quarta-feira, 20 de novembro de 2019

A capacidade de constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula”


. Entrevista com Vladimir Safatle

Em análise sobre a crise da esquerda e as conjunturas brasileira e chilena, o filósofo Vladimir Safatle é enfático ao criticar o Estado Brasileiro e a violência por ele perpetuada conta sua população. Para ele, "O Estado brasileiro tem como única função operar em graus inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no extermínio, no desaparecimento, é um Estado baseado nas formas mais brutais de morte sem sepultura que você possa imaginar; e isso como prática normal de governo. A prática normal de governo no Brasil é essa".
Segundo professor, para renovar a política, é necessária a "constituição de novos horizontes", algo que, conforme aponta Safatle, a esquerda não consegue fazer porque a "capacidade de constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula". Além disso, Safatle também avalia que a crise chilena se dá em virtude do processo de acumulação primitivo gerado pelo modelo neoliberal.
Professor na USP, o filósofo comenta seu último livro, Dar corpo ao impossível: O sentido da dialética a partir de Theodor (São Paulo: Autêntica, 2019), e explica que a obra tem como finalidade "mostrar as estruturas dinâmicas da dialética negativa que podem orientar, ainda no presente, uma reflexão crítica a respeito do existente, a respeito das possibilidades de transformação, a respeito das dinâmicas gerais de movimento dentro do nosso processo histórico, da nossa sociedade".
A entrevista é de Edison Urbano, publicada por Ideias de Esquerda, 17-11-2019.


Eis a entrevista.
Pode começar nos falando um pouco sobre seu último livro, “Dar corpo ao impossível”? Em que sentido você vê a importância do resgate da dialética para entender e atuar no mundo de hoje? Qual a relação disso com a ideia do “dar corpo”, que está no título?
Acho que a dialética é uma das figuras fundamentais do pensamento crítico, que ainda guarda muito de sua atualidade, especialmente em sua última tradição, que é a dialética negativa adorniana.
A ideia fundamental do livro era mostrar as estruturas dinâmicas da dialética negativa que podem orientar, ainda no presente, uma reflexão crítica a respeito do existente, a respeito das possibilidades de transformação, a respeito das dinâmicas gerais de movimento dentro do nosso processo histórico, da nossa sociedade. “Dar corpo” vem muito do fato de insistir que a dialética é uma teoria da realização dos impossíveis, de uma certa forma, da incorporação dos impossíveis; esse é um dos elementos fundamentais da sua dinâmica transformadora: sair de uma teoria aristotélica do movimento, baseada numa ideia do par “possível” e “atual”, “potência” e “ato”, para uma teoria mais elaborada, na qual aquilo que, para uma situação atual, é impossível, acaba sendo o embrião fundamental de uma outra forma.
Isso leva a uma segunda pergunta que queríamos fazer. No livro, você propõe um resgate do pensamento de Theodor Adorno, um teórico geralmente associado ao pessimismo histórico ou até ao ceticismo quanto à luta de classes e a revolução social. No entanto, a apropriação de Adorno que o livro propõe se afasta dessa leitura e parece sugerir quase um “Adorno revolucionário”, talvez. Até que ponto, em sua visão, a interpretação corrente recai em incompreensões ou lacunas sobre os textos de Adorno, ou em que medida seria de fato uma (re)interpretação criativa aquela que você propõe?
Olha eu diria o seguinte, essa interpretação mais usual de uma espécie de Adorno conservador, se podemos dizer assim, é muito fruto dos fantasmas que assombram a sociedade alemã, com a crença atávica e necessária numa espécie de pacto geral produzido pelo Estado e traduzido pela economia social de mercado, pelo “Estado de bem-estar social”, e com o colapso desses dispositivos de gestão social, a função que os intelectuais tiveram dentro desse horizonte, ao serem simplesmente uma espécie de portadores um tanto nostálgicos da recuperação desse modelo, muito vinculado a uma dinâmica que não é nem social-democrata, é uma dinâmica social-democrata/democracia-cristã. Aí, de uma certa forma, seria importante para esses intelectuais que o Adorno aparecesse como um niilista, como um derrotista, alguma coisa dessa natureza.
O que eu acho que está longe, mas muito longe de ser verdade, é alguém que em momento algum abandona o horizonte de transformação revolucionária como elemento normativo fundamental do pensamento. O que ele faz é compreender a complexidade da efetivação desse processo dentro da situação que ele viveu, que era o momento dos 30 gloriosos, o momento um pouco áureo dos modelos de coalizão e consenso dentro da democracia liberal. Ele insiste um pouco no colapso da constituição dos sujeitos históricos, vinculados à classe operária, ao proletariado… o que não significa de maneira nenhuma que ele abra mão, isso que eu queria dizer: compreender a complexidade do processo não significa você abrir mão dele. É isso que ele faz: quais são as condições para que uma dinâmica revolucionária realmente se realize no interior das sociedades ocidentais, esse é um problema fundamental para o Adorno. Eu desafio qualquer pessoa que o leia de fato com interesse a provar o contrário.
Compreender a complexidade do processo não significa você abrir mão dele. É isso que Adorno faz: quais são as condições para que uma dinâmica revolucionária realmente se realize no interior das sociedades ocidentais – Vladimir Safatle
Passando já então para o nosso segundo bloco, que é mais internacional, a primeira pergunta parte de constatar que estamos diante de um cenário extremamente dinâmico na América Latina, com grandes revoltas de massas como as do Equador e agora no Chile, e tentativas de golpe de direita, como vimos também agora na Bolívia. Como você analisa esses processos? Considera pertinente a hipótese de que o processo dos Coletes Amarelos na França, no final do ano passado, abriu um novo período para formas novas de expressão da luta de classes?

