ABR 5, 2017 0
Revista Diálogos do Sul
Sociólogo venezuelano questiona a “solidariedade
incondicional” da esquerda latino-americana com o chavismo.
Natalia Uval*
edgardo-landerEdgardo Lander não é apenas um acadêmico,
professor titular da Universidade Central da Venezuela e pesquisador associado
do Transnational Institute. É uma pessoa vinculada há anos aos movimentos
sociais e à esquerda em seu país. A partir disso afirma que o apoio
incondicional das esquerdas da região ao chavismo reforçou as tendências
negativas do processo. Sustenta que as esquerdas,que no nível global não
tiveram a “capacidade de aprender” terminam respaldando um “governo de máfias”
como o da Nicarágua; e quando “colapsar o modelo venezuelano” é possível que
simplesmente “olhem para outro lado”.
–Há três anos você caracterizou a situação na Venezuela como
a “implosão do modelo petrolífero rentista”. Esse diagnóstico continua vigente?
-Lamentavelmente, os problemas que podem ser associados ao
esgotamento do modelo petroleiro rentista se acentuaram. O fato de a Venezuela
ter tido 100 anos de indústria petrolífera e de centralização do estado,
girando em torno à forma como é repartida a renda, conformou não apenas um
modelo de Estado e de partido, mas também uma cultura política e imaginários
coletivos da Venezuela como um país rico, de abundância, e a noção de que a
ação política consiste em organizar-se para pedir ao Estado. Essa é a lógica
permanente. No processo bolivariano, apesar de muitos discursos que
aparentemente iam em direção contrária, o que se fez foi acentuar isso. Do
ponto de vista econômico acentuou-se esta modalidade colonial de inserção na
organização internacional do trabalho. O colapso dos preços do petróleo
simplesmente desnudou uma coisa que era evidente, sempre que se depende de uma
commodity cujos preços necessariamente flutuam.
–As críticas à situação da democracia na Venezuela se
acentuaram depois que Nicolás Maduro assumiu. Por que isso aconteceu? Como se
compara com a situação sob o governo de Hugo Chávez?
-Primeiro é preciso levar em conta o que aconteceu no
trânsito de Chávez a Maduro. Eu sou da opinião de que a maioria dos problemas
com os que nos encontramos hoje são problemas que vinham se acumulando com
Chávez. As análises de parte da esquerda venezuelana que reivindicam la época
de Chávez como a época de glória na qual tudo funcionava bem, e de repente
aparece Maduro como um incompetente ou um traidor são explicações muito
maniqueístas e que não permitem desentranhar quais são as lógicas mais
estruturais que levam à crise atual. O processo venezuelano, de forma muito
esquemática, sempre esteve sustentado por dois pilares fundamentais: por um
lado, a capacidade extraordinária de Chávez de comunicar y de liderança, que
gerou uma força social; por outro lado, preços do petróleo que chegaram, em alguns
anos, a mais de 100 dólares por barril. Em 2013, de forma quase simultânea
esses dois pilares entraram em colapso: Chávez morreu e os preços do petróleo
despencaram. E o imperador ficou nu. Ficou claro que isso tinha um alto grau de
fragilidade por depender de coisas das quais não era possível seguir
dependendo. Além disso, há diferenças muito grandes entre a liderança de Chávez
e a de Maduro. Chávez era um líder com capacidade de dar orientação e sentido,
mas também exercia uma extraordinária liderança dentro do governo bolivariano
como tal, de maneira quando ele decidia algo, essa era a decisão. Isso gera
falta de debates e muitos erros, mas gera também uma ação unitária, dirigida.
Maduro não tem essa capacidade, nunca a teve e agora no governo cada um puxa
para o seu lado. Por outra parte, durante o governo de Maduro houve um
incremento da militarização, talvez porque Maduro não vem do mundo militar.
