Confira a versão abreviada do estudo que marca a reedição de
'Confissões de Minas' - que a Cosac Naify lançou no dia 31 de outubro de 2011 -, de Drummond de
Andrade, escrito pelo maior especialista estrangeiro na obra do autor
John Gledson
Confissões de Minas é a primeira coletânea de prosa que
Drummond publicou; apareceu em 1944, pouco antes do fim da 2ª Guerra Mundial e
do Estado Novo. Agora, foi republicada na sua forma original, pela primeira vez
desde 1944: sempre apareceu como parte da Obra Completa da Editora Nova
Aguilar, mas foi sofrendo vários cortes, alguns sancionados pelo próprio poeta,
que já no começo removeu duas narrativas para Contos de Aprendiz. A mais
recente Prosa Seleta omite vários itens, entre eles uma seção inteira, Caderno
de notas. Esta nova e benvindíssima edição vem acompanhada de quatro resenhas
do tempo, de Antonio Candido, Sérgio Milliet, Lauro Escorel e Mário da Silva
Brito - todas de uma qualidade invejável, mostrando o enorme respeito que se
tinha pelo poeta já, antes da publicação de "A Rosa do Povo". Há
também dois ensaios críticos, de João Adolfo Hansen e Milton Ohata, e 23
páginas de material bibliográfico, sobretudo sobre a história da publicação das
múltiplas peças de que o livro se compõe. O livro é um avanço esplêndido no
nosso conhecimento e compreensão do poeta, cuja prosa - "a linguagem de
todos os instantes", como ele mesmo diz - fica à altura de qualquer prosa
da época (ou de outras épocas), fato sublinhado já por Antonio Candido no seu
ensaio.
Para mim, a releitura foi um reencontro com um velho amigo,
mas com a (possível) vantagem de uma distância maior, a esperança de entender
melhor, e o fascínio de velhos problemas, que podem, quem sabe, encontrar novas
soluções. Drummond seria o primeiro a questionar meu entusiasmo, com a
consciência profunda que tinha das perdas e ganhos que o tempo traz -
"amar, depois de perder" - e a sua insistência, já em 1944, que
"Hoje não escreveria quase nada do que aí se contém". Mas, sobretudo,
podemos entender melhor o processo de composição do livro, feito de ensaios,
"quase histórias", e apontamentos publicados aqui e ali, em Minas e
no Rio de Janeiro, entre 1925 e 1944, e assim compreender melhor o
"tempo" que, o poeta insiste, é ou deve ser a substância do livro. Confrontando
a crescente descrença dos leitores numa literatura "que se faz à margem do
tempo ou contra ele - seja por incapacidade de apreensão, covardia ou
cálculo", a voz do poeta será precária - "sou eu, o poeta precário /
que fez de Fulana um mito" - mas por isso mesmo é (e continua sendo)
viva."Confissões de Minas" contém dois ensaios que são, sem dúvida, a
melhor introdução ao poeta e à sua poesia. São opostos diametrais. Primeiro,
"Suas Cartas" (publicado em duas partes em 1944 na Folha Carioca), o
artigo extraordinário sobre a correspondência de Mário de Andrade com Drummond
nos anos 20, com as suas citações generosas das próprias cartas, na época
completamente desconhecidas. Imagina-se o efeito que deve ter tido, sobretudo
depois do "terrível exame de consciência que foi a conferência sobre o
movimento modernista", em 1942. Tenho até a impressão que o artigo talvez
seja uma espécie de resposta a essa "insatisfação por não ter feito tudo e
até mais que do que tudo": quase uma retificação histórica. Agora, nosso
conhecimento aumentou. Podemos ler, por exemplo, a comovida reação do próprio
Mário - "Vibrei tanto que fiquei impossibilitado muito tempo de qualquer
espécie de atividade, até ler" - na edição que Drummond fez das cartas,
"A Lição do Amigo", e em "Carlos e Mário", a edição da
correspondência de ambos, editado e fartamente anotado por Silviano Santiago.