É, eu não sei se o marco são mesmo os Gilets Jaunes [Coletes Amarelos] franceses, acho que é um processo que vem na verdade, desde a Primavera Árabe, que vai se consolidando de uma forma paulatina como uma dinâmica animada por lutas de classes; agora, eu acho que na verdade o que faz o ponto de viragem é o movimento chileno, que aí fica muito explícito. É claro que há questões econômicas muito profundas na pauta dos franceses, mas no caso dos chilenos você tem as pautas econômicas e a exigência de uma transformação social radical, uma transformação institucional radical e uma articulação transversal das lutas, com uma hegemonia muito, muito forte, ligada a pautas de reconhecimento, de opressões, da opressão dos mapuches, de uma outra reconfiguração do vínculo social.
O processo francês foi paulatinamente em direção a isso: como todo movimento de rua, ele começa um pouco com contradições internas, e essas contradições vão se amainando, inclusive com a capacidade que alguns grupos tiveram de conseguir intervir no processo de construção de hegemonia. Mas o que eu acho é que, a partir de agora, a gente tem uma tendência que deve ser explorada de recondução da luta de classes para o centro das lutas políticas, dos processos de mobilização e manifestação; isso seria uma coisa absolutamente fundamental daqui pra frente, para que a gente conseguisse ter uma capacidade não só aglutinadora maior, mas também uma capacidade de transformação efetiva.
A gente tem uma tendência que deve ser explorada de recondução da luta de classes para o centro das lutas políticas, dos processos de mobilização e manifestação; isso seria uma coisa absolutamente fundamental daqui pra frente, para que se conseguir ter uma capacidade não só aglutinadora maior, mas também uma capacidade de transformação efetiva – Vladimir Safatle
 Nós íamos passar para outra pergunta, mas aproveitando então o interesse da questão do Chile, só uma última pergunta, porque uma das demandas que tem sido discutida a partir do movimento, e que o próprio governo Piñera tentou abordar à sua maneira, é a questão da Assembleia Constituinte. Como você vê a relação disso com esse desejo de ruptura institucional que você acabou de comentar?
Eu acho fundamental, fundamental. E é muito engraçado que isso volte, porque esse é o modelo da luta dos islandeses. Os islandeses fizeram suas lutas contra os pactos financistas ligados às receitas do Fundo Monetário Internacional, e uma questão fundamental é uma nova Assembleia Constituinte, uma nova Constituição. Porque eles percebem que a crise não é só econômica, a crise é política também, a questão fundamental é que tipo de regime político é esse que permite uma crise econômica dessa natureza. Que não é exatamente uma crise, diga-se de passagem, é simplesmente uma nova volta do processo de acumulação primitiva. O caso islandês é um caso clássico, porque eram quatro bancos que tinham dívidas enormes fora do país e que diziam que agora o estado socializasse suas dívidas, preservando sua dinâmica de acumulação.
E o caso chileno, bem, é a crítica a um processo de concentração que é o elemento fundamental do horizonte neoliberal, o qual não é exatamente uma forma de gestão social, é uma forma de recolocar no centro do processo econômico uma dinâmica de acumulação primitiva. Então eles percebem que, se isso aconteceu, é porque você tem uma estrutura política que não é imune a isso, que é completamente permeada por esse tipo de pressão, então é necessário você quebrar institucionalmente o processo que garante isso, e reconstituir a institucionalidade da vida nacional.
Recentemente, você fez comparações, em artigos e palestras, entre a esquerda brasileira e figuras como Jeremy Corbyn e Bernie Sanders. E, em outra chave, também fez uma colocação que repercutiu bastante, sobre a necessidade de “dividir, para depois poder unir”. Pode falar um pouco de como analisa esses personagens do cenário internacional, Corbyn e Sanders, que aparecem como contraponto a uma onda de direita e extrema-direita que vinha, e resgatar para os nossos leitores o sentido daquela comparação com a esquerda brasileira?
Veja que vergonha, onde a esquerda brasileira chegou? Um candidato do Partido Democrata e o líder do Partido Trabalhista, estão a anos-luz de radicalidade de qualquer partido ou de qualquer organização da esquerda brasileira – Vladimir Safatle
 Então, essa discussão, não é que eu reconheça o Bernie Sanders e o Corbyn como uma espécie de horizonte normativo para as lutas da esquerda mundial, não era isso. Era simplesmente para insistir: veja que vergonha, olha que coisa pavorosa, onde a esquerda brasileira chegou? Um candidato do Partido Democrata e o líder do Partido Trabalhista, estão a anos-luz de radicalidade de qualquer partido ou de qualquer organização da esquerda brasileira que seja minimamente relevante eleitoralmente. Acho que é uma questão a se pensar: pega o programa do Sanders, ele tem tópicos que ninguém na esquerda brasileira, ninguém, nem PT, nem PSOL, nem nada, chegou sequer a cogitar colocar como programa. Por exemplo, a ideia de que 20% das ações de todas as empresas devem ser dispostas para os trabalhadores; de que os boards [conselhos de administração] das empresas devem ter pelo menos metade de trabalhadores na sua constituição; leis de restrição a concentração e oligopólio financeiro, nada disso tem nenhum programa brasileiro; ou o programa ecológico do Corbyn…
Para um país que passou por três catástrofes ambientais em um ano, catástrofes monstruosas, você tem um autismo ecológico da esquerda que é uma coisa inacreditável. Então é simplesmente para dizer: o Brasil é um país onde até a esquerda radical é moderada, então isso deve ser realmente pensado, no sentido forte do termo. Aí o que acontece, quando a gente tem uma situação de radicalização como agora? A esquerda é a primeira a fazer um horizonte legalista, um horizonte de frente ampla, de defesa da democracia…
Esse é um horizonte que é o horizonte clássico, tradicional da política brasileira, se você pega, por exemplo, o Marighella falando do papel do PCB nos anos 40 e 50, ele vai fazer o mesmo tipo de crítica: vocês entraram numa lógica aliancista, de aliança com setores ditos progressistas da burguesia, que só conseguiu travar qualquer possibilidade de auto-organização da classe trabalhadora. E é isso que vai acontecer de novo, na verdade, vai acontecer uma coisa ainda pior, vai acontecer uma coisa como a que ocorreu na Itália: todo mundo se organiza contra o Berlusconi, você vai criando uma massa completamente indigesta e indiferenciada, e no final das contas quando o Berlusconi cai ainda aparece um sujeito mais radical, que é o único que fez política, enquanto os outros ficam lá tentando reagir, ou resistir, ou qualquer coisa que o valha. Eu temo que esse é o verdadeiro modelo da esquerda brasileira.

