. Entrevista com Vladimir Safatle
Em análise sobre a crise da esquerda e as conjunturas
brasileira e chilena, o filósofo Vladimir Safatle é enfático ao criticar o
Estado Brasileiro e a violência por ele perpetuada conta sua população. Para
ele, "O Estado brasileiro tem como única função operar em graus
inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no
extermínio, no desaparecimento, é um Estado baseado nas formas mais brutais de
morte sem sepultura que você possa imaginar; e isso como prática normal de
governo. A prática normal de governo no Brasil é essa".
Segundo professor, para renovar a política, é necessária a
"constituição de novos horizontes", algo que, conforme aponta
Safatle, a esquerda não consegue fazer porque a "capacidade de
constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula". Além
disso, Safatle também avalia que a crise chilena se dá em virtude do processo
de acumulação primitivo gerado pelo modelo neoliberal.
Professor na USP, o filósofo comenta seu último livro, Dar
corpo ao impossível: O sentido da dialética a partir de Theodor (São Paulo:
Autêntica, 2019), e explica que a obra tem como finalidade "mostrar as
estruturas dinâmicas da dialética negativa que podem orientar, ainda no
presente, uma reflexão crítica a respeito do existente, a respeito das
possibilidades de transformação, a respeito das dinâmicas gerais de movimento
dentro do nosso processo histórico, da nossa sociedade".
A entrevista é de Edison Urbano, publicada por Ideias de
Esquerda, 17-11-2019.
Eis a entrevista.
Pode começar nos falando um pouco sobre seu último livro,
“Dar corpo ao impossível”? Em que sentido você vê a importância do resgate da
dialética para entender e atuar no mundo de hoje? Qual a relação disso com a
ideia do “dar corpo”, que está no título?
Acho que a dialética é uma das figuras fundamentais do
pensamento crítico, que ainda guarda muito de sua atualidade, especialmente em
sua última tradição, que é a dialética negativa adorniana.
A ideia fundamental do livro era mostrar as estruturas
dinâmicas da dialética negativa que podem orientar, ainda no presente, uma
reflexão crítica a respeito do existente, a respeito das possibilidades de
transformação, a respeito das dinâmicas gerais de movimento dentro do nosso
processo histórico, da nossa sociedade. “Dar corpo” vem muito do fato de insistir
que a dialética é uma teoria da realização dos impossíveis, de uma certa forma,
da incorporação dos impossíveis; esse é um dos elementos fundamentais da sua
dinâmica transformadora: sair de uma teoria aristotélica do movimento, baseada
numa ideia do par “possível” e “atual”, “potência” e “ato”, para uma teoria
mais elaborada, na qual aquilo que, para uma situação atual, é impossível,
acaba sendo o embrião fundamental de uma outra forma.
Isso leva a uma segunda pergunta que queríamos fazer. No
livro, você propõe um resgate do pensamento de Theodor Adorno, um teórico
geralmente associado ao pessimismo histórico ou até ao ceticismo quanto à luta
de classes e a revolução social. No entanto, a apropriação de Adorno que o
livro propõe se afasta dessa leitura e parece sugerir quase um “Adorno
revolucionário”, talvez. Até que ponto, em sua visão, a interpretação corrente
recai em incompreensões ou lacunas sobre os textos de Adorno, ou em que medida
seria de fato uma (re)interpretação criativa aquela que você propõe?
Olha eu diria o seguinte, essa interpretação mais usual de
uma espécie de Adorno conservador, se podemos dizer assim, é muito fruto dos
fantasmas que assombram a sociedade alemã, com a crença atávica e necessária
numa espécie de pacto geral produzido pelo Estado e traduzido pela economia
social de mercado, pelo “Estado de bem-estar social”, e com o colapso desses
dispositivos de gestão social, a função que os intelectuais tiveram dentro
desse horizonte, ao serem simplesmente uma espécie de portadores um tanto
nostálgicos da recuperação desse modelo, muito vinculado a uma dinâmica que não
é nem social-democrata, é uma dinâmica social-democrata/democracia-cristã. Aí,
de uma certa forma, seria importante para esses intelectuais que o Adorno
aparecesse como um niilista, como um derrotista, alguma coisa dessa natureza.
