quinta-feira, 22 de agosto de 2019

'...a turbulência que atravessa os EUA...'




Alguns falantes tendem a entender "os Estados Unidos" como uma unidade, uma coisa só


Dia desses, num dos programas de uma das emissoras que carregam o "News" no nome, ouvi a frase que dá título a esta coluna. Na verdade, não se disse "os EUA", e sim "os Estados Unidos".
Como se sabe, em se tratando do padrão formal da língua, a expressão "Os Estados Unidos" (quando sujeito) exige o verbo no plural, já que o artigo ("os") aparece flexionado no plural. Em sendo assim, são do padrão culto construções como "Os Estados Unidos certamente nunca imaginaram que um dia passariam pelo que estão passando" ou "Ao longo da história, os Estados Unidos produziram mais guerras do que qualquer outra coisa".
Na outra ponta, isto é, no uso efetivo da língua, sobretudo na fala, constata-se que não são raras construções como "Os Estados Unidos certamente nunca imaginou que..." ou "Ao longo da história, os Estados Unidos produziu mais guerras do que...", em que o verbo é posto na terceira pessoa do singular. A explicação para esse fato é simples: alguns falantes tendem a entender "os Estados Unidos" como uma unidade, ou seja, como uma coisa só, um país, e aí fazem a concordância com a ideia e não com a forma. Muita gente chega a dizer "o Estados Unidos" (sim, com o artigo no singular), o que evidencia ainda mais a ideia de que se considera o nome próprio "Estados Unidos" como uma unidade, uma coisa só.
Como já afirmei diversas vezes neste espaço, explicações como as que acabamos de ver dizem respeito mais à linguística do que à gramática. Como se sabe, a linguística não diz como deve ser; diz como é (e tenta explicar por que é como é).
Posto isso, convém dizer que, em linguagem formal, a construção predominante é a que apresenta o verbo no plural: "Os Estados Unidos são um dos três países que formam a América do Norte"; "Os Estados Unidos ainda conseguem aplacar sua crise vendendo seus títulos". Pois bem. E como fica a frase que está no título desta coluna? Quem atravessa quem? A julgar pelo que ocorre no padrão formal da língua, diz-se que a turbulência atravessa os Estados Unidos, varre o país, percorre-o de ponta a ponta, mas... Mas, levando-se em conta o contexto em que a frase foi proferida, parece que se queria dizer que são os Estados Unidos que atravessam a turbulência, isto é, enfrentam essa turbulência, são atingidos por ela.
Em outras palavras, quando se analisa a construção em questão sob a ótica do padrão formal da língua, só se pode entender que é a turbulência que atravessa, atinge, varre os Estados Unidos. Para que se entendesse que são os Estados Unidos que atravessam a tal turbulência, seria necessário flexionar no plural a forma verbal escolhida: "...a turbulência que atravessam os Estados Unidos". Melhor mesmo seria a ordem direta: "...a turbulência que os Estados Unidos atravessam".
Fenômeno semelhante ao que se vê com "Estados Unidos" se dá com a palavra "óculos", que, no português do Brasil, há muito tempo virou substantivo que designa uma coisa só, uma unidade ("o óculos", "meu óculos"). Apesar desse uso mais do que difundido, as edições mais recentes dos nossos mais importantes dicionários e o "Vocabulário Ortográfico", da ABL, continuam registrando "óculos" como "substantivo masculino plural".
O "Houaiss", por exemplo, diz que é "erro a discordância de número (um óculos) que se tem vulgarizado no português coloquial do Brasil (formas corretas: uns óculos, meus óculos, um par de óculos)". O "Aulete" diz algo semelhante. É isso.

PASQUALE CIPRO NETO - 20 Oct 2011 




Escravos da infantilidade



Sábado à tarde, supermercado lotado. No caixa, paciência para os carrinhos abarrotados, mas dessa vez precisei de uma dose extra. À minha frente, ar aparvalhado, um jovem pai de família, forte e normal, esperava imóvel seus produtos passarem no caixa. Em pé, olhar perdido, boca entreaberta, fitava o vazio, só faltava o fio de baba.

Lembrava aquelas crianças carregadas junto com a família para um lugar que não lhes interessa, distraídas, alheias. Nesse supermercado existem empacotadores prestativos, mas eles não davam conta. Não custa ajudar, ir organizando, embalando junto.

No comportamento passivo do meu companheiro de caixa, impossível não evocar a figura do nobre, sendo vestido, banhado, alimentado e conduzido nos braços de seus servos ou escravos, um eterno bebê. Quanto mais evoluídos nos tornamos, caminhamos em direção à autonomia, prescindimos de serviçais. É assim com as crianças, que aprendem a cuidar de si cada vez melhor. Mas será que me comporto diferente quando consigo pagar um hotel mais estrelado?

Quem não curte café na cama macia, toalhas limpas, massagem, chofer? O que é um restaurante, senão ficar sentado enquanto o solícito garçom se dedica a atender nossos caprichos? São ocasiões em que voltamos no tempo, nas quais amar é maternar, cuidar. À vezes, ser independente exaure, queremos um mimo.

Trabalhos associados aos cuidados maternos primários, nos quais adultos adquirem privilégios de crianças, sempre foram desvalorizados. Mulheres, pessoas socialmente desvalorizadas, escravos, ocuparam os bastidores da nossa vergonha.

Na verdade, aquele que abre mão da autonomia também se abstém da liberdade que ela proporciona, da intimidade, da privacidade. Mães, pobres e escravos tornaram-se ralé da vida pública, escondidos no armário de nossa carência afetiva, associados ao medo de ficar sozinhos. A infantilidade é um segredo.

Entregar-se nos braços de alguma comodidade é uma delícia, mas como exceção, descanso de guerreiro, conquista. É gostoso, um luxo que só é tal se não for um hábito. Mas no dia a dia, a dependência é uma forma de alienação, uma existência empobrecida.

Que dizer de alguém, aparentemente crescido, que precisa se fazer adotar pelo primeiro empacotador franzino que encontra pela frente? Por favor, supermercado não é spa, há adultos na fila!


DIANA CORSO -  12 Oct 2011 

Álbum de figurinhas




RIO DE JANEIRO - Meu neto João Ruy, que é português e mora em Lisboa, fez seis anos outro dia e recebeu do Brasil seu presente favorito: um álbum de figurinhas -no caso, o do Campeonato Brasileiro- e centenas de pacotinhos com as respectivas. É um brinquedo solitário, porque ele não tem com quem trocar duplicatas ou disputar no bafo-bafo. E, claro, só consegue identificar os jogadores do Flamengo, por quem torce ardentemente quando vem ao Rio, ou algum outro que atue pela seleção.
Mas João Ruy não se importa, e passa dias colando cromos de clubes e jogadores para ele desconhecidos. O prazer de completar uma página supera o fato de que muitos daqueles times e indivíduos continuarão a ser rostos e camisas no vazio, e que ele nunca os verá jogar.
Diante da informação de que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concedeu registro ao PSD (Partido Social Democrático), fundado pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, e que este é o 28º partido na fosca constelação política brasileira, coloquei-me no lugar de João Ruy. Imaginei como seria um álbum de figurinhas sobre os partidos.
Cada página dupla seria dedicada a um deles. Traria informações como data de fundação, número de filiados, colocação nas últimas eleições, e mostraria suas cores, mascote, seus 20 principais nomes, o recordista em mandatos etc. -cada qual numa figurinha, como no álbum do Brasileirão.
A exemplo de João Ruy, eu e milhões de brasileiros colaríamos figurinhas de gente que, em grande maioria, nunca vimos e, no caso, é melhor mesmo não ver. Um bando de ninguéns sem representatividade, homiziados em partidos de cujas siglas só se ouve falar quando discutem com o governo ou com a oposição sobre quem dá mais pelos seus miseráveis votos.