Então para garantir o apoio das Forças Armadas ele tem que incorporar mais
integrantes das Forças Armadas e dar-lhes mais privilégios. Criaram-se empresas
militares, atualmente um terço dos ministros e a metade dos governadores são
militares, e estão em lugares muito críticos da gestão pública, onde tem havido
os maiores níveis de corrupção: a concessão de divisas, os portos, a
distribuição de alimentos. O fato de que estejam em mãos de militares torna
mais difícil que sejam atividades transparentes, que a sociedade saiba o que
está acontecendo.
– O que aconteceu com os processos de participação social
promovidos pelos governos bolivarianos?
-Hoje na Venezuela há uma desarticulação do tecido da
sociedade. Depois de uma experiência extraordinariamente rica de organização
social, de organização de base, de movimentos em relação à saúde, às
telecomunicações, à posse da terra urbana, à alfabetização, que envolveu
milhões de pessoas e gerou uma cultura de confiança, de solidariedade, de ter a
capacidade de incidir sobre o próprio futuro, supunha-se que em momentos de
crise haveria capacidade coletiva de responder, mas acontece que não. É claro
que falo em termos muito amplos, há lugares em que há maior capacidade de
autonomia e de autogoverno. Mas de forma geral se pode dizer que a reação que
se vive hoje é mais em termos competitivos, individualistas. De qualquer modo,
creio que ficou uma reserva que em algum momento pode vir à tona.
–Por que não foi possível
manter essa corrente de participação e organização?
-O processo esteve atravessado desde o início por uma
contradição muito séria, que é a contradição entre entender a organização de
base como processos de autogestão e de autonomia, de construção de tecido
social de baixo para cima, e o fato de que a maior parte dessas organizações
foi produto de políticas públicas, promovidas de cima, do Estado. E essa contradição
se comportou de maneira diferente em cada experiência. Onde havia experiência
organizativa prévia, onde havia dirigentes comunitários, havia uma capacidade
de confrontar o Estado; não para rechaça-lo, mas para negociar. Além disso, a
partir de 2005 há uma transição do processo bolivariano de algo muito aberto, a
partir de um processo de busca de um modelo de sociedade diferente do soviético
e do capitalismo liberal, tomando a decisão de que o modelo é socialista, e uma interpretação do socialismo como
estatismo. Houve muita influência política-ideológica cubana nessa conversão.
Então muitas organizações já começam a ser pensadas em termos de instrumentos
dirigidos de cima e começa a se consolidar uma cultura stalinista em relação à
organização popular. E isso resultou, obviamente, em muita precariedade.
–Como é a situação da democracia em termos liberais?
-Obviamente é muito mais grave [durante o governo de
Maduro], e é mais grave porque é um governo que perdeu muitíssima legitimidade
e que tem níveis crescentes de rechaço por parte da população. E a oposição tem
avançado significativamente. O governo tinha hegemonia de todos os poderes
públicos até que perdeu aparatosamente as eleições (parlamentares) em dezembro
de 2015. E a partir daí começou a responder em termos crescentemente
autoritários. Em primeiro lugar, desconheceu a Assembleia, primeiro
desconhecendo os resultados de um Estado que tirava a maioria qualificada da
oposição na Assembleia, com razões aparentemente sem pé nem cabeça. Posteriormente,
houve um franco desconhecimento da Assembleia como tal, que do ponto de vista
do governo não existe, é ilegítima. E tanto é assim que há alguns meses era
necessário renovar os integrantes do Conselho Nacional Eleitoral [CNE], e então
a Corte desconheceu a Assembleia e nomeou os integrantes do CNE que, é claro,
são todos chavistas. Maduro tinha que apresentar no começo do ano uma memória
de gestão do ano anterior, e como não reconhece a Assembleia, a memória foi
apresentada ante a Corte. A mesma coisa aconteceu com o orçamento. Tínhamos um
referendo revogatório para o qual tinham sido cumpridos todos os passos. Devia
ser feito em novembro do ano passado e o CNE resolveu adiá-lo, e isso
significou matá-lo: simplesmente agora não há referendo revogatório. Era
constitucionalmente obrigatória a eleição de governadores em dezembro do ano
passado, e ela foi adiada indefinidamente. Então estamos em uma situação na
qual há uma concentração total de poder no Executivo, não há Assembleia
legislativa. Maduro está há mais de um ano governando por decreto de emergência
autorrenovado, quando deve ser ratificado pela Assembleia. Estamos muito longe
de algo que se possa chamar de prática democrática. Nesse contexto, as
respostas dadas são cada vez mais violentas, dos meios e da oposição, e a
reação do governo, já incapaz de fazer outra coisa, é a repressão das
manifestações, os presos políticos. Utilizam todos os instrumentos do poder em
função de preservar-se no poder.