O que eu acho que está longe, mas muito longe de ser
verdade, é alguém que em momento algum abandona o horizonte de transformação
revolucionária como elemento normativo fundamental do pensamento. O que ele faz
é compreender a complexidade da efetivação desse processo dentro da situação
que ele viveu, que era o momento dos 30 gloriosos, o momento um pouco áureo dos
modelos de coalizão e consenso dentro da democracia liberal. Ele insiste um pouco
no colapso da constituição dos sujeitos históricos, vinculados à classe
operária, ao proletariado… o que não significa de maneira nenhuma que ele abra
mão, isso que eu queria dizer: compreender a complexidade do processo não
significa você abrir mão dele. É isso que ele faz: quais são as condições para
que uma dinâmica revolucionária realmente se realize no interior das sociedades
ocidentais, esse é um problema fundamental para o Adorno. Eu desafio qualquer
pessoa que o leia de fato com interesse a provar o contrário.
Compreender a complexidade do processo não significa você
abrir mão dele. É isso que Adorno faz: quais são as condições para que uma
dinâmica revolucionária realmente se realize no interior das sociedades
ocidentais – Vladimir Safatle
Passando já então para o nosso segundo bloco, que é mais
internacional, a primeira pergunta parte de constatar que estamos diante de um
cenário extremamente dinâmico na América Latina, com grandes revoltas de massas
como as do Equador e agora no Chile, e tentativas de golpe de direita, como
vimos também agora na Bolívia. Como você analisa esses processos? Considera
pertinente a hipótese de que o processo dos Coletes Amarelos na França, no
final do ano passado, abriu um novo período para formas novas de expressão da
luta de classes?
É, eu não sei se o marco são mesmo os Gilets Jaunes [Coletes
Amarelos] franceses, acho que é um processo que vem na verdade, desde a
Primavera Árabe, que vai se consolidando de uma forma paulatina como uma
dinâmica animada por lutas de classes; agora, eu acho que na verdade o que faz
o ponto de viragem é o movimento chileno, que aí fica muito explícito. É claro
que há questões econômicas muito profundas na pauta dos franceses, mas no caso
dos chilenos você tem as pautas econômicas e a exigência de uma transformação
social radical, uma transformação institucional radical e uma articulação
transversal das lutas, com uma hegemonia muito, muito forte, ligada a pautas de
reconhecimento, de opressões, da opressão dos mapuches, de uma outra
reconfiguração do vínculo social.
O processo francês foi paulatinamente em direção a isso:
como todo movimento de rua, ele começa um pouco com contradições internas, e
essas contradições vão se amainando, inclusive com a capacidade que alguns
grupos tiveram de conseguir intervir no processo de construção de hegemonia.
Mas o que eu acho é que, a partir de agora, a gente tem uma tendência que deve
ser explorada de recondução da luta de classes para o centro das lutas
políticas, dos processos de mobilização e manifestação; isso seria uma coisa
absolutamente fundamental daqui pra frente, para que a gente conseguisse ter
uma capacidade não só aglutinadora maior, mas também uma capacidade de
transformação efetiva.
A gente tem uma tendência que deve ser explorada de
recondução da luta de classes para o centro das lutas políticas, dos processos
de mobilização e manifestação; isso seria uma coisa absolutamente fundamental
daqui pra frente, para que se conseguir ter uma capacidade não só aglutinadora
maior, mas também uma capacidade de transformação efetiva – Vladimir Safatle
Nós íamos passar para
outra pergunta, mas aproveitando então o interesse da questão do Chile, só uma
última pergunta, porque uma das demandas que tem sido discutida a partir do
movimento, e que o próprio governo Piñera tentou abordar à sua maneira, é a
questão da Assembleia Constituinte. Como você vê a relação disso com esse
desejo de ruptura institucional que você acabou de comentar?