RUY CASTRO -  30 Sep 2011 

Abaixo o sutiã



SÃO PAULO - "Amor, eu estourei o limite do cartão de crédito. Do seu e do meu." Vestida e afetando culpa no tom de voz, Gisele Bündchen dá a má notícia ao marido imaginário. Essa é a maneira errada de abordar o assunto. A maneira certa, explica a propaganda de lingerie estrelada pela modelo, é de calcinha e sutiã, requebrando com a mãozinha na cintura e a fala sensual.
Se a propaganda está no ar, é porque deve ter alguma eficácia. Mas não é preciso muito para perceber que estamos diante de mais uma fashion-cafajestada, entre tantas outras do mercado da publicidade, basta ligar a TV para constatá-lo.
Pior, no entanto, do que o apelo ao machismo mais vulgar é a disposição do governo para combatê-lo recorrendo à censura. A Secretaria de Políticas para as Mulheres acionou o Conar, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, para tirar a peça do ar. É uma medida obscurantista, além de desencadear o efeito contrário ao pretendido por essas feministas de tesoura.
A propaganda, diz a secretaria, reforça "o estereótipo equivocado da mulher como objeto sexual de seu marido e ignora os grandes avanços alcançados para desconstruir práticas e pensamentos sexistas". Sim, estamos de acordo -mas e daí?
Em nome de que a propaganda deve estar necessariamente em sintonia com valores progressistas ou submetida à visão igualitária da relação entre o homem e a mulher?
Como conciliar a defesa da emancipação e dos direitos da mulher com a opção regressiva e autoritária pela censura? O que, afinal, é mais nocivo e perigoso para quem aspira viver numa sociedade com menos discriminação e mais esclarecida: a moral da história do anúncio ou a iniciativa do governo para bani-lo da tela?
Com sua cruzada, a ministra Iriny Lopes folcloriza as atribuições de uma pasta que tem assuntos reais para enfrentar. Só falta lançar uma campanha de esclarecimento público: Gisele Bündchen faz mal à saúde.



FERNANDO DE BARROS E SILVA - 30 Sep 2011

O maior medo do homem



Não é a morte o que mais assusta o homem. É o acaso. Contra o acaso, o homem constrói sistemas de pensamento, filosofias, mitologias, religiões. Para se proteger do acaso, o homem criou Deus. Aí está: o homem se diz criatura, quando é o criador.

Mas crentes e carolas não precisam se ouriçar, não estou pregando o ateísmo. Porém, é preciso entender que, ainda que Deus exista, Ele continuará sendo uma abstração. A ideia de Deus tem de ser aprendida. E, se tem de ser aprendida, tem de ser concebida. Criada. Logo, Deus é criatura. Zeus, Amon, Jeová, Astarte, Cibele, Alá, Tupã, seja qual for o nome do ser divino, ele tem de ser concebido pelo homem, junto com sua mitologia.

E por que o homem teve de criar Deus? Por que existe essa necessidade em todo lugar e em todo tempo? Exatamente para que o homem possa se defender do acaso. O acaso é tão apavorante, que o homem criou até o diabo para combatê-lo.

É preferível enfrentar uma legião de demônios com intenções bem claras e regras de comportamento definidas do que simplesmente cogitar a hipótese de que as coisas possam acontecer sem que sejam movidas por razão alguma.

Você precisa encontrar um desígnio oculto por trás de qualquer ocorrência da sua vida. Toda consequência teve uma causa. E, se toda consequência tem uma causa, em tudo podem ser vistos méritos e culpas. Você faz tudo certinho, age bem, é uma boa pessoa, não faz nada de errado?

O Todo-Poderoso o recompensará com uma vida venturosa. Você faz coisas erradas, oprime o próximo e rouba a merenda escolar das criancinhas? Você será punido em algum momento, você não perde por esperar as terríveis consequências de seus atos.

É assim que deveria ser, se o acaso não existisse. Se o mundo fosse justo. Mas o acaso existe. Mas o mundo não é justo. Coisas ruins acontecem a todo momento com pessoas que não merecem sofrer. Coisas boas acontecem a todo momento com pessoas que não merecem a felicidade.

Canalhas são homenageados, incompetentes ganham aumento, oportunistas usufruem da fama, cofres caem do oitavo andar, vírus são contraídos pelo ar, rádios tocam axé a cada minuto. A vida é cheia de perigos e você não pode fazer nada para evitá-los. O mundo está repleto de cafajestes e muito provavelmente a maioria deles jamais será punida. Não adianta rezar. Não adianta cultivar superstições. Não adianta esperar pela intervenção transcendental.

Adianta, um pouco, prevenir-se. Pessoalmente, há muitas formas de prevenção. A principal delas é zelar pela saúde. Comunitariamente, o Estado tem a função de fazer a prevenção. No caso de o Estado estar acometido de alguns desses males, como a corrupção endêmica brasileira, só se pode, mesmo, fiscalizar.

E a fiscalização só é viável quando ocorre em âmbito municipal, quando o cidadão encontra a autoridade na farmácia, no supermercado, na igreja, no estádio de futebol, e o olha na cara, e cobra, com o mero olhar, o efeito de seus atos. A municipalização não tem poder divino, não evita a corrupção, não impede a ação de cafajestes nem as tramas incompreensíveis do acaso. Mas ajuda a preveni-los.

DAVID COIMBRA -  21 Oct 2011 





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Quanto mais pobre o cidadão, mais impostos



A partir da declaração do megainvestidor americano Warren Buffett, a terceira maior fortuna do mundo, pedindo aumento dos impostos para os mais ricos nos Estados Unidos, vários milionários europeus também passaram a defender essa medida naquele continente. Nesse contexto, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, encaminhou ao Parlamento proposta para que os ricos que tenham renda anual acima de € 500 mil passem a pagar uma sobretaxa provisória de 3%.

Esse fato é um bom motivo para discutirmos a carga tributária brasileira, já que nosso país é um dos mais injustos do planeta na cobrança da tributação. Os mais pobres são quem paga, proporcionalmente, mais tributos no Brasil, e não os ricos.

Nesse contexto, é importante lembrar que há um projeto de reforma tributária na Câmara dos Deputados que permanece "adormecido", aliás, como ocorreu com todos os outros elaborados nos últimos anos no Brasil. O debate em torno desse assunto no país acaba centrado em grande parte no aspecto da diminuição dos impostos porque a carga tributária é alta em relação aos serviços que o Estado oferece. Os que mais defendem a diminuição dessa carga são os empresários, baseados no argumento de que pagando muitos impostos seus negócios são dificultados. Fica praticamente excluída do debate a maioria da população brasileira e, principalmente, sua camada mais pobre - proporcionalmente a que paga mais impostos -, que não tem a menor ideia de quanto eles pesam no seu bolso.

