sábado, 27 de agosto de 2016

A uberização das relações de trabalho no Brasil

Publicado em Sexta, 19 Agosto 2016 15:20

Marcio Pochmann*

A cantilena da redução dos direitos voltou a ser entoada, sob o coro dos patrões.

A terceirização e a “simplificação” trabalhista apontam para a uberização das relações de trabalho no Brasil.

Desde a transição da sociedade agrária para a urbana e industrial, iniciada na década de 1930, aos dias de hoje, o Brasil conheceu quatro distintas recessões econômicas, com impactos decisivos sobre os direitos sociais e trabalhistas.

De todas, constata-se que em duas delas houve o sentido geral de reação organizada da sociedade que permitiu a ampliação dos direitos da classe trabalhadora, enquanto em apenas uma percebeu-se o retrocesso.

Na atual recessão, os direitos sociais e trabalhistas voltaram a ser ameaçados, exigindo resposta firme e consistente do conjunto dos trabalhadores.

Na grande recessão do início da década de 1930, por exemplo, o envolvimento dos trabalhadores se mostrou fundamental para a difusão de uma diversificada e heterogênea legislação social e trabalhista.

Com isso, somente no ano de 1943, com a implementação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), os trabalhadores urbanos passaram a deter inéditos direitos sociais e trabalhistas.

Na sequência, a grave recessão do início dos anos de 1980 descortinou uma nova etapa de lutas dos trabalhadores voltada para a proteção das ocupações, bem como a redução da jornada de trabalho, entre outras reivindicações.

O resultado disso foi a aprovação pela Constituição Federal de 1988 do novo patamar dos direitos sociais e trabalhistas.

Dois anos depois, contudo, a recessão do início da década de 1990 implicou retrocesso aos direitos da classe trabalhadora. Com a adoção do receituário neoliberal, o objetivo de enfraquecer o mundo do trabalho foi alcançado, mostrando-se fundamental para evitar a reação organizada da sociedade ao rebaixamento das condições e relações de trabalho.

Desde o ano de 2015 que o Brasil convive com a quarta recessão econômica, cujos efeitos têm sido a ampliação do sofrimento humano, sobretudo dos trabalhadores que passaram a ter rendimento menor e ocupações a menos. O desemprego generalizado e a pobreza crescente apontam para direção inversa à verificada nos anos 2000.

Tal como nos governos neoliberais durante os anos de 1990, a velha cantilena da redução dos direitos sociais e trabalhistas voltou a ser entoada pelo governo sob o coro dos patrões. Não apenas a nova lei da terceirização, como a simplificação trabalhista propostas apontam para a uberização das relações de trabalho no Brasil.

O propósito atual de enxugar os direitos sociais e trabalhistas assenta-se na ideia de que quanto menor o custo de contratação do trabalho pelo empregador, maior a possibilidade de elevar a competitividade da empresa, permitindo, na sequência, elevar o nível de emprego. Mas ao mesmo tempo em que o emprego da mão de obra é custo para o patrão, também é o rendimento para os ocupados.

Com menor rendimento e maior flexibilidade contratual, os trabalhadores consomem menos ainda, fazendo contrair, em consequência, o consumo. E, por sua vez, a provocação da queda da demanda na economia como um todo, fazendo aumentar o desemprego da força de trabalho. Retrocesso em cima de retrocessos.


(*) Economista, ex-presidente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA). Artigo publicado originalmente na Rede Brasil Atual em 13/08/2016.

Ameaças da reforma previdenciária de Michel Temer


Publicado em Terça, 02 Agosto 2016 11:42

Por Antônio Augusto de Queiroz (*)

O ministro Chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, em entrevista ao Jornal O Globo (30/07/2016) antecipou as bases da reforma da previdência que foi submetida ao presidente interino, Michel Temer, e que será encaminhada para votação no Congresso após a conclusão do processo de impeachment. Se confirmada nos termos anunciado pelo ministro, a proposta de reforma será mais dura que as realizadas por FHC e Lula.