Eu acho fundamental, fundamental. E é muito engraçado que
isso volte, porque esse é o modelo da luta dos islandeses. Os islandeses
fizeram suas lutas contra os pactos financistas ligados às receitas do Fundo
Monetário Internacional, e uma questão fundamental é uma nova Assembleia
Constituinte, uma nova Constituição. Porque eles percebem que a crise não é só
econômica, a crise é política também, a questão fundamental é que tipo de
regime político é esse que permite uma crise econômica dessa natureza. Que não
é exatamente uma crise, diga-se de passagem, é simplesmente uma nova volta do
processo de acumulação primitiva. O caso islandês é um caso clássico, porque
eram quatro bancos que tinham dívidas enormes fora do país e que diziam que
agora o estado socializasse suas dívidas, preservando sua dinâmica de
acumulação.
E o caso chileno, bem, é a crítica a um processo de
concentração que é o elemento fundamental do horizonte neoliberal, o qual não é
exatamente uma forma de gestão social, é uma forma de recolocar no centro do
processo econômico uma dinâmica de acumulação primitiva. Então eles percebem que,
se isso aconteceu, é porque você tem uma estrutura política que não é imune a
isso, que é completamente permeada por esse tipo de pressão, então é necessário
você quebrar institucionalmente o processo que garante isso, e reconstituir a
institucionalidade da vida nacional.
Recentemente, você fez comparações, em artigos e palestras,
entre a esquerda brasileira e figuras como Jeremy Corbyn e Bernie Sanders. E,
em outra chave, também fez uma colocação que repercutiu bastante, sobre a
necessidade de “dividir, para depois poder unir”. Pode falar um pouco de como
analisa esses personagens do cenário internacional, Corbyn e Sanders, que
aparecem como contraponto a uma onda de direita e extrema-direita que vinha, e
resgatar para os nossos leitores o sentido daquela comparação com a esquerda
brasileira?
Veja que vergonha, onde a esquerda brasileira chegou? Um
candidato do Partido Democrata e o líder do Partido Trabalhista, estão a
anos-luz de radicalidade de qualquer partido ou de qualquer organização da
esquerda brasileira – Vladimir Safatle
Então, essa
discussão, não é que eu reconheça o Bernie Sanders e o Corbyn como uma espécie
de horizonte normativo para as lutas da esquerda mundial, não era isso. Era
simplesmente para insistir: veja que vergonha, olha que coisa pavorosa, onde a
esquerda brasileira chegou? Um candidato do Partido Democrata e o líder do
Partido Trabalhista, estão a anos-luz de radicalidade de qualquer partido ou de
qualquer organização da esquerda brasileira que seja minimamente relevante
eleitoralmente. Acho que é uma questão a se pensar: pega o programa do Sanders,
ele tem tópicos que ninguém na esquerda brasileira, ninguém, nem PT, nem PSOL,
nem nada, chegou sequer a cogitar colocar como programa. Por exemplo, a ideia
de que 20% das ações de todas as empresas devem ser dispostas para os
trabalhadores; de que os boards [conselhos de administração] das empresas devem
ter pelo menos metade de trabalhadores na sua constituição; leis de restrição a
concentração e oligopólio financeiro, nada disso tem nenhum programa
brasileiro; ou o programa ecológico do Corbyn…
Para um país que passou por três catástrofes ambientais em
um ano, catástrofes monstruosas, você tem um autismo ecológico da esquerda que
é uma coisa inacreditável. Então é simplesmente para dizer: o Brasil é um país
onde até a esquerda radical é moderada, então isso deve ser realmente pensado,
no sentido forte do termo. Aí o que acontece, quando a gente tem uma situação
de radicalização como agora? A esquerda é a primeira a fazer um horizonte
legalista, um horizonte de frente ampla, de defesa da democracia…
Esse é um horizonte que é o horizonte clássico, tradicional
da política brasileira, se você pega, por exemplo, o Marighella falando do
papel do PCB nos anos 40 e 50, ele vai fazer o mesmo tipo de crítica: vocês
entraram numa lógica aliancista, de aliança com setores ditos progressistas da
burguesia, que só conseguiu travar qualquer possibilidade de auto-organização
da classe trabalhadora. E é isso que vai acontecer de novo, na verdade, vai
acontecer uma coisa ainda pior, vai acontecer uma coisa como a que ocorreu na
Itália: todo mundo se organiza contra o Berlusconi, você vai criando uma massa
completamente indigesta e indiferenciada, e no final das contas quando o
Berlusconi cai ainda aparece um sujeito mais radical, que é o único que fez
política, enquanto os outros ficam lá tentando reagir, ou resistir, ou qualquer
coisa que o valha. Eu temo que esse é o verdadeiro modelo da esquerda
brasileira.
O Brasil é um país onde até a esquerda radical é moderada,
então isso deve ser realmente pensado, no sentido forte do termo – Vladimir
Safatle
Passando para o nosso último bloco, que é justamente sobre o
Brasil. Em primeiro lugar, saber como você tem analisado o próprio governo Bolsonaro
e suas principais medidas.
Eu diria o seguinte, o governo Bolsonaro faz tudo certo.
Infelizmente, se tem alguém que sabe fazer política nesse país, é o Bolsonaro.
Dentro da lógica dele, ele fez tudo correto: chamá-lo de inepto, de inapto, é
simplesmente uma espécie de delírio de superioridade moral e intelectual que
acomete a esquerda nesses momentos dramáticos. Ele sabe que o Brasil é
ingovernável, que não é possível governar o Brasil, não nesse modelo. E ele faz
um pouco a velha dinâmica “eu contra todos”: eu estou no governo, mas eu não
consigo governar; não consigo, porque o Supremo Tribunal não deixa, porque o
Parlamento não deixa, porque meu partido não deixa, porque a imprensa não
deixa, porque ninguém deixa. Ou seja, isso lhe permite entregar muito pouco, e
ainda continuar mobilizando um setor fundamental da sociedade, que é mais ou
menos 30%, e que se consolidou ideologicamente em torno dele, ou seja, ele
conseguiu criar um bastião ideológico.
Esses 30% não vão cair, porque eles têm uma adesão
ideológica, no sentido tradicional do termo, toda a pauta ideológica,
neofascista, de extrema-direita, ele conseguiu consolidar. Então o que ele faz?
Ele espera um momento de ruptura, porque ele sabe que esse momento vai vir, ele
sabe que você vai ter… você vai vendo, as convulsões sociais à sua volta, uma
hora isso vai chegar no Brasil. E ele já está preparado para isso, e a esquerda
não está preparada. Ele está preparado, porque ele vai fazer duas coisas, ele
vai agir de uma forma brutal, como já tem dito, e ele vai dizer: “olha, eu
preciso fortalecer o governo, porque tem um caos, e eu nunca consegui governar
porque todas essas instituições me atrapalharam, e a situação agora é uma
situação excepcional, então agora a gente vai partir para uma experiência
ditatorial mais explícita”; é isso, esse é o seu horizonte.
Pegando um aspecto específico do governo, que se liga a uma
ideia que está presente em algumas das suas últimas palestras: como você vê o
Sérgio Moro, que veio da operação Lava Jato e, agora, com esse pacote
anticrime, qual a relação dele com esse projeto, e na verdade, talvez mais
amplamente, aquela ideia que temos visto em algumas colocações suas, de que aos
olhos do próprio Estado no Brasil existe uma separação na sociedade entre os
brasileiros “matáveis” e os “não-matáveis”. Como se relaciona com esse pacote
anticrime do Moro e com a crítica da transição pós-ditadura que a gente teve
aqui no Brasil?
Bom, a primeira coisa é que o Moro é uma peça fundamental de
todo esse processo, ele é o segundo na linha sucessória, assim que o Bolsonaro
cair ele, vai estar à frente, então você já tem uma linha sucessória em
operação desde o início. Os seus interesses eleitorais são explícitos. Ele é
uma figura própria das tragédias mais sórdidas de Shakespeare, é uma coisa da
ordem do Eduardo II, um sujeito que na verdade se serve da posição de juiz para
prender o candidato que poderia ocupar o cargo que ele quer ocupar. Tudo que
ele fez foi porque ele quer ser presidente da República, é uma coisa próxima do
inimaginável. Agora, é claro, a despeito dessas questões da ordem dos
interesses pessoais, é claro que ele expressa de uma maneira muito clara a
natureza necropolítica, necrofascista, do Estado brasileiro. O seu pacote é
muito evidente nesse sentido.
O Estado brasileiro tem como única função operar em graus
inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no
extermínio, no desaparecimento – Vladimir Safatle
O Estado brasileiro tem como única função operar em graus
inimagináveis de violência contra sua própria população, é um Estado baseado no
extermínio, no desaparecimento, é um Estado baseado nas formas mais brutais de
morte sem sepultura que você possa imaginar; e isso como prática normal de
governo. A prática normal de governo no Brasil é essa. Independentemente de
qual seja o partido, isso nunca mudou, pode ter ficado mais explícito em alguns
momentos, ou mais implícito em outros momentos, mas era uma questão de visibilidade,
não era uma questão de mudança de práticas.
Então se tem alguma coisa que é necessário fazer nesse país
é quebrar a máquina necropolítica do Estado brasileiro, que opera
cotidianamente, que teve na sua experiência ditatorial a consolidação do seu
aparato institucional, a consolidação das polícias militares, as práticas
ostensivas de tortura, as operações punitivas nas periferias, os assassinatos a
esmo, como forma de gestão do medo social; todo esse tipo de coisas que nós
conhecemos muito, muito bem, e preferimos não lembrar. Ele [Moro] é a expressão
máxima disso, a expressão descomplexada disso. Então, de fato, de todos os
personagens talvez ele seja de fato o pior. E é claro que esse pacote anticrime
entra nesse horizonte onde você tem medidas econômicas que são medidas
concentracionistas, são medidas econômicas de destruição de qualquer
possibilidade de resistência econômica da classe trabalhadora, e é claro que
eles sabem fazer contas, sabem que isso produz conflito social. Então por isso
que vai uma medida junto com a outra, vai o aprofundamento da estrutura
destruidora do Estado brasileiro junto com essas medidas econômicas.
Chegando a nossa última pergunta. É comum ouvir discursos
vindos dos próprios centros dirigentes da esquerda brasileira de que não há
lutas mais radicalizadas até o momento, apesar dos enormes motivos para tal,
porque os trabalhadores e o povo não querem. Em certa medida esses setores
terminam se apoiando num senso comum, elaborado ideologicamente pelas classes
dominantes, do mito do brasileiro pacífico e cordial. E esse é um dos elementos
sobre o qual a esquerda brasileira tradicional se apoia para projetar nos
trabalhadores e no povo uma passividade que é criada por ela. Como você avalia
isso hoje, frente a fatos como a soltura do Lula e as esperanças eleitorais que
isso deflagra? E como romper esse ciclo de passividade e conciliação e abrir
caminho para uma alternativa de esquerda distinta?
Olha, esses setores da esquerda tradicional, eles são
cúmplices de todo o aparato de violência que produz essa ilusão de passividade,
porque eles no governo não fizeram nada, absolutamente nada para desmontá-lo.
Ao contrário, eles deixaram isso operar e eles se aproveitaram dessa situação.