–Quais as consequências desta situação no longo prazo?
-Eu diria que há três coisas que são extraordinariamente
preocupantes das consequências de tudo isso no médio e no longo prazo, Em
primeiro lugar, há uma destruição do tecido produtivo da sociedade e vai
demorar muito poder recuperá-lo. Recentemente houve um decreto presidencial de
abertura de 112.000 quilômetros quadrados à mineração transnacional em grande
escala em um território onde estão os habitat de dez povos indígenas, onde
estão as maiores fontes de água do país, na selva amazônica. Em segundo lugar
está o tema de como a profundidade desta crise está desintegrando o tecido
social e hoje, como sociedade, estamos pior do que estávamos antes do governo
de Chávez; isto é algo muito duro de dizer, mas efetivamente é o que se vive no
país. Em terceiro lugar, a forma como se reverteram as condições de vida em
termos de saúde e de alimentação. O governo deixou de publicar estatísticas
oficiais e há que confiar em estatísticas das câmaras empresariais e de algumas
universidades, mas estas indicam que há uma perda sistemática de peso da
população venezuelana; alguns cálculos dizem que é que seis quilos por pessoas.
E é claro que isso tem consequências em desnutrição infantil e tem efeitos no
longo prazo. Por último, isso tem extraordinárias consequências em relação à
possibilidade de qualquer imaginário de mudança. A noção de socialismo, de
alternativas, está descartada na Venezuela. Instalou-se a noção de que tudo o
que é público é necessariamente ineficiente e corrupto. É um fracasso.
–Como você vê as reações dos partidos de esquerda no nível
global, e especialmente na América Latina, a respeito da Venezuela?
-Creio que um dos problemas que a esquerda vem arrastando
historicamente é a extraordinária dificuldade que temos tido, como esquerda, de
aprender da experiência. Para aprender da experiência é absolutamente
necessário refletir criticamente sobre o que acontece e porque acontece. É
claro que sabemos toda a história do que foi a cumplicidade dos partidos
comunistas do mundo com os horrores do Estalinismo, e não por falta de
informação. Não foi que ficaram sabendo depois dos crimes de Stalin, mas sim
que houve uma cumplicidade que tem que ver com esse critério de que como se é
anti-imperialista e se trata de um enfrentamento contra o império, vamos nos
fazer de loucos com a matança de tanta gente, vamos não falar disso. Creio que
essa forma de entender a solidariedade como solidariedade incondicional, porque
há um discurso de esquerda ou porque haja posturas anti-imperialistas, ou
porque geopoliticamente se expressem contradições com os setores documentos no
sistema global, leva a não indagar criticamente sobre quais são os processos
que estão ocorrendo. Então se gera uma solidariedade cega, não crítica, que não
só tem a consequência de que eu não fui criticar o outro, mas tem a
consequência de que ativamente se está celebrando muitas das coisas que
terminam sendo extraordinariamente negativas. A chamada hiper-liderança de
Chávez era algo que estava ali desde o princípio. Ou o modelo produtivo
extrativista. O que a esquerda conhece em sua própria cultura sobre as
consequência disso estava aí. Então, como não abrir um debate sobre essas
coisas, de maneira a pensar criticamente e apresentar propostas? Não que a
esquerda europeia venha a dizer aos venezuelanos como têm que dirigir a
revolução, mas tampouco esta celebração acrítica, justificativa de qualquer
coisa. Então, os presos políticos não são presos políticos, a deterioração da