O Brasil é um país onde até a esquerda radical é moderada, então isso deve ser realmente pensado, no sentido forte do termo – Vladimir Safatle
Passando para o nosso último bloco, que é justamente sobre o Brasil. Em primeiro lugar, saber como você tem analisado o próprio governo Bolsonaro e suas principais medidas.
Eu diria o seguinte, o governo Bolsonaro faz tudo certo. Infelizmente, se tem alguém que sabe fazer política nesse país, é o Bolsonaro. Dentro da lógica dele, ele fez tudo correto: chamá-lo de inepto, de inapto, é simplesmente uma espécie de delírio de superioridade moral e intelectual que acomete a esquerda nesses momentos dramáticos. Ele sabe que o Brasil é ingovernável, que não é possível governar o Brasil, não nesse modelo. E ele faz um pouco a velha dinâmica “eu contra todos”: eu estou no governo, mas eu não consigo governar; não consigo, porque o Supremo Tribunal não deixa, porque o Parlamento não deixa, porque meu partido não deixa, porque a imprensa não deixa, porque ninguém deixa. Ou seja, isso lhe permite entregar muito pouco, e ainda continuar mobilizando um setor fundamental da sociedade, que é mais ou menos 30%, e que se consolidou ideologicamente em torno dele, ou seja, ele conseguiu criar um bastião ideológico.
Esses 30% não vão cair, porque eles têm uma adesão ideológica, no sentido tradicional do termo, toda a pauta ideológica, neofascista, de extrema-direita, ele conseguiu consolidar. Então o que ele faz? Ele espera um momento de ruptura, porque ele sabe que esse momento vai vir, ele sabe que você vai ter… você vai vendo, as convulsões sociais à sua volta, uma hora isso vai chegar no Brasil. E ele já está preparado para isso, e a esquerda não está preparada. Ele está preparado, porque ele vai fazer duas coisas, ele vai agir de uma forma brutal, como já tem dito, e ele vai dizer: “olha, eu preciso fortalecer o governo, porque tem um caos, e eu nunca consegui governar porque todas essas instituições me atrapalharam, e a situação agora é uma situação excepcional, então agora a gente vai partir para uma experiência ditatorial mais explícita”; é isso, esse é o seu horizonte.
Pegando um aspecto específico do governo, que se liga a uma ideia que está presente em algumas das suas últimas palestras: como você vê o Sérgio Moro, que veio da operação Lava Jato e, agora, com esse pacote anticrime, qual a relação dele com esse projeto, e na verdade, talvez mais amplamente, aquela ideia que temos visto em algumas colocações suas, de que aos olhos do próprio Estado no Brasil existe uma separação na sociedade entre os brasileiros “matáveis” e os “não-matáveis”. Como se relaciona com esse pacote anticrime do Moro e com a crítica da transição pós-ditadura que a gente teve aqui no Brasil?
Bom, a primeira coisa é que o Moro é uma peça fundamental de todo esse processo, ele é o segundo na linha sucessória, assim que o Bolsonaro cair ele, vai estar à frente, então você já tem uma linha sucessória em operação desde o início. Os seus interesses eleitorais são explícitos. Ele é uma figura própria das tragédias mais sórdidas de Shakespeare, é uma coisa da ordem do Eduardo II, um sujeito que na verdade se serve da posição de juiz para prender o candidato que poderia ocupar o cargo que ele quer ocupar. Tudo que ele fez foi porque ele quer ser presidente da República, é uma coisa próxima do inimaginável. Agora, é claro, a despeito dessas questões da ordem dos interesses pessoais, é claro que ele expressa de uma maneira muito clara a natureza necropolítica, necrofascista, do Estado brasileiro. O seu pacote é muito evidente nesse sentido.
O Estado brasileiro tem como única função operar em graus inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no extermínio, no desaparecimento – Vladimir Safatle
O Estado brasileiro tem como única função operar em graus inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no extermínio, no desaparecimento, é um Estado baseado nas formas mais brutais de morte sem sepultura que você possa imaginar; e isso como prática normal de governo. A prática normal de governo no Brasil é essa. Independentemente de qual seja o partido, isso nunca mudou, pode ter ficado mais explícito em alguns momentos, ou mais implícito em outros momentos, mas era uma questão de visibilidade, não era uma questão de mudança de práticas.
Então se tem alguma coisa que é necessário fazer nesse país é quebrar a máquina necropolítica do Estado brasileiro, que opera cotidianamente, que teve na sua experiência ditatorial a consolidação do seu aparato institucional, a consolidação das polícias militares, as práticas ostensivas de tortura, as operações punitivas nas periferias, os assassinatos a esmo, como forma de gestão do medo social; todo esse tipo de coisas que nós conhecemos muito, muito bem, e preferimos não lembrar. Ele [Moro] é a expressão máxima disso, a expressão descomplexada disso. Então, de fato, de todos os personagens talvez ele seja de fato o pior. E é claro que esse pacote anticrime entra nesse horizonte onde você tem medidas econômicas que são medidas concentracionistas, são medidas econômicas de destruição de qualquer possibilidade de resistência econômica da classe trabalhadora, e é claro que eles sabem fazer contas, sabem que isso produz conflito social. Então por isso que vai uma medida junto com a outra, vai o aprofundamento da estrutura destruidora do Estado brasileiro junto com essas medidas econômicas.
Chegando a nossa última pergunta. É comum ouvir discursos vindos dos próprios centros dirigentes da esquerda brasileira de que não há lutas mais radicalizadas até o momento, apesar dos enormes motivos para tal, porque os trabalhadores e o povo não querem. Em certa medida esses setores terminam se apoiando num senso comum, elaborado ideologicamente pelas classes dominantes, do mito do brasileiro pacífico e cordial. E esse é um dos elementos sobre o qual a esquerda brasileira tradicional se apoia para projetar nos trabalhadores e no povo uma passividade que é criada por ela. Como você avalia isso hoje, frente a fatos como a soltura do Lula e as esperanças eleitorais que isso deflagra? E como romper esse ciclo de passividade e conciliação e abrir caminho para uma alternativa de esquerda distinta?
Olha, esses setores da esquerda tradicional, eles são cúmplices de todo o aparato de violência que produz essa ilusão de passividade, porque eles no governo não fizeram nada, absolutamente nada para desmontá-lo. Ao contrário, eles deixaram isso operar e eles se aproveitaram dessa situação. Então eles são parte do problema, eles não são parte da solução. Porque falar uma coisa dessas é de uma demência absoluta, porque na verdade o que acontece é que você tem uma população que… bem, eu sugiro o seguinte: suba o Complexo do Alemão, e você vai poder encontrar barricadas nas ruas contra os caveirões da polícia, você vai poder ouvir as mães de filhos assassinados dizendo do tipo não só de assassinato a seco, mas também a humilhação cotidiana mesmo com os filhos assassinados, você vai poder encontrar balas de fuzil nos tetos, que mostram cotidianamente o que ocorre, daí você vai entender por que o povo não se revolta; talvez aí eles consigam entender um pouco quando eles perceberem o grau de política de extermínio ao qual essa população está submetida…
Talvez eles possam entender, então, o que isso significa. E mesmo assim, ao contrário: esse povo se revolta, eles fazem mobilização, eles fazem manifestação, eles desafiam a polícia, eles desafiam as milícias, eles desafiam o tráfico, então isso, até do ponto de vista moral, é uma das coisas mais ignóbeis que se possa falar do povo brasileiro. Porque o povo brasileiro é um povo de uma história, que é uma história de luta contínua.
Agora, é claro, eles precisam desse tipo de coisa para poder justificar sua própria inércia, para poder justificar seu próprio modelo de compreensão de luta política, que é uma luta política própria da Nova República; são as lutas palacianas, são as lutas florentinas, são as lutas dos conchavos, são as lutas dos processos eleitorais travados. Porque são processos eleitorais em que você vai tendo certas coalizões que são feitas para te travar, para depois você entrar no governo e falar “olha, eu não posso fazer nada porque a correlação de forças não me permite”, todo esse tipo de coisa.
A política não vive de resistência, ela vive da constituição de novos horizontes, e a capacidade de constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula – Vladimir Safatle
Isso está insuportavelmente jogado na cara do povo brasileiro há décadas, então eu diria o seguinte: a gente precisa lembrar de uma outra história da esquerda brasileira, que não é essa história do populismo de esquerda que nos assombra desde os anos de 1940, desde um certo alinhamento da esquerda brasileira com o varguismo, e que continuou, continuou com o petismo, e tende a continuar, infelizmente. Eu diria que a gente precisa recuperar uma outra história, que é uma história de radicalização e de luta; que é constitutiva da nossa experiência. E compreender que o que aconteceu no Brasil nesses últimos anos foi o colapso desse modelo populista de esquerda.
Entrando agora na questão sobre a soltura do Lula, porque o Lula é a expressão máxima disso: o que o Lula faz é exatamente o que as figuras dentro desse modelo de corporação social fazem, ele vai tentar articular alianças, ele vai fazer aquele tipo de promessas contraditórias: ele promete pra você uma coisa, vai prometer pra você radicalização, vai prometer pro outro moderação; pra você uma mudança de processo econômico, pro outro ele vai dizer que não, não, vamos preservar o parque produtivo; aquela coisa de sempre. E tentar reinstalar e reinstaurar, mais uma vez, isso, é só repetir uma catástrofe. É claro que como você tem desespero enorme da sociedade brasileira diante dessa ascensão neofascista, então o que aparecer as pessoas seguram…
Só que o fato é que a política não vive disso, ela não vive de resistência, ela vive da constituição de novos horizontes, e a capacidade de constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula. E é por isso que ela não consegue sair dessa sua posição defensiva, ela é incapaz de dizer para a sociedade brasileira: “olha, o que a gente quer agora do processo econômico?, o que a gente quer da institucionalidade política?”. A única coisa que ela consegue falar é sobre questões vinculadas a dinâmicas sociais de reconhecimento, que são absolutamente fundamentais, essas questões que dizem respeito à situação de vulnerabilidade e de opressão de vários setores da sociedade brasileira, mas essa é a única coisa que ela consegue colocar na pauta, porque ela não tem coragem de oferecer mais nada, e isso infelizmente não é suficiente.


Repensar o Brasil é uma tarefa fundamental.


 Entrevista especial com Antonio Risério


A tarefa mais urgente para nós, brasileiros, diante de uma das maiores crises políticas que o país enfrenta, é “repensar o Brasil”, diz o antropólogo Antonio Risério à IHU On-Line. Isso significa, explica, “rever com serenidade e lucidez — com conhecimento, acima de tudo — a experiência nacional brasileira. Esta é uma tarefa básica, fundamental. Temos de nos conhecer, em vez de ficar repetindo clichês esquerdistas falsificadores de nossa trajetória no tempo”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Risério denuncia a substituição de uma historiografia nacional baseada em mitos e mistificações, que tentou definir uma “identidade nacional” a partir da colonização portuguesa, por uma nova historiografia encampada pela esquerda brasileira nos anos 1970, em que “o colonizador português era o mal — e o bem se encarnara, aqui, em pretos e índios”. Segundo ele, em sua revisão historiográfica, a esquerda brasileira “se empenhou mal” e “não tratou de realmente encarar, em toda a sua complexidade, a experiência nacional”. Ao contrário, afirma, ela “optou pelo maniqueísmo, pela visão do Brasil como um filme de bandido e mocinho. Então, repetiu a velha história oficial, só que invertendo tudo. Passamos a ter então, basicamente, as figuras do negro sempre luminosamente libertário, do índio ecofeliz e do português genocida”, afirma.

Nesta entrevista, o antropólogo também reflete sobre a crise política brasileira, que tem origem nos “partidocratas”, e assinala que ela é fortalecida pela “polarização extremista entre o autoritarismo de esquerda e o autoritarismo de direita, ambos populistas”. Na avaliação dele, a crise da representatividade política, denunciada pela sociedade nas manifestações de Junho de 2013, já se manifestava na reabertura democrática, porque “de Sarney aos governos petistas, a sociedade foi percebendo gradualmente que as eleições iam se convertendo num rito vazio e que ela, sociedade, não contava para nada na hora da formulação e execução das políticas públicas nacionais”.

Antonio Risério é poeta, ensaísta e escritor. Cursou mestrado em Sociologia com especialização em Antropologia na Universidade Federal da Bahia - UFBA. É autor de, entre outras obras, A casa no Brasil (Rio de Janeiro: Topbooks, 2019), A Cidade no Brasil (São Paulo: Editora 34, 2012), A utopia brasileira e os movimentos negros (São Paulo: Editora 34, 2007), Adorável comunista (Rio de Janeiro: Versal, 2002) e O poético e o político e outros escritos (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988).