Estudos desenvolvidos pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) comprovam claramente tal situação. Segundo um levantamento de 2008, pessoas cuja renda mensal familiar alcançava até dois salários mínimos comprometiam 53,9% de seus ganhos com o pagamento de tributos, enquanto que outras, com renda superior a 30 salários mínimos, comprometiam apenas 29%.

Outro dado de destaque nesse estudo do Ipea: um trabalhador que recebia até dois salários mínimos precisava trabalhar 197 dias para pagar os tributos, enquanto outro que ganhava mais de 30 precisava de três meses a menos de trabalho, ou exatos 106 dias.

Essa situação ocorre porque cerca de 50% da nossa carga tributária é indireta, isto é, incide sobre o consumo, atingindo indiscriminadamente toda a população, independentemente da renda e da riqueza de cada um. A cobrança da maioria dos tributos vem embutida no preço final das mercadorias. Vejamos um exemplo significativo:

Um cidadão que ganha R$ 1 mil por mês e coloca R$ 100 de gasolina no tanque do seu carro está pagando R$ 53 de impostos. Enquanto outro que ganha R$ 30 mil e abastece o tanque pelo mesmo valor também paga os mesmos R$ 53, levando isso à injustiça apontada.

Nos países capitalistas desenvolvidos, ao contrário daqui, a maior parte da carga tributária é direta e recai sobre a renda, a riqueza, a propriedade e a herança. Esses critérios são mais justos do que os existentes no Brasil porque tributa diretamente quem ganha mais e tem melhores condições de pagamento.

Segundo dados da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), nos Estados Unidos a renda é responsável por 49% da carga tributária. Se comparado com o Brasil, que é de 19%, naquele país é 150% maior que a nossa. A média desse tributo nos países pertencentes à OCDE é de 37%, quase 50% maior que a brasileira.

Sobre a propriedade a carga americana é 10%, cerca de três vezes maior que a brasileira, que é de 3%. Na OCDE a média desse tributo é 6%, o dobro da nossa. Em relação ao consumo, ocorre justamente o inverso. Enquanto na carga tributária brasileira esse tipo de tributos representa em torno de 47%, na americana representam 16% e na OCDE ela representa na média, 37% do total. Esses dados confirmam que nos países desenvolvidos há muito mais justiça tributária que no Brasil.

Dois exemplos ilustram as diferenças entre aqueles países e o Brasil. Na Inglaterra, por exemplo, o imposto sobre a herança é cobrado há mais de 300 anos. Quando da morte da princesa Diana, em 1997, os jornais noticiaram que o fisco inglês cobrou de sua herança o imposto de US$ 15 milhões, metade dos US$ 30 milhões deixados para seus filhos. Naquele país, a taxação é apoiada até mesmo pelos conservadores. Segundo matéria da revista "Veja", publicada em setembro de 2007, o primeiro-ministro inglês Winston Churchil, que conduziu a Inglaterra na luta contra os nazistas, costumava dizer que o imposto sobre a herança era infalível para evitar a proliferação de "ricos indolentes". Por outro lado, no Brasil, o Imposto Territorial Rural - ITR arrecadado em todo o ano de 2007 e em todo território nacional, foi menor do que dois meses de arrecadação do IPTU da cidade de São Paulo. Esses dados falam por si.

Não há dúvida que esse é um tema delicado e já causou ou foi pretexto para inúmeras revoluções. Dois exemplos são significativos. A data nacional da independência americana, 4 de julho, faz lembrar que uma das razões que foram amadurecendo para o início da guerra de libertação foi a cobrança de impostos como o Sugar Act (1764), do Stamp Act (1765) e o Tea Act (Lei do Chá, 1773). No Brasil, a Inconfidência Mineira, tentativa de libertar o Brasil de Portugal, que resultou no enforcamento do herói Tiradentes e no desterro das lideranças envolvidas no movimento, teve como motivo principal da revolta a "derrama", isto é, a cobrança de impostos atrasados feita pelos colonizadores portugueses aos moradores de Minas Gerais.

Diante dessa realidade, é necessário e urgente abrir um espaço na mídia e na sociedade brasileira para discutir a enorme injustiça que há entre nós e, consequentemente a necessidade de aprovação de uma reforma em que os tributos diretos pesem mais que os tributos indiretos na composição da carga tributária. Isso significaria uma das formas mais importantes de redistribuir a renda entre nós.

Finalmente cabe uma pergunta: por que no Brasil os banqueiros, grande empresários do agronegócio, das empresas nacionais e multinacionais, não tomam a iniciativa que foi tomada pelos ricos nos EUA e na Europa, isto é, propõem uma sobretaxa sobre seus ganhos?

Odilon Guedes é mestre em economia pela PUC/SP. Professor universitário e membro do Conselho Regional de Economia-SP. Foi presidente do Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo, vereador e subprefeito de São Paulo.

 21 Oct 2011 

Pensamentos repetitivos




Minha geração cresceu buscando liberdade, bem diferente dos adolescentes de hoje, que trocaram o idealismo por um notebook. Um jingle da época dizia que liberdade era uma calça velha, azul e desbotada, mas isso era apenas uma metáfora para uma liberdade que significava morar sozinho, trabalhar e tomar as próprias decisões – os alicerces para a independência.

O tempo passou e nossa independência se adequou às responsabilidades da vida adulta. Casamento, profissão, paternidade: nos mantivemos livres, pero no mucho. A liberdade plena passou a ser exercitada apenas em área restrita: dentro da nossa cabeça. Ainda podemos pensar o que quisermos. Nosso poder de criatividade segue intacto. E incentivo para exercitar o cérebro nunca faltou: livros, jornais e uma rede de informações que cresce a cada dia.

No entanto, em vez de usar o cérebro como uma forma de libertação, ficamos escravizados por ele. Muitos preferem segurança à liberdade, e então criam um pacote de pensamentos repetitivos ao qual se agarram por décadas, sem nem questionar, sem nem se dar conta de que talvez já não pensem mais daquela maneira.

“Nunca vou conseguir fazer isso”, “Não fui feito para tal coisa”, “Jamais financiarão essa minha ideia maluca”, “Meu pai não me perdoaria”, “Fulana não vai mudar” são pensamentos recorrentes que impedem que arrisquemos.

Não passa pela nossa cabeça que o pai perdoaria, sim, e que ideias malucas podem encontrar incentivadores, e que só é impossível conseguir aquilo que não ousamos tentar. Mas você topa pensar diferente do que pensava antes? É esse o acordo.

Ninguém vai virar um Einstein ou um Steve Jobs por desamarrar-se de suas crenças imutáveis. Mas há um ganho real em ser capaz de abandonar os pensamentos de estimação, mesmo que considere estar traindo a si mesmo. Ora, se as pessoas não conseguem nem mesmo manter suas juras de amor eterno ao parceiro, por que precisam manter juras de amor eterno a um pensamento estagnado?

Pode-se viajar pelo mundo, ir para um lado, para o outro, mas quem continua pensando sempre igual, quem não reavalia suas convicções, permanece imobilizado.