Então eles são parte do problema, eles não são parte da solução. Porque falar
uma coisa dessas é de uma demência absoluta, porque na verdade o que acontece é
que você tem uma população que… bem, eu sugiro o seguinte: suba o Complexo do
Alemão, e você vai poder encontrar barricadas nas ruas contra os caveirões da
polícia, você vai poder ouvir as mães de filhos assassinados dizendo do tipo
não só de assassinato a seco, mas também a humilhação cotidiana mesmo com os
filhos assassinados, você vai poder encontrar balas de fuzil nos tetos, que
mostram cotidianamente o que ocorre, daí você vai entender por que o povo não
se revolta; talvez aí eles consigam entender um pouco quando eles perceberem o
grau de política de extermínio ao qual essa população está submetida…
Talvez eles possam entender, então, o que isso significa. E
mesmo assim, ao contrário: esse povo se revolta, eles fazem mobilização, eles
fazem manifestação, eles desafiam a polícia, eles desafiam as milícias, eles
desafiam o tráfico, então isso, até do ponto de vista moral, é uma das coisas
mais ignóbeis que se possa falar do povo brasileiro. Porque o povo brasileiro é
um povo de uma história, que é uma história de luta contínua.
Agora, é claro, eles precisam desse tipo de coisa para poder
justificar sua própria inércia, para poder justificar seu próprio modelo de
compreensão de luta política, que é uma luta política própria da Nova
República; são as lutas palacianas, são as lutas florentinas, são as lutas dos
conchavos, são as lutas dos processos eleitorais travados. Porque são processos
eleitorais em que você vai tendo certas coalizões que são feitas para te
travar, para depois você entrar no governo e falar “olha, eu não posso fazer
nada porque a correlação de forças não me permite”, todo esse tipo de coisa.
A política não vive de resistência, ela vive da constituição
de novos horizontes, e a capacidade de constituição de novos horizontes da
esquerda brasileira, hoje, é nula – Vladimir Safatle
Isso está insuportavelmente jogado na cara do povo
brasileiro há décadas, então eu diria o seguinte: a gente precisa lembrar de
uma outra história da esquerda brasileira, que não é essa história do populismo
de esquerda que nos assombra desde os anos de 1940, desde um certo alinhamento
da esquerda brasileira com o varguismo, e que continuou, continuou com o
petismo, e tende a continuar, infelizmente. Eu diria que a gente precisa
recuperar uma outra história, que é uma história de radicalização e de luta;
que é constitutiva da nossa experiência. E compreender que o que aconteceu no
Brasil nesses últimos anos foi o colapso desse modelo populista de esquerda.
Entrando agora na questão sobre a soltura do Lula, porque o
Lula é a expressão máxima disso: o que o Lula faz é exatamente o que as figuras
dentro desse modelo de corporação social fazem, ele vai tentar articular
alianças, ele vai fazer aquele tipo de promessas contraditórias: ele promete
pra você uma coisa, vai prometer pra você radicalização, vai prometer pro outro
moderação; pra você uma mudança de processo econômico, pro outro ele vai dizer
que não, não, vamos preservar o parque produtivo; aquela coisa de sempre. E
tentar reinstalar e reinstaurar, mais uma vez, isso, é só repetir uma
catástrofe. É claro que como você tem desespero enorme da sociedade brasileira
diante dessa ascensão neofascista, então o que aparecer as pessoas seguram…
Só que o fato é que a política não vive disso, ela não vive
de resistência, ela vive da constituição de novos horizontes, e a capacidade de
constituição de novos horizontes da esquerda brasileira, hoje, é nula. E é por isso
que ela não consegue sair dessa sua posição defensiva, ela é incapaz de dizer
para a sociedade brasileira: “olha, o que a gente quer agora do processo
econômico?, o que a gente quer da institucionalidade política?”. A única coisa
que ela consegue falar é sobre questões vinculadas a dinâmicas sociais de
reconhecimento, que são absolutamente fundamentais, essas questões que dizem
respeito à situação de vulnerabilidade e de opressão de vários setores da
sociedade brasileira, mas essa é a única coisa que ela consegue colocar na
pauta, porque ela não tem coragem de oferecer mais nada, e isso infelizmente
não é suficiente.