Confira a entrevista.
IHU On-Line - O Brasil de hoje, especialmente o campo da esquerda, compreendeu as transformações que ocorreram desde 2013? Quais os desafios para apreender essas transformações em suas complexidades?
Antonio Risério - O problema inicial é que os políticos profissionais, partidocratas, parecem não entender ou não querer entender o próprio 2013. Tivemos uma coisa fundamental ali, que foi a exposição pública da crise da representação partidocrata. Na verdade, de Sarney aos governos petistas, a sociedade foi percebendo gradualmente que as eleições iam se convertendo num rito vazio e que ela, sociedade, não contava para nada na hora da formulação e execução das políticas públicas nacionais. Ou seja, o próprio sistema político se encarregou de corroer a representatividade e fragilizar a democracia. Isso foi escancarado na reeleição de Dilma Rousseff, que foi eleita dizendo uma coisa e, assim que recebeu o resultado das urnas, passou a fazer outra. A população viu então com clareza que o jogo era cínico, manipulador.
2013, ao colocar em questão o sistema político, com a sociedade afirmando que os partidos não a representavam, abriu a possibilidade de virar a página e de que a gente entrasse no capítulo inaugural de uma nova cultura política e um novo sistema de poder. Vale dizer, no capítulo inaugural da construção de uma nova democracia brasileira, coisa que não interessou a Fernando Henrique e a Lula, que tiveram a oportunidade histórica de dar o pontapé inicial nessa partida e não o fizeram. Isso foi sufocado por dois processos, que vieram com a irrupção da Lava Jato e as manobras para depor Dilma, uma trapalhona quase tão confusa quanto Bolsonaro. Com as atenções voltadas para os escândalos da corrupção e do “impeachment”, essa grande discussão política foi adiada. Na campanha presidencial de 2014, todos os candidatos evitaram 2013. Mas parece difícil rasurar do mapa o que aflorou ali. Na época, Marco Aurélio Nogueira disse algo mais ou menos assim: estava em marcha uma espécie de revolução sem revolução, com a sociedade ultrapassando o sistema político e pondo em xeque o partidocratismo. O que ficou claro ali era que as pessoas não se contentariam com uma reforma política pontual, com cláusulas de barreira, listas fechadas, tipos de voto. O que esteve na origem das movimentações de 2013 foi coisa distinta. O que se defendeu, de modo breve, mas nem por isso irrelevante, foi a necessidade de configuração de uma nova cultura política brasileira. Uma política de militância cidadã, com a cidadania se constituindo como tendência à autorrepresentação, sem tomar conhecimento do partidocratismo profissional e seus expedientes surrados, apodrecidos. A mudança não aconteceu. Mas o que há é uma reivindicação adormecida, não extinta. Que, mais cedo ou mais tarde, promete voltar acesa ao centro do palco.
IHU On-Line - O senhor tem defendido que é necessário repensar a sociedade e reinventar a nação, mas por onde começar? O que é a sociedade brasileira hoje? Que conceito de nação deve ser forjado?
Antonio Risério - O que tenho dito é o seguinte. Nós tínhamos uma velha história oficial do país, gerada no tempo do império, com [Francisco Adolfo de] Varnhagen e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que respondia a demandas surgidas com a conquista da autonomia nacional em 1822. Essa história forjou um passado brasileiro, quase o criou, mas produzindo mitos e mistificações. Cerca de um século depois, a esquerda brasileira se empenhou numa revisão dessa história. Mas se empenhou mal. Não tratou de realmente encarar, em toda a sua complexidade, a experiência nacional brasileira. Não: optou pelo maniqueísmo, pela visão do Brasil como um filme de bandido e mocinho. Então, repetiu a velha história oficial, só que invertendo tudo. Passamos a ter então, basicamente, as figuras do negro sempre luminosamente libertário, do índio ecofeliz e do português genocida. E isso, gravando-se nos parâmetros curriculares do ensino, no governo de Fernando Henrique, se converteu em práxis escolar, em bombardeio pedagógico, em ideologia historiográfica dominante. Configurou-se, assim, como a nova história oficial do Brasil. Acontece que essa nova história apenas substituiu mentiras antigas por mentiras novas. O negro luminosamente libertário, assim como o índio ecofeliz, são duas empulhações. Havia escravidão — e escravidão pesada, cruel — tanto na África quanto entre nossos índios. Os tupis eram escravistas. A sociedade tupinambá era uma máquina de guerra implacável, destruindo outras sociedades indígenas, tomando-lhes as terras etc. E foi deles que herdamos a agricultura de coivara, as queimadas destruindo o campo.
Palmares contava com escravos — e palmarinos sequestravam mulheres (negras ou brancas), sem perguntar se eram esposas ou mães, para servi-los em termos agrícolas e sexuais. Quanto ao português, não temos de celebrá-lo sem senso crítico, mas também não devemos tratá-lo apenas como um eterno e sistemático malfeitor, porque também isso é mentira. Qualquer pessoa séria, que de fato conheça a história de nosso povo, sabe disso. Mas o que vingou, graças à ignorância generalizada, foi o panfletarismo rasteiro da nova história oficial. É por isso que temos hoje de repensar o Brasil, de rever com serenidade e lucidez — com conhecimento, acima de tudo — a experiência nacional brasileira. Esta é uma tarefa básica, fundamental. Temos de nos conhecer, em vez de ficar repetindo clichês esquerdistas falsificadores de nossa trajetória no tempo.