A proposta tratará: a) do aumento da idade mínima e do tempo de contribuição, b) da equiparação de idade e tempo de contribuição entre homens e mulheres, c) de transição somente para quem tem mais de 50 anos, d) de eliminação da diferença de critério para aposentadoria de trabalhador urbano e rural e servidor público e trabalhador da iniciativa privada, e) de mudanças nas aposentadorias especiais e, f) da instituição de novo redutor nas pensões, além de outras mudanças em nível infraconstitucional.

A idade mínima para efeito de aposentadoria, que se inicia com 65 anos e pode chegar a 70 para homens e mulheres, será instituída para o setor privado e aumentada para o servidor público. Isto significa que as regras de transição das Emendas Constitucionais anteriores não serão aplicadas a partir da promulgação da nova Emenda Constitucional, exceto para quem já tenha direito adquirido, ou seja, já tenha preenchido todos os requisitos para aposentadoria.

A equiparação do tempo de contribuição entre homens e mulheres, do campo e da cidade, inclusive para os professores, terá uma regra de transição especial, porém sem estendê-la à exigência de idade mínima. Ou seja, a mulher perderá de imediato pelo menos um dos dois quesitos que atualmente a diferencia do homem para efeito de aposentadoria: menos idade e menos tempo de contribuição.

O tempo já trabalhado, que foi respeitado e teve regra de transição nas reformas de Lula e FHC, na proposta Temer não será considerado, exceto para o atual segurado que já tenha mais de 50 anos de idade. Para estes, e somente para estes, haverá uma regra de transição, com a adoção de um pedágio entre 40% e 50% sobre o tempo que faltar para preencher as regras de aposentadoria na data da promulgação da Emenda Constitucional do governo Temer. Os demais servidores, mesmo que tenham 49 anos de idade e mais de 29 de contribuição não terão direito a transição, submetendo-se às novas regras.

 A proposta elimina a diferença de critério para efeito de aposentadoria entre servidores e trabalhadores do setor privado, entre trabalhadores urbanos e rurais, com a unificação dos requisitos, ainda que o regimes previdenciários continuem separados, como o do INSS e dos servidores públicos.

As aposentadorias especiais, além da exigência de idade mínima, terão os requisitos de tempo de contribuição e de permanência na atividade aumentados em proporção superior ao aumento dos requisitos para os demais segurados.

Por fim, as pensões, que atualmente são integrais até o valor de R$ 5.189,82 (teto do INSS) e, no caso dos servidores públicos, sofrem um redutor de 30% sobre a parcela que excede ao teto do INSS, ficarão limitadas a 60% do benefício, acrescidas de 10% por cada dependente.  As novas regras valerão para todos os segurados (regimes próprio e geral) que, na data da promulgação da nova emenda, não estejam aposentados ou que não tenham direito adquirido, ou seja, não tenham preenchido todos os requisitos para requer aposentadoria com base nas regras anteriores.

É verdade que se trata da intenção do governo que para se transformar em Emenda à Constituição terá que ser aprovada por três quintos das duas Casas do Congresso (Câmara, com 308 votos e no Senado, com 49 votos) em dois turnos de votação em cada Casa, mas os trabalhadores e servidores devem se mobilizar desde já, denunciando o caráter perverso dessa reforma, sob pena de retrocesso nas conquistas previdenciárias.

Em relação ao servidor público, entretanto, há dois testes antes da reforma da previdência   – caso do PLP 257, que trata da dívida dos estados e da modificação da Lei de Responsabilidade Fiscal para retirar direito do servidor, e o caso da PEC 241, que congela o gasto público em termos reais, inclusive a despesa com pessoal – que se o governo sair vitorioso será fortalecido na tentativa de aprovar a reforma da previdência com supressão de direitos.

A luta, portanto, deve se iniciar imediatamente, com grandes mobilizações para rejeitar ou retirar do PLP e da PEC os aspectos que prejudicam os servidores, sob pena de se abrir uma avenida para a aprovação da reforma da previdência.