Seu oposto polar talvez seja "Vila de Utopia",
publicado em Belo Horizonte em 1933. É o primeiro encontro pleno com
Itabira-do-Mato-Dentro, com a lembrança da cidade natal. É, já, nitidamente, um
encontro com uma perda: "Haverá uma terceira e diversa Itabira? Meu Deus,
como me doeria responder sim à pergunta, e confessar que em 1933 o antigo
menino da Rua Municipal foi encontrar a sua cidade habitada por um pelotão de velhos,
que nada poderiam dizer, e por um exército de rapazes e meninas, para os quais
não tinha nenhuma mensagem." Isto em 1933: o artigo foi escrito para
celebrar o centenário da elevação da cidade a vila. Devo confessar que quando
primeiro li o artigo, há muitos anos, quase nem notei o detalhe, subjugado pela
visão da cidade "utópica", emperrado no tempo: "a cidade não
avança nem recua. A cidade é paralítica." É um efeito que o artigo
procura, mas já com uma profunda ironia. Está cheio da tensão entre passado,
presente, e, sobretudo, futuro - o futuro que traria, nas palavras de "A
Montanha Pulverizada", de "Menino Antigo" (1973), o
"trem-monstro de 5 locomotivas / -- o trem maior do mundo, tomem
nota", e o desaparecimento total da montanha enorme e "eterna",
o Pico do Cauê, toda feita de hematita pura, e que agora é um enorme buraco na
terra. No livro, Drummond informa, numa nota brevíssima, meramente fatual, que
o artigo é de 1933. Não era para menos: em 1944, a Companhia do Vale do Rio
Doce já fora fundada, e Itabira era o foco de uma polêmica acerca da exploração
das jazidas minerais nacionais, no contexto da Guerra, e dos Acordos de
Washington. "Confidência do Itabirano" - "Itabira é apenas um
retrato na parede / mas como dói!" - foi publicado pela primeira vez em
1939, num cenário completamente mudado; não há leitura possível deste famoso
poema sem conhecimento do novo simbolismo da cidade. "Vila de
Utopia", seis anos antes, já explorava esta paisagem da perda: "eu
também sou filho da mineração, e tenho os olhos vacilantes quando saio da
escura galeria para o dia claro."
Entre Vila de Utopia e Suas Cartas, 1933 e 1944, o mundo
mudou. No prefácio (sem título), Drummond distorce ligeiramente os fatos para
sublinhar a natureza da mudança - "Este livro começa em 1932, quando
Hitler era candidato (derrotado) a presidente de república e termina em 1943,
com o mundo submetido a um processo de transformação pelo fogo" (duas das
peças do livro datam dos anos 20); mas, "nesta fase integralmente política
da humanidade" (frase de Suas Cartas), é um deslize perdoável, e
provavelmente intencional. Confissões de Minas acompanha a mudança mais radical
da carreira do poeta: de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro, de funcionário
estadual a alto funcionário federal, de um cinismo autocrítico e angustiado ao
engajamento e ao entusiasmo políticos, da fama local à fama autenticamente
nacional - em suma, de Brejo das Almas, de 1934, a Sentimento do mundo, de
1940, e José, de 1942, já numa edição de toda a sua poesia, publicada pela José
Olympio, a primeira editora a custear a publicação de seus livros, como
sublinha o próprio Drummond na Cronologia da edição Aguilar. De fato, como nos
informa Vinícius Dantas numa nota à sua edição de Plataforma de uma Geração de
Antonio Candido, muitos dos poemas de A Rosa do Povo, publicado em 1945, já
circulavam numa forma semi-clandestina.