IHU On-Line - Depois de 2013, foi corrente a afirmação de que o país vivia uma crise política. Hoje, em 2019, essa crise foi superada ou apenas abafada? Por quê? E quais devem ser as consequências num curto e médio prazo?
Antonio Risério - De certa forma, respondi a isso antes. Penso que os dois temas mais importantes de 2013 continuam vivos: a crise representacional do partidocratismo e a reivindicação relativa ao direito à cidade, que então se expressou numa luta contra o aumento do preço da passagem no sistema público de transporte. As pessoas geralmente nem sabem, mas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, cerca de 38% da população brasileira andam a pé por não terem dinheiro para embarcar em nenhum veículo. Tem muito mais gente andando a pé do que em automóvel particular. Afora isso, todas as reclamações que emergiram ali ainda não tiveram resposta. Podemos continuar exigindo educação e saúde no “padrão FIFA”, como então se dizia. Nem Dilma, nem Temer, nem o aluado Bolsonaro alteraram qualquer coisa nesse quadro. Mas podemos acompanhar a incompreensão desde o início. Exemplo vexaminoso disso foi o pronunciamento nacional de Dilma na noite de 21 de junho de 2013, desenhado e orientado da perspectiva do “marketing”. Acuada pelas manifestações, Dilma apelou para o seu marqueteiro, que alinhavou para ela uma fala a meio caminho entre o clichê e o disparate. É suficiente lembrar que ela acenou com coisas como um “plano nacional de mobilidade urbana” (tinha prometido isso na campanha eleitoral de 2010), com o qual nunca se preocupara nem viria a se preocupar. E prometeu uma reforma política estrita, totalmente dentro do padrão partidocrata, tema que as manifestações nem afloraram. Na boa observação de Eugênio Bucci, o pronunciamento “dava respostas contundentes a perguntas que ninguém tinha feito”. E ainda: “O que se deu naquele comunicado foi um dos mais desastrados lances de marketing da história recente do país”. Mas o sistema partidocrata preferiu mesmo fechar os olhos, fazer ouvido de mercador, como se não tivesse sido colocado em questão. Temer e seu guru Moreira Franco tocaram o barco como se o MDB fosse legítimo representante da sociedade brasileira.
O PSDB, tendo à frente a toupeira do Alckmin, o burguesinho mimado do Aécio e um autodegradado Serra, ficou alheio a tudo (acho que só Fernando Henrique sacou o que estava rolando). E assim por diante. Tanto que, quando chegou a campanha presidencial de 2014, todos se comportaram como se 2013 não tivesse existido. E ele de fato ficou abafado pela polarização quase fratricida em torno do “impeachment”, que se acentuou com Bolsonaro. Interessa ao partidocratismo manter isso assim.
Nosso sistema político, nossos partidos e políticos profissionais, hoje, não têm o mínimo preparo para responder a um questionamento dessa natureza. Falar em crise do partidocratismo com Rodrigo Maia e quejandos é realmente falar grego. Mas a esquerda também não consegue ver nem ouvir isso. A primeira reação do PT, diante de 2013, como vimos num daqueles típicos ataques de sinceridade de Gilberto Carvalho, foi falar da “ingratidão” do povo, que recebeu tantos presentes do partido no governo e então, ingratamente, se rebelou. Depois, o PT mudou o discurso. Passou a dizer que, sob Lula e Dilma, o Brasil tinha avançado tanto que passou a ficar mais exigente. Ou seja: 2013 passou a ser visto como um subproduto da boa governação petista, o que é o ridículo do ridículo. Só mais tarde o PT passou a execrar 2013 — o que é mais compreensível, porque aquelas movimentações não se moveram dentro da lógica binária do “nós x eles”, que orienta o pensamento petista. Mas também a Rede, Ciro Gomes etc., ninguém analisou o acontecido, nem tirou qualquer lição dali. A Rede, na verdade, parece querer flutuar acima das conjunturas, fazendo um discurso absolutamente genérico e universal, de modo que tende a se dissolver em pura ou mera fantasia filosófica. Para a extrema direita e Bolsonaro, a coisa é mais simples: a crise do partidocratismo é resolvida pela implantação de uma nova ditadura no país. Mas nós temos a obrigação de pensar em outra direção: a crise do partidocratismo é uma exigência de aprofundamento da democracia, de superação da subdemocracia brasileira.
IHU On-Line - O que leva ao desvirtuamento do sistema político brasileiro? Como nasce a “partidocracia”?
Antonio Risério - Não é uma questão somente brasileira. Na verdade, passei a usar a expressão “partidocratismo” ali pelo final da década de 1970, depois que a li num texto ou num discurso de Pietro Ingrao, que foi dirigente do Partido Comunista Italiano e presidente da Câmara dos Deputados da Itália naquela mesma década de 1970. Não tenho certeza agora, mas acho que Ingrao partia de Gramsci, que falava do perigo de substituir o movimento real da vida social pelo movimento interno da vida partidária. E é isto o que acontece. E tem se acentuado no mundo inteiro. O slogam “não nos representam” apareceu em manifestações espanholas, por exemplo. E foi um grito dos “indignados” no mundo inteiro, ali pela época da chamada primavera árabe. O militante partidário passa a achar que o partido é o centro do mundo, na melhor das hipóteses — e dá as costas à sociedade. Esta cegueira já recebeu até tratamento poético, louvada num texto — esteticamente, bom, mas, em termos políticos e intelectuais, completamente idiota — como “Wir Sind Sie” de Bertolt Brecht. O que podemos dizer é que vivemos uma crise política sem precedentes, no sentido de que ela atinge não um partido ou outro, mas coloca em xeque todo o sistema político estabelecido. Isso ficou arrefecido no Brasil, em função da polarização extremista entre o autoritarismo de esquerda e o autoritarismo de direita, ambos populistas. Mas não se pode ter dúvida de que vai voltar com tudo. É uma coisa que está latente, rolando como lava subterrânea de vulcão.
Analisando a situação brasileira, Fernando Henrique Cardoso está certíssimo quando diz que nossos partidos políticos se renderam à lógica do corporativismo: não representam os interesses da sociedade, mas apenas os seus próprios interesses. Basta dizer que, hoje, parte significativa do governo petista da Bahia fez aliança com Bolsonaro. Diante disso, a queixa não é apenas relativa à baixa qualidade de nossa atual representação política, que de fato é uma coisa entristecedora. É uma queixa mais fundamental, mais essencial, como recusa do “establishment” político-partidário, recusa do déficit de democracia que sentimos no país. Na verdade, bem vistas as coisas, nós não temos partidos políticos, temos partidos eleitorais — e só. Um sistema desses está historicamente condenado.
IHU On-Line - Quais são as maiores fragilidades dos partidos políticos de esquerda e centro-esquerda atualmente? Que fatores parecem os levar a um descolamento da realidade social, que culmina na falta de aderência da população aos seus programas?
Antonio Risério - A esquerda não está procurando saída alguma para a crise do partidocratismo, nem para a crise nacional em globo. O PT acha que encarna o interesse nacional e popular e, quem discorda disso, é automaticamente classificado como inimigo do povo e da nação. Ora, este é o caminho mais curto que existe para evitar a praga do pensamento. E este é o principal problema. A esquerda e a centro-esquerda brasileiras, hoje, parecem querer tudo, menos pensar. O pensamento — principalmente, o pensamento livre, nada dogmático, nada subserviente a dogmas e princípios apriorísticos — virou uma espécie de maldição e é estigmatizado. De outra parte, a esquerda se acha mais infalível do que o papa. Sob este aspecto, José Dirceu, Lula e Ciro, entre outros, estão muito mais próximos de Stálin do que do papa Francisco. Falamos sempre que o PT nunca reconhece os erros, que dirá os crimes que cometeu! E é um partido que cometeu crimes gravíssimos contra a democracia e contra o povo brasileiro, daí que tenha sido eloquentemente rejeitado nas eleições de 2018. Mas também nunca ouvi uma autocrítica em profundidade do PSDB, cuja inflexão à direita começou em 2002, com a candidatura presidencial de Serra, acentuou-se com o “picolé de chuchu” e já ficou à vontade no campo da direita com Aécio Neves, que parece não ter entendido nem uma meia liçãozinha do avô Tancredo.
A Rede, por sua vez, paira acima dos mortais. Sugere uma espécie de nirvana dos ambientalistas, falando sobre coisas reais, mas numa linguagem que ninguém entende. Nenhum sinal de autocrítica, claro. Ciro, menos ainda. É uma pessoa interessante, mas um político fadado ao fracasso. Por fim, temos o narcisismo. A desconexão com a realidade, com as pessoas superestimando seu lugar, sua força etc., em detrimento de uma leitura clara do real histórico. Exemplifico. O ex-deputado Jean Wyllys (que hoje quer definir como “exílio” uma temporada voluntária que está passando no exterior, sempre caprichando no papel de vítima) disse que foi a homofobia brasileira que elegeu Bolsonaro. É ridículo. Presumo que esta homofobia que elegeu Bolsonaro seja a mesma homofobia que deu a Jean Wyllys prêmio milionário no “reality show” da Rede Globo e, ainda por cima, três mandatos de deputado federal. Aparece depois uma antropóloga para dizer que Bolsonaro foi eleito em consequência do avanço do feminismo. Não dá para acreditar. Falo disso em meu novo livro, “Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária”, que acaba de ser lançado pela editora Topbooks. Digo que, diante dessa dupla lunática, só falta aparecer um militante racialista neonegro para dizer que foi o racismo brasileiro que elegeu Bolsonaro — e um militante ambientalista para contestá-lo, argumentando que quem elegeu o porra-louca miliciano foram nossas conquistas ecológicas recentes... Nessa baboseira, são todos “lacanianos”: o real não existe. É como se a eleição de Bolsonaro nada tivesse a ver com a recessão econômica, o desemprego, a crise na segurança pública etc. etc. Foi por esse caminho que a esquerda brasileira, como bem disse Giuseppe Cocco, se converteu em denunciante do óbvio. Hoje, tudo o que ela faz é repetir “ad nauseam” que Bolsonaro é Bolsonaro... Chegamos ao grau absoluto da redundância política. E não vamos sair disso se não rediscutirmos impiedosamente as idiotices que fizemos para alcançar tão nítido e espetacular fracasso.
IHU On-Line - De outro lado, os partidos de direita e extrema direita parecem ocupar os espaços deixados pela esquerda e centro-esquerda. Como isso se dá?
Antonio Risério - Porque hoje, como diz o povão, é cara de um, cu de outro. Não há nada mais parecido com Lula do que Bolsonaro. E vice-versa. Não nos esqueçamos de que Lula e o PT pensaram seriamente num “terceiro mandato”, na linha de Chávez e Evo Morales. O PT tolera a democracia, na medida em que o partido possa controlar o aparelho estatal e, a partir daí, fazer o que bem quiser com a sociedade, na base de um “populismo tecnocrático”, como diz Werneck Vianna, vale dizer, um populismo palaciano, populismo de gabinete, sem massas. E não é verdade que Dilma tenha lutado pela democracia no Brasil entre o AI-5 e os tempos de Médici. Ela jamais defendeu a democracia no Brasil. Conheço sua história política. Dilma criou uma fantasia deliriosa para consumo próprio, bem distante da realidade da esquerda militarista em que se enrascou. Porque ela veio jovem para a esfera de influência da organização “marxista-leninista” Política Operária (onde ficou um semestre na célula da Faculdade de Economia) — a Polop, que considerava imbecilidade essa conversa de “democracia”. Livro de cabeceira dos polopianos era Estado e Revolução, de Lênin, pregação acesa a favor da destruição do Estado representativo-parlamentar. Para o Brasil, o programa era unívoco: derrubar a “ditadura dos patrões” para, em seu lugar, implantar a “ditadura do proletariado”. A democracia era olhada como manipulação alienante. Deveria ser combatida em nome da revolução socialista. E Dilma, embora militante sem qualquer relevo (naquele arremedo de luta armada, nunca foi além da “intendência”), rezava por essa cartilha. Chegou à Polop no momento do racha da organização, optando então pela facção militarista, que se confinou no Colina – Comando de Libertação Nacional. Adiante, duas vertentes da esquerda armada, o Colina e a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), se fundiram na VAR (Vanguarda Armada Revolucionária)-Palmares. E em todos esses momentos e organizações, “democracia” era palavrão. Mistificação execrável para sustentar a dominação da classe burguesa. O projeto continuava o mesmo: substituir a ditadura militar da burguesia pela ditadura militar do proletariado.
Agora, por que Dilma esconde esses fatos e se dispõe a mentir para o conjunto da sociedade brasileira? Simples: porque hoje fica muito bem na foto quem diz que enfrentou heroicamente a ditadura em nome do princípio maior da democracia. Mas fica mal quem admite que, como os militares, também achava que a solução estava numa ditadura. E Dilma prefere a morte a ficar mal na foto. O problema é que o autoritarismo populista de esquerda levou o Brasil à pior crise de sua história e o autoritarismo populista de direita prometeu a salvação nacional. Bem, se o autoritarismo de esquerda deixou a desejar, nada mais natural que a população procurar um novo abrigo no autoritarismo de direita. É isso.
IHU On-Line - No caso brasileiro, a vitória de Jair Bolsonaro é uma vitória dos partidos de direita e extrema direita ou apenas o fracasso da esquerda? Por quê?
Antonio Risério - Ambas as coisas. A vitória de uma se fez em cima do fracasso da outra. No segundo semestre de 2013, já víamos que o trem começava a descarrilhar. Era fácil perceber o desastre a caminho: o arrocho salarial já tinha começado, o desemprego crescia, a inflação era absurdamente controlada com preços artificiais, a classe média afundava, combinávamos atraso técnico, crescimento insignificante e inflação reprimida — mas com políticos e marqueteiros sobrepondo um mundo falso, ideológica e eletronicamente construído, a uma realidade que se desenhava em perspectiva catastrófica. E essa gigantesca construção falaciosa seduziu e hipnotizou a maioria da população brasileira, produzindo a reeleição de Dilma, o quarto mandato do PT. Mas é claro que tal fantasia, totalmente descolada da realidade, não teria como se sustentar. No entanto, nas eleições, a grande mentira triunfou — e deu no que deu. A realidade aparecia clara e escandalosamente na frente de nossas caras. A direita e a extrema direita navegaram em cima disso. Somaram, a um discurso de redenção econômica nacionalista e restabelecimento de um clima de segurança pública, todo um conservadorismo represado. Um conservadorismo que, aliás, o grande eleitorado petista não tinha deixado para trás.
IHU On-Line - O que a crise do presidente Jair Bolsonaro com o seu partido, o PSL — que surgiu e cresceu estrondosamente na última eleição —, revela sobre o sistema político brasileiro?
Antonio Risério - O que já dissemos: estas coisas estão caindo de podres... Vou ter de repetir o que disse: não temos partidos políticos, mas partidos eleitorais. Além disso, nossos partidos são agências e cabides de emprego. Espaços por excelência para o livre comércio de falcatruas. O que o PSDB tem a ver hoje com qualquer resquício do projeto de construção de uma social-democracia brasileira? Nada. O PT cresceu combatendo agressivamente a confusão ou simbiose entre o público e o privado que reinava soberanamente na política nacional. Chegou ao poder e o que aconteceu? O mensalão e o petrolão, organizados pelo PT em nome do interesse nacional-popular, se revelaram os exemplos extremos e mais escandalosos da promiscuidade entre o público e o privado. Ética? Nem pensar. O suposto partido da ética abandonou esta senhora antes mesmo do resultado das eleições de 2002. Bolsonaro, por sua vez, já nasceu na escola da podridão política. Do troca-troca do baixo clero legislativo, que é corrupto até à medula. Não tem um pingo da dignidade nacional que ainda é possível encontrar em nossas forças armadas. Não é só que ele seja mentalmente raquítico. Certo que é um ignorantão, incapaz de distinguir entre país, Estado e nação, por exemplo. Mas é também um padroeiro corrupto do clientelismo, de modo até escancarado. Se o “seu” partido não se mostra tão “seu” assim, irá à busca de outro. E isso vai a um ponto tão escandaloso que não duvido que tramas e tramoias se encarreguem um dia de derrubá-lo.
IHU On-Line - O que é e como se dá o que o senhor chama de “processo de avacalhação da História do Brasil”?
Antonio Risério - O binarismo e o maniqueísmo são coisas perfeitas para quem não gosta de pensar. E nossa esquerda foi criada nisso, no cultivo do maniqueísmo, identificando o opressor (a burguesia, a classe dominante) ao mal e o oprimido (o proletariado) ao bem. E foi assim que partiu para revirar pelo avesso a historiografia tradicional do país. Tudo começa com a formação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, durante um século o nosso único centro de estudos históricos. A missão do Instituto, sob a liderança de Varnhagen, um protegido de Pedro II, era dizer quem nós éramos. Em termos geográficos, balizando o espaço nacional, situando rios e cidades etc. E em termos históricos, definindo um elenco de feitos e personalidades memoráveis, casos exemplares que definiriam a identidade nacional. Foi assim que se forjou a primeira história oficial do Brasil, celebrando a colonização portuguesa dos trópicos. E isso vigorou por um século, ao menos. Até que, na década de 1970, historiadores (e jornalistas) de esquerda resolveram virar a mesa. Mas, em vez de realmente reexaminar a experiência nacional brasileira, eles optaram pela pura e simples inversão da velha história e pela instauração de um padrão fundado no maniqueísmo: o colonizador português era o mal — e o bem se encarnara, aqui, em pretos e índios.
Assim, bem nos termos da velha retórica marxista, a classe dominante-dirigente foi acusada de tudo e as classes ou os povos dominados passaram a ser celebrados irrestritamente. Não era preciso pensar: bastava denunciar o mal e celebrar o bem. Daí, todas as conquistas nacionais passaram a ser objeto de negação, de ataque e mesmo de deboche. Nada era relativizável, nada era complexo. Então, da década de 1970 para cá, a experiência nacional brasileira foi submetida a um processo de avacalhação sistemática, configurando-se como a ideologia historiográfica hoje dominante, a nova história oficial do país. Mas não é só. Dividiram o país em um “nós” e um “eles”, ambos míticos. “Nós” teríamos sofrido tudo, “eles” teriam sido os culpados de tudo. Então, todos passaram a dizer: “eles” mataram índios, “eles” humilharam mulheres, “eles” depredaram o meio ambiente etc. Ou seja: “nós” não temos culpa alguma no cartório. Isso é terrível: a gente passa a tratar as coisas na terceira pessoa. Nos demitimos da responsabilidade diante de tudo que fizemos, como se tal demissão fosse possível. Se realmente quisermos levar o Brasil a sério, nos interpretando em profunda profundidade, temos de aprender a dizer nós.