Abandonar uma postura, reposicionar-se, experimentar. Esse é o verdadeiro espírito de liberdade que Steve Jobs deixou como herança, e esse espírito é mais importante que a invenção de iPods, iPhones e iPads, ferramentas modernas, mas que também são manuseadas por gente travada. Pensar diferente não é criar ou usar tecnologia: é recriar-se e usar-se. E isso é possível a qualquer um.


MARTHA MEDEIROS -  12 Oct 2011 

O que há numa escrita?




A todos nós foi dada a capacidade de falar. E a alguns a de escrever essa forma admirável de pensar. Nela, falamos sem produzir sons, mas desenhando símbolos. O lado de dentro importa mais do que o de fora. É normal escrever para si mesmo já o falar nos leva a um hospício. Na fala e na escrita há ouvintes e leitores, mas na fala o interlocutor deve estar presente, pois as palavras exigem o outro. Já na escrita, é preciso desenrolar o pergaminho, abrir o livro ou a carta para ouvir o seu autor (ou autores) e descobrir o seu espírito e as suas intenções. Ou imaginar o eventual leitor. Num caso, o som tem parentesco com o barulho e o caos; no outro, há aquele silêncio que é a marca maior do ato de escrever - essa nobre, essa soberana, essa orgulhosa e altruística ação que só nós, humanos, conhecemos, pois o escrever fica, mas o falar passa...

* * *

Nesta semana rotineira com correios e bancos em greve, fico fascinado com a novidade de que o universo se expande - tal como o capitalismo chinês - em alta velocidade. Os chamados astrofísicos são mitômanos levados a sério, enquanto os do cinema e da televisão são jogados no lixão dessa nossa "baixa-modernidade", como me ensinou o Eduardo Portella. No caso dos astrofísicos, impressiona-me a sua obsessão com as origens do universo, algo que eles compartilham com os modestos pensadores tribais, os quais são parte de minha primeira vida como etnólogo, quando eu corria atrás de índios nas fronteiras de um Brasil que ainda não tinha conseguido morder o próprio rabo.

Ouvi, transcrevi e li à exaustão mitos de origem. Aliás, a mais celebrada teoria do mito - a do consagrado Claude Lévi-Strauss -, escrita no início dos anos 50 e desenvolvida na sua fabulosa tetralogia intitulada Mytologiques (publicada entre 1964 e 1971), os mitos existem para responder a perguntas sem resposta. Por que o mundo foi inventado? De onde veio a humanidade com a sua moral e os seus meios de sobrevivência? Como foi que os animais se distinguiram dos homens? Por que são necessários dois seres humanos para fazer um? De onde veio a morte se no início dos tempos a humanidade era tão imortal quanto os membros da Academia Brasileira de Letras?

Os contadores de mitos das sociedades sem escrita, sem constituição e sem cálculos complexos (até hoje estigmatizadas como "selvagens" e "primitivas"), dizem que o humano foi inventado num tempo imemorial, implantado pelas palavras de uma língua cuja origem é, por sua vez, contada num outro mito pois, conforme aprendi com Lévi-Strauss e, sorry..., com Thomas Mann, um mito pensa e remete a outro mito, tal como a música, os livros, os deuses, a poesia e o amor se pensam indefinidamente entre si. Assim, eles sabem como, mas não quando, o mundo surgiu. Já os nossos astrofísicos são mais apaixonados pelo quando do que pelo como.

Para qualquer ser humano, pensar em termos de nano-segundos é impossível, do mesmo modo que é humanamente inconcebível imaginar uma unidade temporal para além de 10 mil anos. Pois, tirando os poetas que, como diz Kundera, dizem tudo, ninguém pode ter um sentimento de milhões de anos. Só uma fórmula matemática traduz esse tempo intemporal. Mas entre a fórmula científica e a fórmula que eu ouvia de Tia Amália quando iniciava suas histórias - "Isso aconteceu no tempo que os animais falavam...", eu acho mais razoável e - sorry novamente - até mesmo mais racional, ficar com Titia...

* * *

Fiz uma conferência e ganhei uma caneta-tinteiro. Na viagem de volta, preso na dura solidão coletiva de um avião lotado pelo duopólio aéreo instituído no lulo-petismo, escrevi o meu velho nome. Fui imediatamente remetido a Juiz de Fora e a uma humilde escola do bairro dos operários, quando a professora nos iniciou na nobre arte de escrever à tinta. Tomei contato com as penas de metal que, na ponta de um cilindro de madeira da pior qualidade (providenciada, é claro, pelo Ministério da Educação e Cultura), serviam como instrumentos de escrita depois de serem mergulhados nos frascos cheios daquele misterioso líquido azul-marinho.

A mestra explicava que escrever à tinta beirava o "eterno". Com o lápis tudo podia ser apagado como se não tivesse existido, exatamente como as palavras faladas a serem levadas pelo vento. Mas com a tinta, esse material perigoso (e marcante) que agora teríamos que usar, as coisas ficavam. Qualquer descuido, caía um pingo no papel, manchando-o e dele tirando a pureza feita em branco; por outro lado, se a "pena" ficasse saturada, a escrita transbordava o papel. Fomos depois apresentados a um personagem importante: o mata-borrão que como um guardanapo à boa mesa, acompanhava o ato de escrever à tinta.

Escrever à tinta dá asas à fantasia de imortalidade. É a antessala do livro, do decreto, da placa de bronze e do "documento". Pois entre nós - humanos -, a execração, o ódio, e o insulto cabem também ou até mais no papel do que na fala. A fala, sendo curta e exigindo a pessoalidade, tem mais limites do que a carta escrita com maldade e ódio, vingança e ressentimento. Ademais, a "escrita", como os decretos e as leis, pode ser anônima ou coletiva. Pois como aprendi com aquela humilde professora, o que falamos fica na memória, mas o que foi escrito permanece. Seja como um ato de amor ou como prova de arrogância e de transtorno mental. Cuidado, dizia ela, com o que você escreve à tinta - com aquilo que, impresso, não pode ser apagado.



 ROBERTO DaMATTA.: 12 Oct 2011 

Placa para Tenório




RIO DE JANEIRO - No dia 18 de março de 1976, o pianista brasileiro Francisco Tenório Jr., 33, estava em Buenos Aires para uma temporada no Teatro Rex com seus patrícios Vinicius de Moraes e Toquinho. Naquela noite, saiu do hotel Normandie, onde estavam hospedados, e deixou um bilhete: "Vou comprar cigarros e um remédio. Volto já". Não voltou -nunca mais.

Fora confundido com um militante procurado pela ditadura argentina e levado preso. Por falar bem espanhol e com sotaque portenho, não acreditaram que fosse brasileiro, músico e inocente. Passaram a torturá-lo, com a colaboração, a partir do quinto dia, de agentes brasileiros da Operação Condor, braço internacional das ditaduras argentina, brasileira, chilena e uruguaia.

Nove dias depois, seus algozes se convenceram de que tinham se enganado. Mas, já então, Tenório estava cruelmente machucado. Pior: vira o rosto deles. Não podiam devolvê-lo à rua. O jeito era matá-lo, o que fizeram com um tiro, no dia 27. Dali Tenório foi dado como "desaparecido", e o Brasil nunca se empenhou em elucidar o fim de um de seus filhos mais talentosos -autor, em 1964, aos 21 anos, do grande disco instrumental "Embalo".