Claro que Drummond tinha uma alta consciência desta mudança,
durante o próprio processo - a auto-análise começou cedo, e acompanhou-o ao
longo da carreira e da vida. "Confissões de Minas" contém dois
exemplos cruciais. O primeiro é a famosa "Autobiografia para uma
Revista", publicada, esta edição nos informa, em 1938, na Revista
Acadêmica, e novamente, atualizada, em 1941, desta vez num número dedicado a
Drummond; o próprio poeta disse da revista, editada por Murilo Miranda, que
"refletiu o que a inteligência brasileira tinha de mais vivo, na criação
literária e artística, e na crítica social". Esta
"Autobiografia" estabeleceu os parâmetros da visão do poeta, que
perduram até hoje - as origens burguesas em Itabira, a expulsão do colégio dos
jesuítas em Nova Friburgo ("Perdi a Fé. Perdi tempo"), o poeta
tímido, gauche, auto-crítico, que "não se julga substancialmente e
permanentemente poeta", e, claro, o autor do escandaloso "No Meio do
Caminho", "que serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em
duas categorias mentais". Em Confissões, ele situa esta peça no centro da
importante seção "Na rua, com os homens", logo antes de "Suas
Cartas", que deve ter tido um grande efeito sobre a reputação do amigo
também.
Logo a seguir vem "Estive em Casa de Candinho",
mera crônica talvez, mas que nos apresenta ao mundo artístico e intelectual
para a qual Drummond entrou quando emigrou para o Rio em 1934, e que descreve uma
festa na casa de Candido Portinari, com uma "imensa macarronada".
Apareceu num número da mesma Revista Acadêmica, dedicado ao pintor, em 1940, e
cuja capa essa nova edição reproduz. "Ah, é Drummond", diz o
anfitrião quando entra, detalhe que sublinha, muito levemente, a
(des-)importância do poeta neste mundo. Por mais que este "homem de
frágeis omelettes" fique na sombra, "calado e gauche" ao lado de
figuras como Bandeira, Mário ou Murilo Mendes, ele é parte integral de um mundo
que não é mais mineiro, e até começa a ultrapassar os limites nacionais. Muitos
detalhes, inclusive a presença de um misterioso M. Offaire (o adido cultural
francês?) estabelecem esta atmosfera de abertura. O mesmo acontece com os
artigos restantes de Na Rua, com os Homens - sobre Antonio Simões dos Reis,
García Lorca, François Mauriac, José Boadella, e William Berrien. Difícil
imaginar um elenco mais heterogêneo - um bibliógrafo brasileiro, um poeta
espanhol morto e famoso, um romancista francês e católico, outro poeta espanhol
vivo e desconhecido, e um professor americano, empregado da Divisão Cultural da
Fundação Rockefeller. Esta heterogeneidade talvez fosse proposital. A
"timidez" ou "humildade" de Drummond foi muitas vezes um
jeito de afirmar a sua própria independência e de esquivar categorizações
fáceis; é possível, por exemplo, ser de esquerda e apreciar a simpatia e a
companhia de um representativo da política da "boa vizinhança".
A segunda tentativa de "autobiografia", ou de
aproximação à crise dos anos 30, é "Um Escritor Nasce e Morre",
publicado em 1939, na Revista do Brasil, e removido para Contos de aprendiz em
1951. Relendo-o agora no seu contexto original, acho que foi uma decisão
infeliz - os editores têm toda a razão ao restaurar a integridade do livro. Este
tem uma unidade e uma ordem reais, se bem que relativas - como um móbile, na
expressão feliz de Milton Ohata, em que as partes se refletem, se
contrabalançam de várias maneiras: parece que Drummond, já no fim da vida,
tinha planos de restaurar o livro. "Um Escritor Nasce e Morre" conta
a crise dos anos 30 como se tivesse sido um evento apenas
"literário", num sentido comicamente estrito. O poeta, ao
"nascer" na aula de D. Emerenciana Barbosa, em Turmalinas, compara-se
a outro Barbosa, "um homem pequenininho, de cabeça enorme, que fazia
discursos muito compridos e era inteligentíssimo." Esse poeta agora morreu
- "Dou minha palavra que morri, estou morto, bem morto".
"Renasceu", é claro,mas fora do texto, para a vida, e para outro tipo
de contacto com a realidade.
Um dos fascínios desta nova edição é que permite, ou
incentiva, uma nova apreciação da fase mineira do poeta - não é por acaso que o
livro se intitule Confissões de Minas. Salta aos olhos uma preocupação com a
morte e o fechamento nos ensaios e apontamentos escritos antes da mudança (que
podemos datar no fim de 1934). Nas palavras de "A voz pelo telefone",
da última seção, Caderno de Notas, e publicado em 1932: "Mas nós estávamos
em Minas Gerais, Brasil, país de caminhos fechados, país irremediável..."
