaso.
A veces en las tardes una cara
nos mira desde el fondo de un espejo;
el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.
Cuentan que Ulises, harto de prodigios,
lloró de amor al divisar su Itaca
verde y humilde. El arte es esa Itaca
de verde eternidad, no de prodigios.
También es como el río interminable
que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
y es otro, como el río interminable.

- Jorge Luis Borges, en "El hacedor", 1960.

A Luis de Camões
Sem lástima e sem ira o tempo vela
As heróicas espadas. Pobre e triste
Em tua pátria nostálgica te viste,
Oh capitão, para enterrar-te nela
E com ela. No mágico deserto
A flor de Portugal tinha perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Quero saber se aquém dessa ribeira
Última compreendeste humildemente
Que tudo o que se foi, o Ocidente
E o Oriente, a espada e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mudança) na tua Eneida Lusitana.

- Jorge Luis Borges, em "Quase Borges. 20 poemas e uma entrevista". [traduções de Augusto de Campos]. São Paulo: Terracota, 2013.


http://www.elfikurten.com.br/2014/06/jorge-luis-borges.html

SONETO 70


Que tuas culpas não sejam teus defeitos,
Pois a marca da calúnia nunca é bela;
O adorno da beleza torna-se suspeito,
Um corvo a voar na brisa mais amena.
Se agires bem, a injúria nada faz senão
Engrandecer o teu valor com o tempo;
Os vermes refestelam-se nos doces botões,
E tua beleza se mostra imaculada.
Superaste a armadilha da juventude,
Sem assaltos, nem vitórias;
Embora o elogio não possa ser ofertado
Para impedir uma inveja ainda maior.
Se as suspeitas de erros não te mascararem,
Vencerás sozinha todos os corações.

[William Shakespeare]

SONETO 69


Estas partes que os olhos do mundo vislumbram
Nada querem que a vontade dos corações cure;
Todas as línguas (a voz das almas) te dão o que é teu,
Murmurando a verdade, mesmo dita por inimigos.
Teu semblante com elogios aparentes é coroado,
Mas essas mesmas línguas que te reconhecem
Em outros tons confundem os elogios,
Vendo mais do que os olhos veem.
Eles divisam a beleza de tua mente,
E adivinham a tua dimensão pelos teus atos;
Então, distorcem os seus pensamentos, embora vejam bem,
Emprestando às tuas belas flores um mau odor.
Mas como teu perfume não se iguala ao que mostras,
Este é o chão onde deves crescer como um ser comum.

Da série 154 sonetos de William Shakespeare

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SONETO 68


Seu rosto revela o mapa de outros dias,
Quando a beleza vivia e fenecia como as flores,
Antes que nascessem esses malignos e belos sinais,
Ou que ousassem vir cobrir-te a fronte;
Antes dos dourados cachos dos finados,
O direito dos sepulcros fossem cortados
Para viver outra vida em outra cabeça,
Os cachos mortos da beleza a adornar outro.
Nele as sagradas e antigas horas se veem
Sem nenhum ornamento, a face despida e verdadeira,
Sem reviver com o verdor de outro verão,
Sem roubar um velho adorno para usá-lo como novo;
E ele como um mapa a natureza guarda,
Para mostrar com falsa Arte como a beleza fora um dia.



-Da série 154 sonetos de William Shakespeare

SONETO 67


Ah, onde deveria viver infecto
E com sua presença favorecer a impiedade,
Dando vantagem ao pecado,
E aliando-o à sua companhia?
Por que deveria falsificar seu retrato,
E dar aos mortos o tom de sua vívida cor?
Por que deveria a pouca beleza buscar, trôpega,
Sombras róseas, se sua cor rosada é verdadeira?
Por que ele deveria viver, agora que a natureza ruiu,
Suplicando ao sangue que suba à tona por suas veias?
Pois ela não tem outro provedor senão o dele,
E orgulhoso de muitos, vive de seu proveito,
Ó, ela o alimenta, para mostrar a riqueza
Que há muito tinha, antes de vencer o mal.

Da série 154 sonetos de William Shakespeare

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SONETO 66


Cansado de tudo isto, uma morte pacífica imploro:
Para impedir que nasça o mendigo,
E toda a necessidade termine em descaso,
E a fé mais pura seja tristemente preterida,
E a honra vergonhosamente deslocada,
E a virginal virtude rudemente pisoteada,
E a mais completa perfeição erroneamente desgraçada,
E a força desarmada pelo claudicante,
E a arte amordaçada pela autoridade,
E a loucura controlada pela medicina,
E a verdade confundida com a simplicidade,
E o bem cativo atenda à insanidade.
Cansado de tudo isto, disto tudo me afastaria,
Exceto ao morrer de abandonar o meu amor.

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Da série 154 sonetos de William Shakespeare