Os detalhes gravíssimos sobre a morte de Tenório só começaram a aparecer dez anos depois, em 1986, e mesmo assim porque um membro da inteligência argentina resolveu contar. Pois, agora, os argentinos, que não estão varrendo a sua ditadura para debaixo do tapete, nos darão em breve nova lição.

No dia 16 de novembro, às 14 h, a cidade de Buenos Aires, por iniciativa do deputado portenho Raul Puy, homenageará Tenório com uma placa na fachada do hotel Normandie, na rua Rodríguez Peña, 320, de onde ele saiu para morrer. Ela dirá: "Aqui se hospedou este brilhante músico brasileiro, vítima da ditadura militar argentina".

RUY CASTRO - 22 Oct 2011 


Poema na madrugada



O fotógrafo Tiago Trindade, dono de um estúdio e credenciado por diversas associações jornalísticas, me escreve, reclamando de que quer fotografar eventos no interior da Igreja São José, em Porto Alegre, mas o pároco não lhe concede licença. Lá só podem atuar fotógrafos credenciados pela igreja, que já são muitos, não havendo mais lugar para outros.

Escreveu-me para quê? Que posso fazer por ele? A não ser talvez dar este destaque que estou dando neste canhão que é esta coluna.

Mas eu escrevi isso porque quero concluir o seguinte. Noto fotógrafos brigando por fotografar casamentos em igrejas, fazendo de tudo para fotografar casamentos nas igrejas.

São ansiosos por fotografar casamentos, mas não vejo nenhum fotógrafo vir até mim para fotografar o meu celibato.

Fotografariam cada cena do meu celibato!

Essa inspiração me surgiu agora,

De madrugada:

Eu já sei o caminho.

Por isso não tenho surpresas.

Já sofri ingratidões,

Já fui traído, igualmente traí.

Agora mesmo estou passando por grande infortúnio.

E nem sei como reuni forças para enfrentá-lo.

Outra vez, me aprisionaram

Numa camisa de força

De que ainda não pude me livrar.

Tristeza, poxa, se fosse só tristeza

Que eu tivera!

Bati contra coisas mais graves

Povoando a minha mente.

Tive agonias. Quase tombei

Em face de calúnias e mentiras

Que inventaram sobre mim.

Mas ainda nos lábios das gentes

Afloram muitas verdades a meu respeito.

Fui vaiado mas também

Tive aclamações.

Dividi o palco, como intruso bem-vindo,

Com grandes artistas.

Quase não posso sair às ruas,

Todos querem me saudar.

Valeu a pena, aqui estou ainda

A colher os frutos e os castigos

Dessa longa caminhada.

Quantas vezes ouvi dela: “Não me deixa

Nunca, pelo amor de Deus!”.

E quantas vezes eu disse a ela:

“Não me deixa nunca, pelo amor de Deus”.

Nos deixamos.

Vivi, sofri, tive filhos, tenho netos

Que vão me suceder nas esperanças.

Vim e ainda não fui.

Será que resta algo mais a ser vivido?


PAULO SANT’ANA -  22 Oct 2011 

Tramas da memória


DAVID COIMBRA - 



Uma vez explodiu uma fábrica de fogos de artifício no Navegantes, perto de onde morava o meu avô. Quadras inteiras foram arrasadas, como se o bairro tivesse sido bombardeado pela Luftwaffe. Pedaços de pessoas voaram pelos ares e aterrissaram quilômetros adiante. Os sobreviventes não identificavam mortos; identificavam partes deles. Uma moça reconheceu o braço do pai pelo anel que ainda levava no dedo, um rapaz sabia que aquela era a perna do amigo pelo sapato de pele de crocodilo que lhe restara no pé. Meu irmão, que era bem pequeno, ficou traumatizado. Repetia a toda hora:

– Bum! Bum!

Foi exatamente isso. Ou será que não foi bem assim? Juro que tenho essa história impressa na memória como algo que realmente aconteceu, mas, agora, passados tantos anos, duvido de mim mesmo. Tenho quase certeza de que a explosão da fábrica ocorreu, mas será que foi tão trágica?

Pedaços de gente voaram como bem-te-vis pelo céu da cidade? A história da mão com o anel. Estou vendo agora mesmo a mão com o anel, a filha assistindo à cena com a boca escancarada de horror. Parece que fui testemunha. Fui mesmo? Ou alguém inventou e me contou? Ou eu inventei?

A memória é ardilosa. Quando estava escrevendo o livro sobre a história dos Gre-Nais, entrevistei centenas de jogadores do passado. Eles contavam uma história da qual tinham sido protagonistas, depois eu ia falar com outros envolvidos e esses relatavam o mesmo episódio de forma diferente.

Então eu ia aos jornais da época para descobrir quem estava certo. E lá havia mais uma versão, que não raro pouco tinha a ver com o que me haviam dito uns e outros personagens. Não que pretendessem mentir, nada disso. Eles ACREDITAVAM no que contavam. Era o que estava gravado na sua memória.

Existe uma memória coletiva, também. Imagens e reputações se constroem, versões se consagram. Difícil distinguir a realidade crua da réstia de fantasia. Pensando bem, talvez nem exista realidade crua. Talvez tudo seja representação da realidade. E agora, lembrando daquele naco de tempo mais ou menos próximo de quando deve ter ocorrido (ou não) a terrível explosão da fábrica de fogos, percebo como tudo está mesclado, superposto ou contraposto na minha lembrança.

Vejo-me pedalando minha Calói Zero azul-escura, minha irmã Silvia de pé na carona e meu irmão Régis sentado na barra do guidom. Estamos indo até um silo de cereais ali pertinho para subir no morro formado pelas sacas e lá de cima, rente ao teto, nos atirarmos na piscina de grãos abaixo, onde ficávamos enterrados até a cintura. Anos depois li que um menino se afogou nos grãos fazendo exatamente isso. Os perigos da infância.

Vejo Figueroa matando a bola no peito de lenhador e saindo da área com o queixo erguido, a passada larga, a cabeleira esvoaçante, ou será que esse é Beckenbauer, o Kaiser, o homem que não conhecia a cor da grama porque não olhava para baixo, ou será que é Didi, o Príncipe Etíope, que se orgulhava de jamais ter pisado na bola? Não, Didi não podia ser, nunca vi Didi em campo, mas vi o shortinho branco da Alice,

oh, lembro bem daquele shortinho branco e das pernas dourado-escuras da Alice, as primeiras pernas de mulher em que toquei, quase não acreditei quando senti a textura macia da sua pele e senti também vertigens, pensei que ia sair flutuando do Fusca verde do pai dela, que era onde estávamos, eu e Alice e suas coxas de chocolate ao leite, e falando nisso vem-me a imagem do Choco Preto e Branco, acho que não existe mais Choco Preto e Branco, nem Beijo de Moça,

nem quebra-queixo, nem bala gasosa, até porque diziam que bala gasosa matava a criança que a engolia inteira, a bala gasosa era do tamanho de uma bola de pingue-pongue, eu que era bom no pingue-pongue, dava um saque de revesgueio, mas não tão bom quanto o Edu Brites, que batia forte na bolinha, o Edu Brites tinha saque forte, inhaque forte e também tinha um chute forte,