IHU On-Line - Quais os maiores equívocos da “contra-história do Brasil”, tecida desde aqueles que reagem à chamada ‘História tradicional’? E como esse movimento vai “vitaminar” uma virada conservadora?
Antonio Risério - Essa contra-história, que é a nova história oficial brasileira, nasce do casamento da ignorância histórica com o masoquismo nacional, no espaço de uma sociedade bipolar, que vai da euforia à depressão em questão de minutos. Entre seus grandes equívocos, está o de celebrar irrestritamente o experimento escravista de Palmares, por exemplo, ou o de falsificar a história com conversas do tipo “genocídio dos índios”, quando a política lusitana sempre foi a de assimilar os índios, transformá-los em súditos, em brasileiros, ao contrário do que ocorreu com a colonização norte-americana, que via os grupos indígenas como nações inimigas a serem exterminadas. É possível criticar em profundidade a relação da colonização portuguesa com os índios, mas não acionar o clichê do genocídio, porque não houve isso. Genocídio é guerra de limpeza étnica, projeto de banir um povo da face da terra. Mas como dizer isso, com Thomé de Sousa e Mem de Sá distribuindo terras entre os índios aliados? Como dizer isso com o marquês de Pombal premiando portugueses que se casassem com índias? Não faz sentido. Quem conquistou e colonizou o atual nordeste brasileiro foi a Casa da Torre — e a Casa da Torre era luso-indígena desde sua origem: Garcia d’Ávila casou com uma índia canibal e daí vieram seus filhos e descendentes que avançaram da Bahia ao Maranhão... Mas a postura historiográfica da esquerda não foi a de analisar, mas a de esculhambar tudo, inclusive o movimento abolicionista e aquela que é ainda hoje a nossa maior revolução social, acontecida em 1888. É como se só os reacionários pudessem se orgulhar de nossa experiência como povo e nação.
Marco Aurélio Nogueira viu bem, comentando meu artigo no Estadão, que provocou também esta nossa conversa aqui. Ele escreveu no “facebook”, dizendo o seguinte: “O texto é precioso pelo estilo, pelo conteúdo e especialmente pela coragem de dizer o que precisa ser incluído em uma agenda estratégica de pesquisa, coisa que ninguém leva muito a sério. Risério denuncia a ‘avacalhação’ a que está sendo submetida a história brasileira, com reflexos dramáticos na cultura, na política, na vida cotidiana. Os efeitos disso têm gerado uma espécie de bloqueio mental dos democratas, que não conseguem nem sequer defender o que seria seu legado. O país vai ficando assim largado pela estrada, para que o primeiro aventureiro dele lance mão, como ocorreu em 2018”. Não por acaso a direita se veste de verde e amarelo. E só ela pode assumir qualquer grandeza que porventura o Brasil tiver? Temos, pelo menos, duas: em meio milênio de história, construímos um povo — e uma nação.
IHU On-Line - Podemos inserir essa “contra-história do Brasil” no bojo dos movimentos globais da historiografia que tentam mudar o centro gravitacional para o que chamam de história dos vencidos? Quais os limites dessa história dos vencidos?