economia é produto da guerra econômica e da ação da direita internacional. Isso
é certo, está aí, mas obviamente não é suficiente para explicar a profundidade
da crise que estamos vivendo. A esquerda latino-americana tem uma
responsabilidade histórica em relação, por exemplo, à situação de Cuba hoje,
porque durante muitos anos assumiu que enquanto existisse o bloqueio a Cuba não
se podia criticar Cuba, mas não criticar Cuba queria dizer não ter a
possibilidade de refletir criticamente sobre qual é o processo que está vivendo
a sociedade cubana e quais são as possibilidades de diálogo com a sociedade
cubana em termos de opções de saída. Para uma grande proporção da população
cubana, o fato de que se estava em uma espécie de beco sem saída era bastante
óbvio no nível individual, mas o governo cubano não permitia expressar isso e a
esquerda latino-americana se desentendeu, não aportou nada, mas simplesmente
solidariedade incondicional. O caso mais extremo é pretender que o governo da
Nicarágua é um governo revolucionário e faz parte dos aliados, quando é um
governo de máfias, absolutamente corrupto, que do ponto de vista dos direitos
das mulheres é um dos regimes mais opressivos que existem na América Latina, em
uma aliança total com setores corruptos da burguesia, com o alto mando da
igreja católica, que antes era um dos grandes inimigos da revolução
nicaraguense. O que acontece com isso? Que se reforçam tendências negativas que
teria sido possível viabilizar. Mas, além disso, não aprendemos. Se entendermos
a luta pela transformação anti capitalista não como uma luta que acontece lá e
vamos ser solidários com o que eles fazem, mas como uma luta de todos, então o
que se faz mal lá nos está afetando também, e também tenho a responsabilidade
de assinalar isso e de aprender desta experiência para não repetir o mesmo. Mas
não temos capacidade de aprender porque, de repente, quando terminar de
colapsar o modelo venezuelano, vamos olhar para outro lado. E isso, como solidariedade, como
internacionalismo, como responsabilidade político-intelectual, é desastroso.
–Por que a esquerda adota estas atitudes?
-Tem que ver, em parte, com o fato de que não terminamos de
descarregar o pensamento de esquerda de algumas concepções demasiadamente
unidimensionais do que é que está em jogo. Se o que está em jogo é o conteúdo
de classe e o anti-imperialismo julgamos de uma maneira. Mas se pensamos que a
transformação hoje passa por isso, mas também por uma perspectiva crítica
feminista, por outras formas de relação com a natureza, por pensar que o tema
da democracia não é descartar a democracia burguesa, mas sim aprofundar a
democracia; se pensamos que a transformação é multidimensional porque a
dominação também é multidimensional,
porque este apoio acrítico aos governos de esquerda que coloca os
direitos dos povos indígenas em segundo plano, coloca a devastação ambiental em
segundo plano, coloca a reprodução do patriarcado em segundo plano? Então se
termina julgando a partir de uma história muito monolítica do que se supõe que
é a transformação anti capitalista, que não dá conta do mundo atual. E
obviamente, de que nos serve liberar-nos do imperialismo ianque se
estabelecermos uma relação idêntica com a China? Há um problema político,
teórico e ideológico, talvez geracional, de pessoas para as quais esta era sua
última aposta para conseguir uma sociedade alternativa, a se resistem a aceitar
que fracassou.
*Original de La Diaria, jornal cooperativo fundado em 2006 e
que desde 2012 é o segundo mais lido no Uruguai