uma espingarda na perna direita, talvez tão forte quanto o chute do Éder, só que o Éder era canhoto, os canhotos são revoltados e uma vez li que o Éder era revoltado porque, quando criança, uma serpente enroscou-se nele durante uma enchente em Belo Horizonte, deve ter sido uma enchente tipo a de 41 em Porto Alegre, o meu avô vivia me mostrando a marca da enchente na parede da casa dele no Navegantes, uma marca alta, ele tinha de levantar a mão para tocá-la com o dedo indicador, ah,

eu adorava ouvir as histórias do meu avô e passei a gostar de futebol por causa dele, ele que torcia pelo Zequinha, mas admirava o Lara, o Tesourinha e o Foguinho, meu avô falava sempre do Foguinho e um dia eu o conheci, ao Foguinho, e o entrevistei tantas vezes que posso dizer que nos tornamos amigos, ao ponto de o Foguinho perguntar por mim quando já estava no fim da sua vida, doente, de cama, abatido, justo o Foguinho que prezava tanto a saúde e a força física e provo o que digo lembrando de um dia em que fui visitá-lo,

ele desceu para abrir a porta e me fez entrar, ele estava de pijama e chinelos, e nós nos acomodamos no elevador e eu perguntei “está tudo bem, seu Rolla?”, e ele me enviou um olhar triste, suspirou e respondeu “estava tudo bem quando eu tinha a sua idade”, e aquilo me deixou sem palavras, subi mudo até o nono andar e lá, no apartamento dele, seu Rolla tirou umas caixas de papelão do armário e começou a me mostrar fotos e viu uma do Pinheiro Machado, que disse ser “o maior homem” que já havia conhecido,

e finalmente tomou nas mãos uma pequena de Luiz Carvalho, o velho Rei da Virada, centroavante que foi presidente do Grêmio nos anos 70, na época em que talvez tenha explodido aquela fábrica de fogos de artifício no Navegantes, o bairro do meu avô, que admirava o Foguinho, e então o Foguinho pegou aquela foto e olhou para a imagem do seu amigo já morto e pensou por um momento e murmurou:

– Todos os dias eu penso no Luiz Carvalho.

Para isso também serve a memória.

 22 Oct 2011

O eixo


 MARCELO RUBENS PAIVA

Suas mãos embrulhadas em luvas de borracha limpam obsessivamente todos os cantos do banheiro. Ele passa escova na privada numa velocidade que deixaria qualquer observador tonto.

Na sala, esfrega panos nos vidros. São limpos, como se tivessem acabado de sair da fábrica, e a cidade fosse a menos poluída do mundo.

Passa aspirador. Espanador nos livros. Organiza as almofadas do sofá. Lava a louça e as enxuga com flanela.

É uma faxina completa, rito diário de quem trabalha em casa, vive só e não consegue organizar os pensamentos se um grão de poeira estiver no meio do caminho.

Lava as mãos gastando dez minutos e meio sabonete. E ainda as esfrega com álcool gel antisséptico.

O interfone toca. Ele atende e manda subir. Livra-se do avental, dá uma ajeitada no cabelo e coloca um jazzinho neutro, nada experimental, nem bebop, nem fusion.

Toca a campainha. Ele abre. Ela entra aflita, como sempre.

"Parei na vaga de idoso que tem na frente do seu prédio. Não tinha vagas", ela diz.

Beijam-se burocraticamente com a porta ainda aberta. Ele tranca. Ela joga as coisas pelo caminho. Ele recolhe e as coloca num cabideiro. Ela despeja a bolsa sobre o sofá e encontra um cigarro amassado no fundo. Ele prontamente pega um isqueiro, acende e fica segurando o cinzeiro, para quando ela precisar.

"Ele deu de controlar as minhas contas. Examina cada ligação do celular e reclama se tem alguma longa demais. 'Usa o Skype.' Reclama quando chega uma multa, critica o meu jeito de dirigir, fazer baliza, meus caminhos. 'Esta rua é a mais congestionada. Vai pela faixa da direita'. Imagina quando souber que voltei a fumar?"

Ela dá três tragadas rápidas. Enfim o agarra e o empurra até o sofá. Pula em cima dele, já sentado. Apaga o cigarro. Abre a barguilha dele, levanta a saia e se encaixa. Tira anel, pulseiras e colares. Joga-os displicentemente na mesa de centro. E fala, enquanto transam no sofá mesmo.

"Não suporto mais aquela arrogância, me examina quando saio, me avalia quando cozinho, testa minha inteligência, perguntando: 'Como é mesmo o nome do presidente da ONU?' Vivo tensa, como numa aula em que o professor faz prova oral. Ai, como é bom... Todo metódico para dormir, acordar, é uma pedra que tem respostas para tudo, nunca chora em velórios, sente-se superior a todos. Ai, assim eu gozo... Sempre me aparece com novidades: 'Olha esta gravação rara de Callas. Viu o novo aplicativo que instalei? Leu o blog do fulano?' Detesto ópera, detesto telejornais, detesto a ONU, a OEA, blogs, e ele insiste: 'Viu o que o fulano escreveu? Você concorda com ele?' Ai, para, não para, ai, gostoso, gostoso, gostoso, ai..."

Ela goza. Joga a cabeça sobre o ombro dele. Respira fundo. Sussurra no ouvido dele:

"Delícia..."

"Eu estava com saudades", ele diz.

"É?"

"É."

"Eu também."

"Você também?"

"É."

"Estava nada."

"Claro que estava. Não deu pra notar?"

"É, deu."

Sorriem. Beijam-se. Ela se levanta rapidamente, ajeita a saia e vai ao banheiro. Pergunta lá de dentro:

"Quer me ver quarta? Se não der, mande uma mensagem. Anônima. Que a aula foi cancelada."

Volta ajeitando os cabelos. Recoloca anel e pulseiras. Checa o celular.

"Por que você sempre tira a aliança?", ele pergunta.

"Eu tiro, é? Não tinha reparado..."

"Você namoraria comigo?"

"Está querendo namorar agora?"

"Tenho pensado nisso."

"O que aconteceu com o solteirão mais convicto da cidade?"

"Se cansou."

"Que nada. Você só quer se aproveitar de mim."

"Quero cuidar de você."

"Você não me aguentaria."

"Não?"

"Está falando isso só pra me agradar."

"Fica mais. Vamos passar a tarde juntos."

"Você é tão doce. Me sinto bem aqui. Me sinto leve..."

Ela se senta de novo no colo dele. Abraça. Volta a se excitar. Tira anel e pulseiras, joga-os na mesa de centro. Enquanto ela fala, transam novamente:

"Mas não posso! Ele é importante pra mim, é o meu eixo. Existem aqueles momentos em que ele se ausenta, está na minha frente, mas não está, parece viajar pra Marte, e tudo em sua volta ganha um tom leitoso. Mas eu gosto dele. Vejo seu olhar me atravessar. Isso dura dias, semanas, aquela quietude dos pensamentos, e sei lá se sonha ou se tem pesadelos, o mistério do homem que vive comigo. Eu amo ele. Ai, que gostoso... Minha vocação é tratar, mas como se não se vê a doença? Quero desvendar ele. Quero parar o mundo para ele respirar um pouco. Quero ele pra mim! Ai... O que eu estava dizendo? Ele é meu! Meu homem, meu amor. Ai, tá gostoso... Ai, gostoso, gostoso, gostoso..."

E goza novamente. Aliviada. Esgotada. Beijam-se. De repente, fica aflita e se ergue.

"Multam aqui na sua rua?"

Recoloca anel, pulseiras. Vai para o banheiro. Ele continua sentado.

"Você é tão gostoso. Que música é essa?"

Ele não responde. Ela volta, pega a sua bolsa, checa novamente o celular. Dá um beijo rápido de despedida.

"Não esquece os colares", ele diz.

Ela sorri e os joga na bolsa. Abre a porta, chama o elevador e pergunta:

"Então, quarta?"

Nunca mais se viram. Não respondeu às mensagens dele, aos e-mails, não ligou. A palavra "namorar" contaminou a relação de anos. Também, pedir uma mulher casada em namoro...

22 Oct 2011

Amartya Sen vincula justiça à vida econômica





Ganhador do Nobel de Economia sustenta não haver acordo social possível sobre 'sociedade justa'

MARCOS FERNANDES G. DA SILVA


Tendemos a achar que alguns conceitos são triviais. É o caso da palavra justiça. Não é porque temos uma noção de justiça que podemos dizer que existe uma teoria e uma visão unificadora da mesma.
Talvez a melhor forma de entender o que ela poderia significar é buscando na vida econômica algum sentido mais universal. É o que faz o Nobel de Economia Amartya Sen em seu último livro, "A Ideia de Justiça". Partindo de uma síntese entre filosofia política e economia, ele se coloca a missão de superar os debates sobre justiça no âmbito metafísico e ideal.
Não há arranjos institucionais universais que ajudem a resolver problemas envolvendo julgamentos de valor; teorias da justiça não são ordenáveis (inexiste a "melhor", a "pior"), dado que elas pressupõem a priori noções incomensuráveis de moralidade. Assim pensa Sen.
Concepções ideais do que constituiria uma sociedade justa não teriam utilidade prática para ajudar a sociedade, por meio do voto, a resolver problemas de políticas públicas. Erraríamos ao aceitar tacitamente uma noção de razão. E, mormente, a aceitação de uma visão unívoca de razão vem acompanhada de um tanto de utopias.
Esse parece ser o caso de Hobbes, Locke e Kant, que elaboraram noções de justiça em torno de algum tipo de contrato social abstrato.
Sen identifica dois problemas sérios com esses tipos de argumento: não há acordo social possível sobre a natureza de uma "sociedade justa". Adicionalmente, como é que nós realmente reconhecemos uma "sociedade justa"?
Grande parte da crítica de Sen é dirigida ao filósofo social-democrata John Rawls, cujo livro "Uma Teoria da Justiça" tornou-se uma referência no debate sobre justiça baseada em utopias abstratas.
Para Sen, tal querela deveria basear-se em construções de consenso em torno do que uma sociedade de carne e osso julga ser razoável.
É impossível deixar de lado o papel, para Sen, do "espectador imparcial" da teoria dos sentimentos morais, de Adam Smith.
Ao contrário dos racionalistas citados, incluindo Rawls, Sen não crê que precisemos de uma concepção de um mundo ideal, só de uma ampla noção de moralidade.
Para entender melhor Sen, vale a pena destacar sua crítica à ideia de que seria possível garantir liberdade para todos sem uma visão de mundo compartilhada que determine isso como desejável.
O chamado Paradoxo de Sen, teorema que lhe garantiu o Nobel, é um paradoxo lógico que parte de outros dois paradoxos, o do Nobel Kenneth Arrow e o do matemático Condorcet.
De acordo com a prova, é impossível ao mesmo tempo ter um acordo social sobre o que é liberdade mínima e máxima eficiência econômica. Falando português: as escolhas que envolvem políticas públicas pressupõem a construção de consensos morais.
Pode-se criticar Sen por adotar um a priori ocidental, que a democracia e a razoabilidade são necessárias para a construção de consensos.
Mas ele tem o mérito de iniciar o debate dos economistas com os filósofos políticos e do direito. Grande livro.

MARCOS FERNANDES G. DA SILVA, economista da Fundação Getulio Vargas, é autor dos livros "Economia Política da Corrupção no Brasil" (2001) e Formação Econômica do Brasil" (2011).Folha de São Paulo.22 Oct 2011.

A IDEIA DE JUSTIÇA
AUTOR Amartya Sen
EDITORA Companhia das Letras
TRADUÇÃO Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes



Escravos da tecnologia





Estamos tendo de trabalhar de graça para os sistemas, cada vez que tentamos nos mover na web; odeio isso


Não, não vou falar das fábricas que atraem trabalhadores honestos e os tratam de forma desumana. Cada vez que um produto informa orgulhoso que foi desenhado na Califórnia e fabricado na China, sinto um arrepio na espinha. Conheço e amo essas duas partes do mundo.
Também conheço a capacidade de a tecnologia eliminar empregos. Parece o sonho de todo patrão: muita margem de lucro e poucos empregados. Se possível, nenhum! Tudo terceiro!
Conheço ainda como a tecnologia é capaz de criar empregos. Vivo há 15 anos num meio que disputa engenheiros e técnicos a tapa, digo, a dólares. O que acontece aí no Brasil, nessa área, acontece igualzinho no Vale do Silício: empresas tentando arrancar talentos umas das outras. Aqui, muitos decidem tentar a sorte abrindo sua própria start-up, em vez de encher o bolso do patrão. Estou rodeada também de investidores querendo fazer apostas para... voltar a encher os bolsos ainda mais.
Mas queria falar hoje de outro tipo de escravidão tecnológica. Não dos que dormiram na rua sob chuva para comprar o novo iPhone 4S... Quero reclamar de quanto nós estamos tendo de trabalhar de graça para os sistemas, cada vez que tentamos nos mover na internet. Isso é escravidão -e odeio isso.
Outro dia, fiz aniversário e fui reservar uma mesa num restaurante bacana da cidade. Achei o site do restaurante, lindo, e pareceu fácil reservar on-line. Caí no OpenTable, sistema bastante usado e eficaz por aqui. Escolhi dia, hora, informei número de pessoas e, claro, tive de dar meu nome, e-mail e telefone.
Dois dias antes da data marcada precisei mudar o número de participantes, pois tive confirmação de mais pessoas. Entrei no site, mas aí nem o site nem o OpenTable podiam modificar a reserva on-line, pela proximidade do jantar. A recomendação era... telefonar ao restaurante! Humm... Telefonei. Secretária eletrônica. Deixei recado.
No dia seguinte um funcionário do restaurante me ligou, confirmando ter ouvido o recado e tudo certo com o novo tamanho da mesa. Incrível! Que felicidade ouvir um ser humano de verdade me dando a resposta que eu queria ouvir! Hoje, tentando dar conta da leitura dos vários e-mails que recebo, tentando arduamente não perder os relevantes, os imprescindíveis, os dos amigos, os da família e os dos leitores, recebi um do OpenTable.
Queriam que avaliasse minha experiência no restaurante. Tudo bem, concordo que ranking do público é coisa legal. Mas posso dizer outra coisa?
Não tenho tempo de ficar entrando em sites e preenchendo questionário de avaliação de cada refeição, produto e serviço que usufruo na vida! Simples assim! Sem falar que é chato! Ainda mais agora que os crescentes intermediários eletrônicos se metem no jogo entre o cliente e o fornecedor.
Quando o garçom ou o "maître" perguntam se a comida está boa, você fica contente em responder, até porque eles podem substituir o prato se você não estiver gostando. Mas quando um terceiro se mete nessa relação sem ser chamado, pode ser excessivo e desagradável. Parece que todas as empresas do mundo decidiram que, além de exigir informações cadastrais, logins e senhas, e empurrar goela abaixo seus sistemas automáticos de atendimento, tenho agora de preencher fichas pós-venda eletronicamente, de modo que as estatísticas saiam prontas e baratinhas para eles do outro lado da tela, à custa do meu precioso tempo!
Por que o OpenTable tem de perguntar de novo o que achei da comida? Eu sei. Porque para o OpenTable essa informação tem um valor diferente. Não contente em fazer reservas, quis invadir a praia do Yelp, o grande guia local que lista e traz avaliações dos clientes para tudo quanto é tipo de serviço, a começar pelos restaurantes.
O Yelp, por sua vez, invadiu a praia do Zagat (recém-comprado pelo Google), tradicionalíssimo guia (em papel) de restaurantes, que, por décadas, foi alimentado pelas avaliações dos leitores, via correio.
As relações cliente-fornecedor estão mudando. Não faltarão "redutores" de custos e atravessadores on-line.