 (*) Jornalista, analista político e diretor de Documentação do Diap

A hora é de lutar por direitos


Publicado em Quarta, 17 Agosto 2016 15:04

Jacy Afonso*

Em 1988, a nova Constituição aprovou uma legislação sindical contraditória. Por um lado, se avançou na conquista da liberdade de organização sindical e, por outro, se tentou conciliar conceitos antagônicos, mantendo os parâmetros autoritários do modelo sindical brasileiro, através da unicidade sindical.

Mesmo assim há que se reconhecer que houve avanços na Constituinte: fim da carta sindical, do estatuto padrão e do voto obrigatório nas eleições sindicais; revogação da lei que permitia a intervenção em entidade sindical; assegurou à entidade sindical o direito de definir o processo eleitoral, a duração do mandato, o número de diretores e a elaboração dos estatutos; o sindicato deixou de exercer função delegada pelo poder público, desobrigando-se de praticar assistencialismo ou prestar contas ao governo; a entidade sindical passou a ter autonomia para definir sua receita e despesa, sem estar sujeita à fiscalização, exceto de seu filiados; os servidores ganharam o direito de se organizar em sindicato, em igualdade de condições com os trabalhadores da iniciativa privada e a participação sindical nas negociações coletivas tornou-se obrigatória.

No final da década de 80 viveu-se um período de confusão. Porque a manutenção da unicidade sindical apesar da vigência da liberdade sindical, tornava praticamente obrigatória a fiscalização por parte de alguma instância que certifica que não havia duplicidade de reapresentação.

Sucederam-se decretos e portarias ministeriais que atendiam a um e outro lado e na falta de uma solução, processos foram se acumulando na Justiça do Trabalho. As interpretações muitas vezes eram casuísticas ou políticas e podiam funcionar como instrumento de contenção de algumas das lutas sindicais. Uma situação esdrúxula onde a aplicação do princípio constitucional da liberdade sindical era interpretado com base na CLT, que teoricamente havia sido suplantada pela nova Constituição.

Em 2002, o programa de governo lançado pelo candidato Luiz Inácio Lula da Silva se comprometia a encaminhar um amplo debate sobre a reforma da estrutura sindical brasileira e afirmava que o primeiro passo seria "reconhecer as centrais sindicais como interlocutores dos interesses dos trabalhadores."

Em 2003 foi instalado o Fórum Nacional do Trabalho (FNT), de composição tripartite, com o objetivo de promover a democratização das relações de trabalho e atualizar a legislação trabalhista, tornando-a mais compatível com as novas exigências do desenvolvimento nacional, de maneira a criar um ambiente propício à geração de emprego e renda.

Em março de 2005 o relatório final da Comissão de Sistematização do FNT deu origem à PEC 369 e um projeto de lei, que foram enviados ao Congresso Nacional. A proposta admitia a pluralidade sindical em todas as instâncias (a opção do tipo de sindicato que se queria ficava a cargo das assembleias das entidades) e falava de critérios para definir a representatividade das entidades sindicais.

Pela primeira vez se propunha o reconhecimento legal das centrais sindicais como instância máxima de representação dos trabalhadores; o direito de constituir suas entidades sindicais, sem autorização prévia, cabendo ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) o reconhecimento de representatividade da entidade sindical; a sustentação financeira das entidades sindicais de trabalhadores e de empregadores baseada na contribuição associativa e na contribuição de negociação coletiva (anual). Acabava com as contribuições confederativa e assistencial e determinava a extinção gradativa da contribuição sindical obrigatória (imposto sindical), com regras e prazos diferenciados para as entidades sindicais de trabalhadores e de empregadores.

Por fim o FNT criava o Conselho Nacional de Relações de Trabalho (CNRT), concebido como um órgão tripartite e paritário voltado às questões sindicais e de relações de trabalho.

O reconhecimento das centrais sindicais veio finalmente em 2008, com a aprovação da Lei nº 11.648, que definiu as condições para o reconhecimento da central sindical em termos de quantidade de afiliados, presença geográfica e piso mínimo 7% (sete por cento) do total de empregados sindicalizados em âmbito nacional.

