Entrevista com Farid Kahhat
Vivemos, como diria a filósofa alemã Hannah Arendt, “tempos
de obscuridade” caracterizados por uma elevada e crescente desigualdade
econômica em nível mundial, concentração da riqueza em poucas mãos,
esvaziamento da democracia, deterioração do nível de vida, pauperização do
mercado de trabalho, perda de confiança no sistema político e uma exacerbação
da violência contra a mulher. A esta série de problemas se soma atualmente o
ressurgimento na Europa da extrema direita.
Mas, quais são as raízes do auge da ultradireita que emergiu
também nos Estados Unidos e Brasil? Por que na era da globalização um setor
entre os cidadãos vota a favor das forças políticas que deslizam e propagam
ideias contra os imigrantes, os refugiados e os pobres? Por acaso, a ascensão
destes movimentos políticos tem relação com a crise da social-democracia, a
pós-modernidade e os efeitos sociais e econômicos do neoliberalismo ou mercado
desregulamentado?
Muitos estudiosos tentaram dar uma explicação acerca do
substrato desta nova (e velha) construção política que se alimenta das
frustrações sociais e redefine os problemas estruturais (aumento do desemprego,
queda salarial, corte de direitos dos trabalhadores, precarização existencial)
em função da raça ou identidade étnica (nacionalismo excludente). Um dos
trabalhos mais consistentes para compreender este movimento é o desenvolvido
pelo especialista em relações internacionais, Farid Kahhat (Lima, 1959).
Em seu ensaio El eterno retorno. La derecha radical en el
mundo contemporáneo, apresentado no último dia 2 de agosto, na Feira
Internacional do Livro de Lima, o professor da Pontifícia Universidade Católica
do Peru (PUCP) disseca e descreve com lucidez, pedagogia e inteligência crítica
a natureza destes partidos que mudaram o mapa político de um grande número de
países: Reunião Nacional, na França, Liga Norte, na Itália, AfD, na Alemanha,
Amanhecer Dourado, na Grécia, os movimentos Kukiz’15 e Lei e Justiça, na Polônia,
UKIP, no Reino Unido, o Partido da Liberdade, na Áustria, o Partido Popular
Dinamarquês, na Dinamarca, Jobbik, na Hungria, Ataka, na Bulgária, e Vox, na
Espanha.
Farid Kahhat, cuja obra é de leitura imprescindível, se há o
desejo de entender realmente essa ‘vontade de poder’ da direita radical global
e suas consequências para a democracia e a sociedade em seu conjunto, conversa
30 minutos com RPP Mundo e afirma que estas forças extremistas “não têm um
discurso anticapitalista”.
A entrevista é de Oswaldo Palacios, publicada por RPP
Noticias, 27-08-2019. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Desde a Grande Recessão de 2007, os partidos de extrema
direita ganharam apoio eleitoral na Europa e no continente americano. O que
estas forças políticas têm em comum e quais são os fundamentos ideológicos que
compartilham?
Assumo a denominação e a definição de direita populista
radical de alguns autores, em particular do holandês Cas Mudde. Este sustenta
que há três características fundamentais que a define ideologicamente:
populismo, nativismo e autoritarismo.
O populismo não apenas se refere à tendência de separar a
sociedade entre o povo e uma elite econômica e política que governa em seu
próprio benefício, como também, além disso, acredita que o povo só é
representado pela força política que eles constroem. São os únicos
representantes legítimos, digamos assim.
Isto, obviamente, é uma tendência contrária ao pluralismo
político, o que já entra no terreno do autoritarismo. Alguns dizem que,
diferente da extrema direita dos anos 1930, que era abertamente
antidemocrática, esta aceita as regras do jogo democrático, no entanto, uma vez
no Governo, começa a minar a ordem constitucional e a divisão de poderes, por
exemplo, Hungria e Polônia.
E, como terceira característica, o nativismo, que baseia o
nacionalismo na etnicidade, ou seja, é preciso ter a religião e a cor de pele
corretas para ser nacional. A pertença à nação se define pela herança, não é
algo que se adota voluntariamente. Portanto, os imigrantes, por mais que
adquiram a cidadania, não são considerados nacionais, mas, ao contrário, um
risco para o grupo étnico majoritário.
Alguns partidos de liberais e conservadores, como na Espanha
e Itália, estão se aliando com agrupamentos de extrema direita para governar em
coalizão em regiões, como a Andaluzia. Há 20 anos, isto era concebido como
inimaginável. Quais são os fatores que favorecem que, agora, não se opõem a
pactuar com estas formações que defendem um discurso contra os direitos das
mulheres, do coletivo LGBTI e os imigrantes?
O livro começa, desde o prólogo, com uma experiência
particular: o Partido da Liberdade da Áustria, que é de direita radical, é uma
força política fundada por um velho militante (em referência a Anton Reinthaller)
do Partido Nacional-Socialista de Adolf Hitler. No ano 2000, quando pela
primeira vez é convidado a fazer parte de uma coalizão de governo, os outros
países da União Europeia advertiram que iriam congelar suas relações
diplomáticas com a Áustria, caso isso ocorresse.
Em 2017, essa organização volta a ser convidada [pelo
Partido Popular] a fazer parte do governo, mas, nesta oportunidade, o resto dos
países já não diz nada. O que mudou nesse ínterim? Foi o fato de que o discurso
de ódio aos muçulmanos e imigrantes em geral, o discurso antieuropeísta e
contrário à globalização econômica, que inicialmente era considerado
inaceitável em uma democracia avançada, começa a ser adotado pelos partidos,
não só de direita, também pelos social-democratas, em certas ocasiões. O
primeiro o faz seu como uma forma de tentar privá-lo de sua base de apoio, mas,
a longo prazo, a única coisa que conseguiu foi fazer com que a direita radical
se sinta legitimada, porque agora suas opiniões são assumidas pelos partidos
tradicionais.
O risco é, assim como já aconteceu nos anos 1930, que a
direita tradicional acredite que possa instrumentalizá-lo para seus próprios
fins e acabe perdendo o controle sobre o Frankenstein que criou.
A extrema direita responsabiliza os imigrantes, o feminismo
e os pobres pela precária situação socioeconômica vivida por seus compatriotas.
No entanto, por que não querem mexer nas desigualdades exacerbadas existentes
entre as diferentes classes sociais, nem nos privilégios dos bilionários e
multinacionais?
Os temas da crise econômica, em seu momento, a grande
recessão e, sobretudo, a desigualdade na distribuição de renda são fundamentais
para entender a origem destes grupos. Mas, uma vez que surgem, podem permanecer
por outras razões, por exemplo, culpar por esses problemas, não a forma como a
economia em seu país funciona, mas os imigrantes. Desse modo, alguns, sim,
possuem um discurso que aborda a desigualdade e a prevalência de grandes
interesses econômicos em seus países.
A diferença com a esquerda é que a direita radical, quando
possui um discurso contrário ao capitalismo transnacional, não é
anticapitalista, o que dizem é: “é preciso priorizar o capital nacional acima
do capital estrangeiro’. Além disso, quando faz um discurso em favor da redistribuição
de renda, porque na Europa, sim, são partidários de programas sociais e não nos
Estados Unidos, não o apresenta em função de argumentos de justiça social, mas
dizem coisas como: “os jovens não podem ter autonomia economicamente, casar-se
e ter filhos, pela precariedade do emprego, então, vamos reverter as normas de
liberalização do mercado de trabalho que criaram essa precariedade’.
O caso dos Estados Unidos é diferente, porque Donald Trump,
uma vez no governo, em termos de política econômica, fez muito pouco por sua
base eleitoral. De fato, sua redução de impostos como forma de estimular a
economia beneficiou, sobretudo, setores de renda alta.
A globalização neoliberal se expandiu em nível mundial, após
a queda do muro de Berlim e o desaparecimento da URSS. Quanto este processo
econômico global, que implica livre comércio, desregulamentação da economia e
flexibilidade trabalhista, tem a ver com a irrupção da direita radical?
O blog do atual ministro brasileiro de Relações Exteriores
[Ernesto Araújo], antes de ser chanceler, tem como subtítulo, não sei se o
mantém: ‘Contra o globalismo’. Trump fez campanha [em 2016] contra os acordos
de liberalização comercial, os fóruns multilaterais, como a Organização Mundial
do Comércio, e em favor de medidas protecionistas. Marine Le Pen, a líder da
direita radical francesa (Reagrupamento Nacional), quando fala da globalização
e as finanças internacionais como inimigas do povo francês, soa como uma
política de esquerda radical.
Do que acusam a globalização? Basicamente, de beneficiar as
grandes empresas transnacionais à custa dos capitalistas nacionais e de que
tende a homogeneizar as políticas econômicas e a retirar a autonomia dos
governos, em favor do comércio internacional e o investimento. E este é um dos
pontos de encontro que possuem com setores da esquerda. Nos Estados Unidos, por
exemplo, Bernie Sanders é até mais duro que o próprio Trump em seu discurso
contra a China e em favor do protecionismo.
Um ativista do ultradireitista Partido Nacional Britânico
disse que “a esquerda evaporou na defesa da classe trabalhadora”. É possível
concluir que o eterno retorno dos partidos ultradireitistas também são produto
da debilidade da esquerda e da guinada ideológica da social-democracia?
Na Europa, a social-democracia veio acumulando derrotas
eleitorais. É discutível qual seja a razão última. No entanto, segundo
argumentam alguns autores, estas se dariam porque abandonou os setores da
classe trabalhadora, que agora se tornaram eleitores da direita radical. O
Partido Socialista Operário Espanhol e o Partido Trabalhista (Reino Unido), em
prol de adquirir respeitabilidade em matéria de política econômica, guinaram para
disposições mais semelhantes às políticas auspiciadas por entidades
multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional, ou que foram
historicamente adotadas pela direita.
Então, quando a esquerda no Governo adotou políticas de
austeridade, em geral, depois, foi mal eleitoralmente. Na Grécia, por exemplo,
é a esquerda radical que adota as políticas de austeridade e que perde a
eleição seguinte. Quando pôs ênfase em políticas de fomento ao crescimento,
sobretudo através do gasto público e políticas distributivas, como em Portugal,
se saiu melhor.
Acredita que o avanço dos partidos de extrema direita irá
continuar na Europa, levando em consideração que as desigualdades sociais,
segundo relatórios da Oxfam, continuam crescendo e que as economias desse continente
se verão, provavelmente, mais afetadas pela forte concorrência comercial
chinesa?
A última eleição para o Parlamento Europeu foi uma grande
decepção para os partidos de direita radical, porque alguns acreditavam que,
finalmente, iriam dar o grande salto que os tornariam a primeira força política
na Eurocâmara, mas isso não aconteceu.
Embora tenham crescido, passaram de 21% para 23% das vagas,
é necessário fazer várias considerações. Primeiro, não são uma força unificada.
A direita radical está dividida em três bancadas no Parlamento Europeu. E,
segundo, as eleições parlamentares europeias, geralmente, acarretam menos
participação eleitoral que as nacionais. Portanto, não são necessariamente uma
boa predição do que irá acontecer nas eleições de cada país.
Sendo assim, seja por seu autoritarismo ou porque não
resolvem os problemas econômicos, a depender do caso, a direita populista está
começando a perder eleições, como acaba de acontecer na Eslováquia. Não me
atrevo a prever o futuro, porque não depende somente de fatores estruturais,
como a desigualdade, mas também da ação dos atores políticos. O que, sim, posso
dizer é que já há um nível de resposta que começa a conter as arestas mais
pungentes deste fenômeno. Por exemplo, Trump perde [em novembro de 2018] as
eleições de meio de mandato para a Câmara dos Representantes dos Estados
Unidos.
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