Antonio Risério - Li a matriz francesa e as filiais brasileiras. É a historiografia populista, de que fala Marshall Sahlins em Ilhas de História. Historiografia populista encarnada na (e defendida pela) “nouvelle histoire” francesa, com Jacques Le Goff e seus discípulos, numa leitura empobrecedora de Marc Bloch e Braudel, que se vai desdobrar futuramente, não importa se de forma imprevisível, nas mais variadas ginásticas do identitarismo, em discursos veementes e falsificadores sobre mulheres, pretos, veados, índios etc. Toda essa gente é muito simpática, mas é incompetente — como diria Caetano Veloso. Na prática escritural-analítica, se comporta como se o porteiro do seu prédio fosse tão ou mais importante, para a história nacional, quanto ou do que Pedro II, Joaquim Nabuco, Getúlio Vargas ou João Goulart. É claro que é importante conhecer a mentalidade do porteiro do seu prédio. Mas não foi ele quem decidiu implantar a Universidade de Brasília, nem tentar levar à prática as chamadas “reformas de base”, que foram o modelo do reformismo social brasileiro. Não foi o porteiro do seu prédio quem implantou a CLT ou decidiu que o Brasil tinha de se engajar na II Guerra Mundial. É preciso aprender a fazer essas distinções elementares.
Além disso, há uma pergunta: quem são os vencidos? Se alguém me diz que são os negros, por exemplo, respondo que, na história cultural do Brasil, na dimensão simbólica de nossa vida social, o candomblé foi vitorioso. Então, tudo isso é muito arbitrário, ideologizado demais. A história do futebol brasileiro é uma história vitoriosa de nosso povo. Não dá para compartimentar tudo. É preciso examinar caso a caso, repito. No caso da adoção da “nouvelle histoire”, de resto, é muito mais rico e enriquecedor alimentar uma compreensão antropológica da história brasileira. Ter uma visão histórico-antropológica do país, analisando cada período, cada conjuntura, em termos diacrônicos e no horizonte interno de suas significações. O problema é que quase todo mundo adora esquematismos, binarismos etc. A complexidade afugenta. Jornalistas a detestam, mas o mundo acadêmico também.
IHU On-Line - Como fazer a crítica dessa perspectiva da contra-história do Brasil, sem rasgar e demonizar todo um passado, mas também reconhecendo passagens abomináveis de nossa história?
Antonio Risério - Seguindo o ensinamento bíblico — separando o joio do trigo. Para dar um exemplo, você não pode celebrar os malês e condenar o 13 de Maio. Por um motivo simples: os malês eram escravistas e o 13 de Maio foi o dia da oficialização do fim da escravidão no país. Outra estupidez é condenar o 13 de Maio, que tentou realizar um grande avanço democrático, celebrando Zumbi dos Palmares, líder de uma liga escravista. Aliás, as leituras políticas do mito de Zumbi variam muito. Na época do Estado Novo, a Frente Negra Brasileira se derramava em elogios ao nazismo e tratava Zumbi — vejam só — como o führer de ébano. Dessa perspectiva negra, ele seria uma espécie de Hitler quilombola. Na verdade, um quilombo como Cidade Maravilha foi muito mais importante do que Palmares, sob todos os pontos de vista. E aqui podemos tocar numa questão histórica da maior relevância. Os negros que fizeram quilombos, levantes etc., lutavam contra a sua escravização, em particular, não contra a escravização em geral. Não só os palmarinos foram escravistas, os malês também. Em 1835, o projeto dos malês era fuzilar os brancos, escravizar os mulatos e implantar um “estado islâmico” na Bahia. Muito democrático, não?
Mas, ainda aqui, no terreno da história negra no Brasil, temos uma coisa extraordinária, uma vitória cultural espetacular, com os nagôs criando seus terreiros de candomblé, impondo nacionalmente o respeito aos orixás, que hoje o Brasil inteiro celebra em Iemanjá, na virada do Ano Novo. Temos de condenar o sadismo senhorial reinante no sistema escravista e, ao mesmo tempo, saber reconhecer que negros, brancos e mulatos se deram as mãos, numa extraordinária coalizão democrática de classes e cores, para abolir a escravidão no país. E a luta não foi nada fácil, implicando movimentações de massa e operações armadas. Os pretos estiveram na linha de frente disso: dos cinco principais líderes abolicionistas, três eram pretos: Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio. É estranho ver hoje os negros, adotando o padrão ideológico estabelecido pela Fundação Ford e a CIA (e aqui defendido por Florestan Fernandes), jogarem no lixo a bela história de seus ancestrais. Não: temos de rever tudo isso — e caso a caso. A preguiça, a ignorância e a trambicagem ideológica não podem nos impor a leitura que querem, fraudando e defraudando a experiência nacional brasileira. Além disso, podemos ser um pouco marxistas e um pouco freudianos, analisando a conjuntura em que esta contra-história ou nova história oficial do país nasceu. Ela foi gerada por uma esquerda nocauteada em 1968. Foi gerada por gente que direta ou indiretamente amargou a prisão, o exílio, a tortura, o fuzilamento. Uma gente derrotada na década de 1970, sob a ditadura de Médici. E essa gente escreveu uma contra-história celebrando os derrotados e execrando todas as vitórias do povo brasileiro e da nação brasileira ao longo de seus 500 anos de história.



“A crise econômica e a desigualdade são fundamentais para entender a origem da extrema direita”.


Entrevista com Farid Kahhat

Vivemos, como diria a filósofa alemã Hannah Arendt, “tempos de obscuridade” caracterizados por uma elevada e crescente desigualdade econômica em nível mundial, concentração da riqueza em poucas mãos, esvaziamento da democracia, deterioração do nível de vida, pauperização do mercado de trabalho, perda de confiança no sistema político e uma exacerbação da violência contra a mulher. A esta série de problemas se soma atualmente o ressurgimento na Europa da extrema direita.

Mas, quais são as raízes do auge da ultradireita que emergiu também nos Estados Unidos e Brasil? Por que na era da globalização um setor entre os cidadãos vota a favor das forças políticas que deslizam e propagam ideias contra os imigrantes, os refugiados e os pobres? Por acaso, a ascensão destes movimentos políticos tem relação com a crise da social-democracia, a pós-modernidade e os efeitos sociais e econômicos do neoliberalismo ou mercado desregulamentado?

Muitos estudiosos tentaram dar uma explicação acerca do substrato desta nova (e velha) construção política que se alimenta das frustrações sociais e redefine os problemas estruturais (aumento do desemprego, queda salarial, corte de direitos dos trabalhadores, precarização existencial) em função da raça ou identidade étnica (nacionalismo excludente). Um dos trabalhos mais consistentes para compreender este movimento é o desenvolvido pelo especialista em relações internacionais, Farid Kahhat (Lima, 1959).

Em seu ensaio El eterno retorno. La derecha radical en el mundo contemporáneo, apresentado no último dia 2 de agosto, na Feira Internacional do Livro de Lima, o professor da Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP) disseca e descreve com lucidez, pedagogia e inteligência crítica a natureza destes partidos que mudaram o mapa político de um grande número de países: Reunião Nacional, na França, Liga Norte, na Itália, AfD, na Alemanha, Amanhecer Dourado, na Grécia, os movimentos Kukiz’15 e Lei e Justiça, na Polônia, UKIP, no Reino Unido, o Partido da Liberdade, na Áustria, o Partido Popular Dinamarquês, na Dinamarca, Jobbik, na Hungria, Ataka, na Bulgária, e Vox, na Espanha.

Farid Kahhat, cuja obra é de leitura imprescindível, se há o desejo de entender realmente essa ‘vontade de poder’ da direita radical global e suas consequências para a democracia e a sociedade em seu conjunto, conversa 30 minutos com RPP Mundo e afirma que estas forças extremistas “não têm um discurso anticapitalista”.

A entrevista é de Oswaldo Palacios, publicada por RPP Noticias, 27-08-2019. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.
Desde a Grande Recessão de 2007, os partidos de extrema direita ganharam apoio eleitoral na Europa e no continente americano. O que estas forças políticas têm em comum e quais são os fundamentos ideológicos que compartilham?