No artigo 3º determinou que a indicação pela central sindical de representantes nos fóruns tripartites, conselhos e colegiados de órgãos públicos em que participe deve ser em número proporcional ao índice de representatividade previsto na lei. O critério de proporcionalidade, bem como a possibilidade de acordo entre as centrais, não poderá prejudicar a participação de outras centrais sindicais que atenderem aos requisitos estabelecidos.

A Lei nº 11.648 representou um avanço rumo a uma estrutura sindical mais democrática no Brasil, mas não alterou o sistema de financiamento sindical. Frente às divergências sobre a mudança, a lei determinou em seu artigo 7º que enquanto não fosse disciplinada a contribuição negocial, vinculada ao exercício efetivo da negociação coletiva e à aprovação em assembleia geral da categoria, continuariam em vigência os artigos 578 a 610 da CLT, que regulam o imposto sindical. Além disso incluiu as centrais sindicais como uma das destinatárias do imposto (10% do montante) e a distribuição atenderia ao grau de representatividade, após aferição realizada pelo MTE.

Em outubro de 2015 o deputado federal Paulo Pereira (também presidente da Força Sindical) propôs a criação de uma Comissão Especial sobre Financiamento da Atividade Sindical, alterando cinco artigos da CLT. Depois de audiências estaduais e reuniões com as centrais sindicais, confederações patronais, Ministério Público e outras representações, o deputado Bebeto (PSB-BA), relator do projeto, apresentou a versão final (no dia 08/07/16) do relatório, o Projeto de Lei (PL) 5.795/2016.

O PL mantém a contribuição sindical e cria a contribuição negocial, cujo valor será definido em assembleia na época de negociação da convenção coletiva, não podendo ultrapassar o teto de 1% da remuneração bruta anual (trabalhadores e empresas). Desse total 80% irá para os sindicatos, 5% para a federação correspondente, 5% para a confederação e 5% para a central sindical.

Outra proposta foi a criação do Conselho de Autoregulação Sindical, uma organização não governamental destinada a fixar parâmetros mínimos sobre temas como eleições sindicais, mandato e transparência de gestão, prestação de contas e certificação, fundação e registro de ente sindical, definição de bases territoriais e de representação de categoria. Receberá 2,5% do volume arrecadado com a Contribuição Negocial.

O Conselho de Autoregulação será formado por duas Câmaras de trabalhadores e de empregadores. E terá uma composição paritária no seu funcionamento pleno.

A Câmara de Trabalhadores será composta por seis representantes de centrais sindicais que atendam os requisitos de representatividade do artigo 2º da Lei nº 11648/2008 e três representantes de confederações de trabalhadores, dentre as legalmente reconhecidas, indicadas de comum acordo dentre elas.

Por fim, o PL 5.795/2016 estende a contribuição sindical ao setor público e determina critérios para a liberação de dirigentes sindicais nesse segmento.

Fortalecer a representação dos trabalhadores
Optamos por fazer um relato dos antecedentes da discussão sobre o financiamento sindical, para que haja ciência das mudanças profundas que a CUT estará assumindo ao apoiar o PL 5.795/2016 tal como está.

O recuo não se dá somente pela manutenção da contribuição sindical e adição da contribuição negocial, mas principalmente pela criação de um organismo como o Conselho de Auto-regulação, que tem sérios problemas em sua própria gênese. Primeiro, trata-se de um organismo não governamental (bi-partite) sem poder de impor suas diretrizes a toda a estrutura sindical, somente às centrais filiadas. O que geraria mais confusão e divisões no meio sindical. Segundo, as dificuldades e riscos de se discutir e decidir sobre temas trabalhistas e sindicais em uma estrutura compartilhada com os empresários. Obviamente esse organismo teria que adotar o consenso como mecanismo de decisão, o que significa ficar paralisado pela impossibilidade de acordo.

Mas principalmente a composição do Conselho pode significar um retrocesso para a CUT, que abre a mão de sua representatividade, passando a ter o mesmo peso que as centrais menores. Isso sem contar com a revitalização do "sistema confederativo" ao incluir na Câmara de Trabalhadores a representação das confederações oficialmente reconhecidas.

Se analisarmos a história recente da CUT veremos que esta sempre propôs que a representação das entidades sindicais nos diferentes fóruns fosse proporcional ao seu tamanho e sempre se opôs ao funcionamento dos conselhos federativos e confederativos, onde cada entidade valia um voto, fosse qual fosse sua representatividade. A CUT sempre demonstrou que essa forma de representação rebaixa o poder político da maioria e não fortalece a democracia.

Devemos relembrar que pouco antes do afastamento da Presidente Dilma foi publicado um Decreto presidencial regulamentando o Conselho Nacional de Relações de Trabalho (CNRT), instância tripartite que vem funcionando desde 2012 e que tem entre suas funções tratar temas como esses. Como ficará o CNRT, organismo criado com nossa participação, depois da criação do Conselho de Autoregulação?

Mas o mais importante comentário que queremos fazer é sobre a falta de oportunidade do debate sobre a contribuição sindical e negocial nesse momento político tão difícil, quando os direitos trabalhistas e sindicais estão sob forte ataque do governo golpista e do Congresso conservador.

O país atravessa uma crise que acumula perda de postos de trabalho (já são 11 milhões de desempregados) e as medidas econômicas anunciadas vão na direção de um ajuste neoliberal. Temos que lutar contra a reforma restritiva da Previdência; contra a regulamentação da terceirização em atividades fim; contra a flexibilização da jornada de trabalho e dos salários; contra o fim da ultratividade das cláusulas negociadas nos convênios coletivos; contra a prevalência do negociado sobre o legislado e outras questões legislativas.

Temos que lutar contra a privatização do patrimônio público, começando pelo Pré sal, pelos Correios e outros ativos e, principalmente, temos que lutar pela recuperação da democracia derrotando o golpe de abril.

Tudo isso coloca para a CUT uma enorme responsabilidade, a de convidar todas as entidades sindicais e os movimentos sociais para uma luta conjunta e não aceitar retrocessos.

Agora é o momento de fortalecer uma frente democrática e fazer uma articulação com parlamentares que defendam os trabalhadores para que documentos como o programa Ponte para o Futuro não sejam aprovados e os direitos individuais e coletivos sejam fortalecidos.

Não é hora e nem o momento de retroceder politicamente aceitando uma diminuição de sua representatividade e muito menos é hora de gastar a energia sindical em debates sobre medidas que enfraquecem a representação política dos trabalhadores.


(*) Sindicalista. Texto publicado originalmente no portal 247: http://www.brasil247.com/pt/colunistas/jacyafonso/249758/A-hora-%C3%A9-de-lutar-por-direitos.htm

Estado mínimo leva à economia política da corrupção



Publicado em Terça, 19 Julho 2016 13:29

Marcio Pochmann*

Se entendida simplesmente por deterioração do interesse com o bem comum, a corrupção não deveria ser considerada como parte intrínseca à natureza humana, incapaz de ser superada. Há sociedades com mais ou menos sinais de corrupção – seja social, descrita, por exemplo, pela criminalidade e prostituição, seja no setor público por subornos, informações privilegiadas, desvios de recursos e outras formas.

A maior transparência na gestão pública, com regulação, fiscalização e monitoramento eficientes, bem como decentes controles políticos, sociais e culturais, tendem a assegurar menor risco à corrupção. Nas sociedades capitalistas, de modo geral, a centralidade do enriquecimento e consumo é difundida, tendo a vantagem de alguns sendo interposta sobre a desvantagem de outros.

É claro que para o pobre o consumo se coloca no primeiro momento enquanto atendimento das necessidades básicas, ao contrário dos segmentos de renda intermediária e ricos. Por conta disso, as desigualdades sociais no capitalismo implicam formas de corrupção de natureza distinta entre as sociedades.

Além disso, os fundamentos capitalistas assentados na existência de mercados competitivos e na propriedade privada dos meios de produção e, por consequência, o sistema de preços dos bens e serviços, tendem também a se contaminar pela corrupção. Isso porque a transformação das estruturas de mercados ao longo do tempo, de livre competição no passado para oligopolista nos dias de hoje, asfixia cada vez mais os mecanismos de controle da corrupção.

Com menos competidores, não apenas no espaço nacional, mas sobretudo pela ação das corporações transnacionais no plano global, a prática dos cartéis privados se generaliza consubstanciada pelas ligações perigosas com os partidos políticos, especialmente nos financiamentos das campanhas eleitorais. Inúmeros casos têm sido divulgados pelos meios de comunicação no mundo.

Com a propriedade privada dos meios de produção e a distribuição tão concentrada, aliada à estrutura oligopolizada dos mercados, a busca de vantagens competitivas avança para dentro dos orçamentos públicos como elemento diferenciador da corrupção moderna.

Em decorrência, o sistema democrático de escolhas públicas ameaça perder consistência e credibilidade, tendo o poder econômico maior influência não apenas na determinação do resultado eleitoral, mas sobretudo na condução das políticas públicas.

Nas eleições, programas de governos são debatidos com a sociedade, porém após o resultado eleitoral deixam, muitas vezes, de ser aplicados, especialmente quando atentam contra os interesses principais do poder econômico dominante. Diante de um sistema econômico operado cada vez mais por poucas e gigantescas empresas de dimensão global, a corrupção pode ser vencida com mais Estado, não menos.

Certamente um Estado distinto do atual, corroído por lobbies e lógicas privadas de favorecimentos particulares, que o distanciam do bem comum. Com menos Estado, conforme pretende o receituário neoliberal, a economia política da corrupção tende a seguir intocável.

(*) Marcio Pochmann é economista e político brasileiro


 Fonte : Diap

Impeachment: Julgamento Político com Balizas Jurídicas



Publicado em Sábado, 16 Abril 2016 09:23
 

Jean Keiji Uema*

O processo de impeachment está previsto constitucionalmente para que se responsabilize, com a perda do mandato mais inabilitação para exercer função pública por oito anos, o Presidente da República, assim como outras altas autoridades políticas e judiciais, em face do cometimento de algum ato caracterizado como “crime de responsabilidade”, assim definido em lei.

Trata-se de um juízo exarado pelo Congresso Nacional sobre a responsabilidade política do Presidente da República. Bem por isso o Ministro Celso de Mello ressalta que, mesmo comprovada a “culpa jurídica”, ainda assim pode haver um juízo político de absolvição no Congresso.

Isso não quer dizer, contudo, que esse julgamento político não tenha que observar balizas jurídicas, notadamente aquelas definidas na Constituição. Isso fica claro, por exemplo, com a obediência obrigatória às regras processuais constitucionais que exigem dois terços dos votos tanto para a admissão da acusação pela Câmara (caput do art. 86), como para o julgamento pelo Senado (parágrafo único do art. 52). Outras regras constitucionais já exigiram pronunciamentos do Supremo sobre a sua mais adequada aplicação, como aquelas relativas ao papel de cada Casa do Congresso no processo de impeachment (julgamento da ADPF 378).

Desse modo, fica claro que os artigos constitucionais sobre o processo de impeachment possuem carga normativa suficiente para pautar a atuação dos parlamentares, servindo-lhes como limite, inclusive; ao tempo que tornam sindicáveis judicialmente os atos legislativos na questão. 

Assim, surge uma questão central colocada no caso presente: para que seja juridicamente possível do ponto de vista constitucional, o julgamento político feito pelo Congresso deve ser precedido de comprovaçãoda prática e da ocorrência de um ato ilegal que se caracterize como crime de responsabilidade, conforme definido na Constituição (art. 85) e na Lei (Lei nº 1.079/50).

Esse comando constitucional é explícito no art. 85. Pela sua importância cabe a transcrição:

“Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

I - a existência da União;

II - o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação;

III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;

IV - a segurança interna do País;

V - a probidade na administração;

VI - a lei orçamentária;

VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais.

Parágrafo único. Esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento.”

Essa é a advertência da Constituição: o Presidente da República, eleito diretamente pelo voto popular (cláusula pétrea), poderá ser submetido ao processo de impeachment, o que poderá inclusive resultar na perda de seu cargo, se, e somente se, cometerem ato tipificado como crime de responsabilidade, assim definidos na lei ordinária especial.

A prática do crime de responsabilidade, pressuposto para o julgamento político que cabe ao Senado Federal (art. 86 da CF), não ficou demonstrada no relatório da comissão especial instaurada para apurar se a denúncia aceita pelo Presidente da Câmara dos Deputados contra a Presidente da República poderia prosseguir.

Essa é a ressalva que está sendo feita para evidenciar a natureza antijurídica da acusação e do relatório apresentado pelo relator na Comissão especial, mesmo sem considerar aquilo que ilegalmente foi acrescentado pelo Relator em seu relatório, conforme decidiu na data de ontem o Supremo Tribunal Federal em julgamento de mandados de segurança (34.130 e 34.131).

Os fatos admitidos para embasar a acusação – as chamadas pedaladas fiscais referentes a subvenções referentes ao Plano Safra e a edição de decretos de crédito suplementares – não configuram crime de responsabilidade. Essa tipificação não restou demonstrada. Pelo contrário, tem sido afastada em diversos pareceres e posicionamentos de juristas.

Em verdade, a abertura dos créditos suplementares ocorreu em estrita observância às regras que disciplinam a matéria, notadamente o art. 167, inciso V, da Constituição e o art. 4º da Lei nº 13.115/2005.

Advirta-se, ainda, que a edição dos decretos se sustenta em pareceres técnicos e jurídicos que os recomendavam, bem como configuram prática consolidada da Administração em governos anteriores e em outros Estados da federação, além de encontrar guarida também na jurisprudência do Tribunal de Contas da União que vigorou até o entendimento firmado em outubro de 2015, pois a mudança da interpretação do TCU se deu apenas no Acórdão 2.461, posteriormente à edição dos decretos em julho e agosto de 2015.

Uma questão nesse ponto é central. A existência do fato típico e a formação da culpa jurídica, ou pelo menos a indicação clara da ocorrência desses pressupostos constitucionais, deveriam estar pelo menos evidenciadas na admissibilidade da acusação. Sem essas evidências, a abertura do procedimento, como ocorreu no caso, caracteriza desvio de finalidade e abuso de poder pela explícita falta de justa causa.

Cabe relembrar que no caso do impeachment do Collor a autorização do processo pela Câmara e o julgamento do processo pelo Senado foram precedidos de uma Comissão Parlamentar de Inquérito que apurou e colheu provas: cheques fantasmas do esquema PC Farias pagavam despesas pessoais do Presidente da República. No presente, não há sequer procedimento administrativo, parlamentar ou judicial que evidencie ou indique a prática e a ocorrência do necessário crime de responsabilidade, o que torna ainda mais difícil qualquer discussão sobre o dolo da Presidente.

Ao contrário, as contas de 2015 sequer foram julgadas pelo órgão competente – o TCU. E como se disse, os atos foram aprovados e recomendados por diversos pareceres administrativos que gozam da presunção de legitimidade. Pergunta-se: e se esses atos forem aprovados? Restitui-se um mandato porventura inconstitucionalmente cassado?

Daí decorre a temeridade de se permitir um julgamento político sobre fatos que juridicamente não restaram caracterizados como crime de responsabilidade. Isso, obviamente, macula e vicia o processo, tornando-o arbitrário do ponto de vista constitucional.


(*) Jean Keiji Uema – Analista Jurídica do Supremo Tribunal Federal, Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP.

Fpnte : DIAP

Observações sobre a reificação

"Sem a experiência de que o outro indivíduo seja um próximo/semelhante, nós não estaríamos em condições de dotá-lo com valores morais que controlam ou restringem o nosso agir; portanto, primeiramente precisa ser consumado esse reconhecimento elementar, precisamos tomar parte (Anteil nehmen) do outro existencialmente, antes de podermos aprender a orientar-nos por normas do reconhecimento que nos intimam a determinadas formas de consideração ou de benevolência." Axel Honneth


HONNETH, Axel. "Observações sobre a reificação". Tradução de Emil Sobottka e Giovani Saavedra. In:_____. Civitas. Porto Alegre, v. 8, n. 1, jan.-abr. 2008, p. 73.