Os três ensaios que abrem "Na Rua, com os Homens" são homenagens,
lembranças de três mineiros que morreram jovens, Alberto Campos, irmão mais
novo de Milton Campos, Ascânio Lopes, do grupo da Verde de Cataguases, e João
Guimarães, da mesma família de Bernardo Guimarães, Alphonsus de Guimaraens, e
João Alphonsus. Mas cuidado: a mesma empatia com um lugar provinciano,
católico, paralítico, reaparece em 1942, no ensaio - introdução a uma tradução
de Thérèse Desqueyroux - sobre Mauriac.
É um processo complexo que, na sua totalidade, resta por
estudar. Para a outra crise famosa, a que levou de A Rosa do Povo para Claro
Enigma, temos o excelente livro de Vagner Camilo, Da Rosa do Povo à Rosa das
Trevas (2002). Lentamente, estamos juntando as peças para esta outra história.
Temos as edições das cartas de Mário e Drummond, a Bibliografia comentada de
Fernando Py, que chegou até 1934, e o Inventário do arquivo do poeta, estes
ambos publicados pela Casa de Rui Barbosa. Temos até uma primeira tentativa de
biografia, a de José Maria Cançado (Os Sapatos de Orfeu), que não será ideal,
mas tem detalhes inesquecíveis: a imagem, por exemplo, do poeta, nos seus
primeiros anos cariocas, perambulando aos fins de semana com a filha Maria
Julieta pelo Cemitério São João Batista, ou pelas favelas atrás de Copacabana
(morte e vida, novamente...).
O processo fascina, em boa parte pelos seus muitos níveis.
Vamos do assunto controvertido do poeta de esquerda, funcionário do Estado
Novo, até os constantes poéticos que subjazem as mudanças "de
superfície" (mas que no entanto foram inteiramente reais, não só
"literários", como fica patente nas cartas do período que
conhecemos). No seu ensaio no fim da edição, João Adolfo Hansen argumenta que
este poeta da passagem nunca abandona uma poética da negatividade - outra forma
da precariedade tão importante em A rosa do povo, e que explica a presença
clara de Mallarmé mesmo no livro "engajado" de 1945. Escolhe para
provar o seu argumento O Livro Inútil, de Caderno de Notas, apontamento curto,
fascinante, publicado em 1935, no que imaginamos seria o momento mesmo da
crise, o seu auge (ou o seu nadir). A grande virtude deste artigo (e diria que
um sine qua non de toda apreciação plena da obra drummondiana) é que recusa-se
a dividir o poeta em dois, o engajado e o esteta, que inexistem em estado puro.
O desafio é, e continua sendo, poder transitar entre este nível de profundidade
e/ou abstração, e a história, a vida diária, em comum, em que o poeta tanto
insiste. Qualquer história destes anos terá que reconciliar os vários Drummonds
presentes aqui em Confissões de Minas, nas cartas, na vida pública e privada, e
sobretudo na poesia ("a linguagem de certos instantes, e sem dúvida os
mais densos e importantes da existência"). Sobretudo, tentará entender um
fenômeno que Antonio Candido já apontava, na Plataforma de uma Geração, de
1943: "Carlos Drummond representa essa coisa invejável que é o
amadurecimento paralelo aos fatos; o amadurecimento que significa riqueza
progressiva e não redução paulatina a princípios afastados do Tempo." O
Tempo, novamente.
JOHN GLEDSON, CRÍTICO INGLÊS, MAIOR ESPECIALISTA EM DRUMMOND
E MACHADO DE ASSIS NO EXTERIOR, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE
LIVERPOOL. PUBLICOU, ENTRE OUTROS, POESIA E POÉTICA DE CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE (DUAS CIDADES) E INFLUÊNCIAS E IMPASSES - DRUMMOND E ALGUNS
CONTEMPORÂNEOS (COMPANHIA DAS LETRAS).
Posted: 22 Oct 2011 03:52 PM PDT