Assumo a denominação e a definição de direita populista radical de alguns autores, em particular do holandês Cas Mudde. Este sustenta que há três características fundamentais que a define ideologicamente: populismo, nativismo e autoritarismo.

O populismo não apenas se refere à tendência de separar a sociedade entre o povo e uma elite econômica e política que governa em seu próprio benefício, como também, além disso, acredita que o povo só é representado pela força política que eles constroem. São os únicos representantes legítimos, digamos assim.

Isto, obviamente, é uma tendência contrária ao pluralismo político, o que já entra no terreno do autoritarismo. Alguns dizem que, diferente da extrema direita dos anos 1930, que era abertamente antidemocrática, esta aceita as regras do jogo democrático, no entanto, uma vez no Governo, começa a minar a ordem constitucional e a divisão de poderes, por exemplo, Hungria e Polônia.

E, como terceira característica, o nativismo, que baseia o nacionalismo na etnicidade, ou seja, é preciso ter a religião e a cor de pele corretas para ser nacional. A pertença à nação se define pela herança, não é algo que se adota voluntariamente. Portanto, os imigrantes, por mais que adquiram a cidadania, não são considerados nacionais, mas, ao contrário, um risco para o grupo étnico majoritário.

Alguns partidos de liberais e conservadores, como na Espanha e Itália, estão se aliando com agrupamentos de extrema direita para governar em coalizão em regiões, como a Andaluzia. Há 20 anos, isto era concebido como inimaginável. Quais são os fatores que favorecem que, agora, não se opõem a pactuar com estas formações que defendem um discurso contra os direitos das mulheres, do coletivo LGBTI e os imigrantes?

O livro começa, desde o prólogo, com uma experiência particular: o Partido da Liberdade da Áustria, que é de direita radical, é uma força política fundada por um velho militante (em referência a Anton Reinthaller) do Partido Nacional-Socialista de Adolf Hitler. No ano 2000, quando pela primeira vez é convidado a fazer parte de uma coalizão de governo, os outros países da União Europeia advertiram que iriam congelar suas relações diplomáticas com a Áustria, caso isso ocorresse.

Em 2017, essa organização volta a ser convidada [pelo Partido Popular] a fazer parte do governo, mas, nesta oportunidade, o resto dos países já não diz nada. O que mudou nesse ínterim? Foi o fato de que o discurso de ódio aos muçulmanos e imigrantes em geral, o discurso antieuropeísta e contrário à globalização econômica, que inicialmente era considerado inaceitável em uma democracia avançada, começa a ser adotado pelos partidos, não só de direita, também pelos social-democratas, em certas ocasiões. O primeiro o faz seu como uma forma de tentar privá-lo de sua base de apoio, mas, a longo prazo, a única coisa que conseguiu foi fazer com que a direita radical se sinta legitimada, porque agora suas opiniões são assumidas pelos partidos tradicionais.

O risco é, assim como já aconteceu nos anos 1930, que a direita tradicional acredite que possa instrumentalizá-lo para seus próprios fins e acabe perdendo o controle sobre o Frankenstein que criou.

A extrema direita responsabiliza os imigrantes, o feminismo e os pobres pela precária situação socioeconômica vivida por seus compatriotas. No entanto, por que não querem mexer nas desigualdades exacerbadas existentes entre as diferentes classes sociais, nem nos privilégios dos bilionários e multinacionais?

Os temas da crise econômica, em seu momento, a grande recessão e, sobretudo, a desigualdade na distribuição de renda são fundamentais para entender a origem destes grupos. Mas, uma vez que surgem, podem permanecer por outras razões, por exemplo, culpar por esses problemas, não a forma como a economia em seu país funciona, mas os imigrantes. Desse modo, alguns, sim, possuem um discurso que aborda a desigualdade e a prevalência de grandes interesses econômicos em seus países.

A diferença com a esquerda é que a direita radical, quando possui um discurso contrário ao capitalismo transnacional, não é anticapitalista, o que dizem é: “é preciso priorizar o capital nacional acima do capital estrangeiro’. Além disso, quando faz um discurso em favor da redistribuição de renda, porque na Europa, sim, são partidários de programas sociais e não nos Estados Unidos, não o apresenta em função de argumentos de justiça social, mas dizem coisas como: “os jovens não podem ter autonomia economicamente, casar-se e ter filhos, pela precariedade do emprego, então, vamos reverter as normas de liberalização do mercado de trabalho que criaram essa precariedade’.

O caso dos Estados Unidos é diferente, porque Donald Trump, uma vez no governo, em termos de política econômica, fez muito pouco por sua base eleitoral. De fato, sua redução de impostos como forma de estimular a economia beneficiou, sobretudo, setores de renda alta.

A globalização neoliberal se expandiu em nível mundial, após a queda do muro de Berlim e o desaparecimento da URSS. Quanto este processo econômico global, que implica livre comércio, desregulamentação da economia e flexibilidade trabalhista, tem a ver com a irrupção da direita radical?

O blog do atual ministro brasileiro de Relações Exteriores [Ernesto Araújo], antes de ser chanceler, tem como subtítulo, não sei se o mantém: ‘Contra o globalismo’. Trump fez campanha [em 2016] contra os acordos de liberalização comercial, os fóruns multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio, e em favor de medidas protecionistas. Marine Le Pen, a líder da direita radical francesa (Reagrupamento Nacional), quando fala da globalização e as finanças internacionais como inimigas do povo francês, soa como uma política de esquerda radical.

Do que acusam a globalização? Basicamente, de beneficiar as grandes empresas transnacionais à custa dos capitalistas nacionais e de que tende a homogeneizar as políticas econômicas e a retirar a autonomia dos governos, em favor do comércio internacional e o investimento. E este é um dos pontos de encontro que possuem com setores da esquerda. Nos Estados Unidos, por exemplo, Bernie Sanders é até mais duro que o próprio Trump em seu discurso contra a China e em favor do protecionismo.

Um ativista do ultradireitista Partido Nacional Britânico disse que “a esquerda evaporou na defesa da classe trabalhadora”. É possível concluir que o eterno retorno dos partidos ultradireitistas também são produto da debilidade da esquerda e da guinada ideológica da social-democracia?

Na Europa, a social-democracia veio acumulando derrotas eleitorais. É discutível qual seja a razão última. No entanto, segundo argumentam alguns autores, estas se dariam porque abandonou os setores da classe trabalhadora, que agora se tornaram eleitores da direita radical. O Partido Socialista Operário Espanhol e o Partido Trabalhista (Reino Unido), em prol de adquirir respeitabilidade em matéria de política econômica, guinaram para disposições mais semelhantes às políticas auspiciadas por entidades multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional, ou que foram historicamente adotadas pela direita.

Então, quando a esquerda no Governo adotou políticas de austeridade, em geral, depois, foi mal eleitoralmente. Na Grécia, por exemplo, é a esquerda radical que adota as políticas de austeridade e que perde a eleição seguinte. Quando pôs ênfase em políticas de fomento ao crescimento, sobretudo através do gasto público e políticas distributivas, como em Portugal, se saiu melhor.

Acredita que o avanço dos partidos de extrema direita irá continuar na Europa, levando em consideração que as desigualdades sociais, segundo relatórios da Oxfam, continuam crescendo e que as economias desse continente se verão, provavelmente, mais afetadas pela forte concorrência comercial chinesa?

A última eleição para o Parlamento Europeu foi uma grande decepção para os partidos de direita radical, porque alguns acreditavam que, finalmente, iriam dar o grande salto que os tornariam a primeira força política na Eurocâmara, mas isso não aconteceu.

Embora tenham crescido, passaram de 21% para 23% das vagas, é necessário fazer várias considerações. Primeiro, não são uma força unificada. A direita radical está dividida em três bancadas no Parlamento Europeu. E, segundo, as eleições parlamentares europeias, geralmente, acarretam menos participação eleitoral que as nacionais. Portanto, não são necessariamente uma boa predição do que irá acontecer nas eleições de cada país.

Sendo assim, seja por seu autoritarismo ou porque não resolvem os problemas econômicos, a depender do caso, a direita populista está começando a perder eleições, como acaba de acontecer na Eslováquia. Não me atrevo a prever o futuro, porque não depende somente de fatores estruturais, como a desigualdade, mas também da ação dos atores políticos. O que, sim, posso dizer é que já há um nível de resposta que começa a conter as arestas mais pungentes deste fenômeno. Por exemplo, Trump perde [em novembro de 2018] as eleições de meio de mandato para a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos.