quarta-feira, 20 de novembro de 2019

“A crise econômica e a desigualdade são fundamentais para entender a origem da extrema direita”.


Entrevista com Farid Kahhat

Vivemos, como diria a filósofa alemã Hannah Arendt, “tempos de obscuridade” caracterizados por uma elevada e crescente desigualdade econômica em nível mundial, concentração da riqueza em poucas mãos, esvaziamento da democracia, deterioração do nível de vida, pauperização do mercado de trabalho, perda de confiança no sistema político e uma exacerbação da violência contra a mulher. A esta série de problemas se soma atualmente o ressurgimento na Europa da extrema direita.

Mas, quais são as raízes do auge da ultradireita que emergiu também nos Estados Unidos e Brasil? Por que na era da globalização um setor entre os cidadãos vota a favor das forças políticas que deslizam e propagam ideias contra os imigrantes, os refugiados e os pobres? Por acaso, a ascensão destes movimentos políticos tem relação com a crise da social-democracia, a pós-modernidade e os efeitos sociais e econômicos do neoliberalismo ou mercado desregulamentado?

Muitos estudiosos tentaram dar uma explicação acerca do substrato desta nova (e velha) construção política que se alimenta das frustrações sociais e redefine os problemas estruturais (aumento do desemprego, queda salarial, corte de direitos dos trabalhadores, precarização existencial) em função da raça ou identidade étnica (nacionalismo excludente). Um dos trabalhos mais consistentes para compreender este movimento é o desenvolvido pelo especialista em relações internacionais, Farid Kahhat (Lima, 1959).

Em seu ensaio El eterno retorno. La derecha radical en el mundo contemporáneo, apresentado no último dia 2 de agosto, na Feira Internacional do Livro de Lima, o professor da Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP) disseca e descreve com lucidez, pedagogia e inteligência crítica a natureza destes partidos que mudaram o mapa político de um grande número de países: Reunião Nacional, na França, Liga Norte, na Itália, AfD, na Alemanha, Amanhecer Dourado, na Grécia, os movimentos Kukiz’15 e Lei e Justiça, na Polônia, UKIP, no Reino Unido, o Partido da Liberdade, na Áustria, o Partido Popular Dinamarquês, na Dinamarca, Jobbik, na Hungria, Ataka, na Bulgária, e Vox, na Espanha.

Farid Kahhat, cuja obra é de leitura imprescindível, se há o desejo de entender realmente essa ‘vontade de poder’ da direita radical global e suas consequências para a democracia e a sociedade em seu conjunto, conversa 30 minutos com RPP Mundo e afirma que estas forças extremistas “não têm um discurso anticapitalista”.

A entrevista é de Oswaldo Palacios, publicada por RPP Noticias, 27-08-2019. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.
Desde a Grande Recessão de 2007, os partidos de extrema direita ganharam apoio eleitoral na Europa e no continente americano. O que estas forças políticas têm em comum e quais são os fundamentos ideológicos que compartilham?

Assumo a denominação e a definição de direita populista radical de alguns autores, em particular do holandês Cas Mudde. Este sustenta que há três características fundamentais que a define ideologicamente: populismo, nativismo e autoritarismo.

O populismo não apenas se refere à tendência de separar a sociedade entre o povo e uma elite econômica e política que governa em seu próprio benefício, como também, além disso, acredita que o povo só é representado pela força política que eles constroem. São os únicos representantes legítimos, digamos assim.

Isto, obviamente, é uma tendência contrária ao pluralismo político, o que já entra no terreno do autoritarismo. Alguns dizem que, diferente da extrema direita dos anos 1930, que era abertamente antidemocrática, esta aceita as regras do jogo democrático, no entanto, uma vez no Governo, começa a minar a ordem constitucional e a divisão de poderes, por exemplo, Hungria e Polônia.

E, como terceira característica, o nativismo, que baseia o nacionalismo na etnicidade, ou seja, é preciso ter a religião e a cor de pele corretas para ser nacional. A pertença à nação se define pela herança, não é algo que se adota voluntariamente. Portanto, os imigrantes, por mais que adquiram a cidadania, não são considerados nacionais, mas, ao contrário, um risco para o grupo étnico majoritário.

Alguns partidos de liberais e conservadores, como na Espanha e Itália, estão se aliando com agrupamentos de extrema direita para governar em coalizão em regiões, como a Andaluzia. Há 20 anos, isto era concebido como inimaginável. Quais são os fatores que favorecem que, agora, não se opõem a pactuar com estas formações que defendem um discurso contra os direitos das mulheres, do coletivo LGBTI e os imigrantes?

O livro começa, desde o prólogo, com uma experiência particular: o Partido da Liberdade da Áustria, que é de direita radical, é uma força política fundada por um velho militante (em referência a Anton Reinthaller) do Partido Nacional-Socialista de Adolf Hitler. No ano 2000, quando pela primeira vez é convidado a fazer parte de uma coalizão de governo, os outros países da União Europeia advertiram que iriam congelar suas relações diplomáticas com a Áustria, caso isso ocorresse.

Em 2017, essa organização volta a ser convidada [pelo Partido Popular] a fazer parte do governo, mas, nesta oportunidade, o resto dos países já não diz nada. O que mudou nesse ínterim? Foi o fato de que o discurso de ódio aos muçulmanos e imigrantes em geral, o discurso antieuropeísta e contrário à globalização econômica, que inicialmente era considerado inaceitável em uma democracia avançada, começa a ser adotado pelos partidos, não só de direita, também pelos social-democratas, em certas ocasiões. O primeiro o faz seu como uma forma de tentar privá-lo de sua base de apoio, mas, a longo prazo, a única coisa que conseguiu foi fazer com que a direita radical se sinta legitimada, porque agora suas opiniões são assumidas pelos partidos tradicionais.

O risco é, assim como já aconteceu nos anos 1930, que a direita tradicional acredite que possa instrumentalizá-lo para seus próprios fins e acabe perdendo o controle sobre o Frankenstein que criou.

A extrema direita responsabiliza os imigrantes, o feminismo e os pobres pela precária situação socioeconômica vivida por seus compatriotas. No entanto, por que não querem mexer nas desigualdades exacerbadas existentes entre as diferentes classes sociais, nem nos privilégios dos bilionários e multinacionais?

Os temas da crise econômica, em seu momento, a grande recessão e, sobretudo, a desigualdade na distribuição de renda são fundamentais para entender a origem destes grupos. Mas, uma vez que surgem, podem permanecer por outras razões, por exemplo, culpar por esses problemas, não a forma como a economia em seu país funciona, mas os imigrantes. Desse modo, alguns, sim, possuem um discurso que aborda a desigualdade e a prevalência de grandes interesses econômicos em seus países.

A diferença com a esquerda é que a direita radical, quando possui um discurso contrário ao capitalismo transnacional, não é anticapitalista, o que dizem é: “é preciso priorizar o capital nacional acima do capital estrangeiro’. Além disso, quando faz um discurso em favor da redistribuição de renda, porque na Europa, sim, são partidários de programas sociais e não nos Estados Unidos, não o apresenta em função de argumentos de justiça social, mas dizem coisas como: “os jovens não podem ter autonomia economicamente, casar-se e ter filhos, pela precariedade do emprego, então, vamos reverter as normas de liberalização do mercado de trabalho que criaram essa precariedade’.

O caso dos Estados Unidos é diferente, porque Donald Trump, uma vez no governo, em termos de política econômica, fez muito pouco por sua base eleitoral. De fato, sua redução de impostos como forma de estimular a economia beneficiou, sobretudo, setores de renda alta.

A globalização neoliberal se expandiu em nível mundial, após a queda do muro de Berlim e o desaparecimento da URSS. Quanto este processo econômico global, que implica livre comércio, desregulamentação da economia e flexibilidade trabalhista, tem a ver com a irrupção da direita radical?

O blog do atual ministro brasileiro de Relações Exteriores [Ernesto Araújo], antes de ser chanceler, tem como subtítulo, não sei se o mantém: ‘Contra o globalismo’. Trump fez campanha [em 2016] contra os acordos de liberalização comercial, os fóruns multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio, e em favor de medidas protecionistas. Marine Le Pen, a líder da direita radical francesa (Reagrupamento Nacional), quando fala da globalização e as finanças internacionais como inimigas do povo francês, soa como uma política de esquerda radical.

Do que acusam a globalização? Basicamente, de beneficiar as grandes empresas transnacionais à custa dos capitalistas nacionais e de que tende a homogeneizar as políticas econômicas e a retirar a autonomia dos governos, em favor do comércio internacional e o investimento. E este é um dos pontos de encontro que possuem com setores da esquerda. Nos Estados Unidos, por exemplo, Bernie Sanders é até mais duro que o próprio Trump em seu discurso contra a China e em favor do protecionismo.

Um ativista do ultradireitista Partido Nacional Britânico disse que “a esquerda evaporou na defesa da classe trabalhadora”. É possível concluir que o eterno retorno dos partidos ultradireitistas também são produto da debilidade da esquerda e da guinada ideológica da social-democracia?

Na Europa, a social-democracia veio acumulando derrotas eleitorais. É discutível qual seja a razão última. No entanto, segundo argumentam alguns autores, estas se dariam porque abandonou os setores da classe trabalhadora, que agora se tornaram eleitores da direita radical. O Partido Socialista Operário Espanhol e o Partido Trabalhista (Reino Unido), em prol de adquirir respeitabilidade em matéria de política econômica, guinaram para disposições mais semelhantes às políticas auspiciadas por entidades multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional, ou que foram historicamente adotadas pela direita.

Então, quando a esquerda no Governo adotou políticas de austeridade, em geral, depois, foi mal eleitoralmente. Na Grécia, por exemplo, é a esquerda radical que adota as políticas de austeridade e que perde a eleição seguinte. Quando pôs ênfase em políticas de fomento ao crescimento, sobretudo através do gasto público e políticas distributivas, como em Portugal, se saiu melhor.

Acredita que o avanço dos partidos de extrema direita irá continuar na Europa, levando em consideração que as desigualdades sociais, segundo relatórios da Oxfam, continuam crescendo e que as economias desse continente se verão, provavelmente, mais afetadas pela forte concorrência comercial chinesa?

A última eleição para o Parlamento Europeu foi uma grande decepção para os partidos de direita radical, porque alguns acreditavam que, finalmente, iriam dar o grande salto que os tornariam a primeira força política na Eurocâmara, mas isso não aconteceu.

Embora tenham crescido, passaram de 21% para 23% das vagas, é necessário fazer várias considerações. Primeiro, não são uma força unificada. A direita radical está dividida em três bancadas no Parlamento Europeu. E, segundo, as eleições parlamentares europeias, geralmente, acarretam menos participação eleitoral que as nacionais. Portanto, não são necessariamente uma boa predição do que irá acontecer nas eleições de cada país.

Sendo assim, seja por seu autoritarismo ou porque não resolvem os problemas econômicos, a depender do caso, a direita populista está começando a perder eleições, como acaba de acontecer na Eslováquia. Não me atrevo a prever o futuro, porque não depende somente de fatores estruturais, como a desigualdade, mas também da ação dos atores políticos. O que, sim, posso dizer é que já há um nível de resposta que começa a conter as arestas mais pungentes deste fenômeno. Por exemplo, Trump perde [em novembro de 2018] as eleições de meio de mandato para a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos.



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