MARION STRECKER é jornalista, cofundadora do UOL e sua correspondente em San Francisco.

20 Oct 2011 

99%




Joseph Stiglitz, economista ganhador do Nobel, recebeu o crédito pelo título "99%", que foi assumido pelo Ocupe Wall Street e que faz referência à sua afirmação de que 1% dos cidadãos dos EUA controlam 40% da riqueza do país.
Faz apenas um mês que mil manifestantes se instalaram em Wall Street para expressar sua indignação diante da cobiça das grandes empresas e da desigualdade social. Montaram acampamento no Zuccotti Park, no centro financeiro de Manhattan.
O protesto se espalhou para 900 cidades de todo o planeta no final de semana passado. Muitas das manifestações foram inspiradas e coordenadas pela campanha do Ocupe Wall Street.
Em Londres, um acampamento foi montado pelos manifestantes no pátio diante da catedral de St. Paul, cujo grande domo domina o panorama da cidade desde que o edifício foi construído, depois do grande incêndio londrino de 1675.
Os manifestantes foram impedidos pela polícia de ocupar a praça Paternoster, ao lado da catedral, onde há um empreendimento imobiliário controlado pela Mitsubishi Estate Co. e que abriga a Bolsa de Valores de Londres e a sede britânica do banco Goldman Sachs. Mas as autoridades eclesiásticas intercederam e anunciaram que os manifestantes estavam autorizados a se acomodar nos terrenos da igreja, que abarcam boa parte da praça diante da catedral.
Os atos em Londres vêm sendo, em geral, pacíficos, o que contrasta fortemente com os violentos tumultos de agosto. O presidente da Federação Alemã dos Bancos disse ao jornal "Financial Times" que os protestos "desviam a atenção do problema fundamental: o fato de que já não temos como bancar nossos Estados de Bem-Estar Social".
Não foi exatamente uma declaração conciliadora. Nova York e Londres estão longe de ser as primeiras cidades a abrigar protestos contra a cobiça das grandes empresas e bancos, tampouco podem ser consideradas como exemplos desse tipo de manifestação.
Na Grécia, violentos confrontos de rua vêm ocorrendo há meses. Em Madri, os "indignados" estão acampados na praça Porta do Sol desde maio, e suas manifestações inspiraram protestos em outros lugares da Espanha.
Em Santiago (Chile), milhares de estudantes secundaristas e universitários vêm exigindo uma grande reforma no sistema educacional, entrando em choque com a polícia repetidamente. Em Roma, 200 mil pessoas se manifestaram, com violência generalizada.
Mesmo em Chicago, 175 pessoas foram detidas no Grant Park, local de notórios confrontos entre manifestantes e policiais na infame convenção presidencial do Partido Democrata em 1968. Não é uma lembrança auspiciosa.

KENNETH MAXWELL.


Tradução de PAULO MIGLIACCI

A internet não é meio de comunicação



No início do mês (dia 3 de outubro) a Suprema Corte, nos Estados Unidos, decidiu que baixar uma música da internet não equivale a exibir essa mesma música em público. Portanto, ao copiar o arquivo de uma canção no seu computador, o consumidor não deve ser tratado como alguém que toca essa mesma canção para uma grande audiência, no rádio ou num show.

Ora, dirá o leitor, nada mais óbvio. Baixar uma faixa de CD é mais ou menos como copiar no gravador de casa uma canção que a gente sintoniza na FM. Trata-se de um ato doméstico, que não se confunde com executar uma obra musical para uma plateia de 5 mil espectadores. No entanto, até hoje, o pensamento oficial sobre a internet - em especial o pensamento das Cortes de Justiça - carrega uma tendência de equipará-la aos meios de comunicação de massa. Um erro grosseiro e desastroso. Além de obtusa, essa visão traz consequências perversas, como a que levou parlamentares brasileiros, há coisa de dois anos, a tentarem aprovar uma lei que impedia os cidadãos de manifestarem suas opiniões sobre as eleições em sites e blogs durante o período eleitoral, como se a rede mundial de computadores fosse da mesma família que as redes de televisão e de rádio, que funcionam sob concessão pública.

O furor censório dos parlamentares acabou não vingando, para alívio da Nação, mas o conceito equivocado em que ele plantou seu alicerce continua aí. Por isso a recente decisão da Suprema Corte, negando as pretensões econômicas e intimidatórias da American Society of Composers, Authors and Publishers (Ascap), interessa especialmente a nós, brasileiros. Ela constitui um argumento a mais para que expliquemos aos retardatários (autoritários) que nem tudo o que vai pela internet é comunicação de massa. Aliás, quase nada na internet é comunicação de massa. Para as relações políticas e jurídicas entre os seres humanos essa distinção elementar faz uma diferença gigantesca.

A internet não é televisão, não é rádio, não é jornal, nem revista, assim como não é correio ou telefone. Ela contém tudo isso ao mesmo tempo - mas contém muito mais que isso. Existem canais de TV e de rádio na internet, é bem verdade. Os jornais estão quase todos online, bem como as revistas, sem falar no correio eletrônico: as pessoas trocam mensagens, como trocavam cartas. O Skype e outros programas vieram para baratear e melhorar os velhos telefonemas, com a vantagem de mostrar aos interlocutores a cara um do outro. Logo, dirá a autoridade pública, a rede mundial de computadores internet é uma Torre de Babel em que todos os meios de comunicação se encontram e se confundem, certo?

Errado. A humanidade comunica-se pela internet - só no Brasil já são quase 80 milhões de usuários -, mas isso não significa que ela seja, como gostam de dizer, uma "mídia" que promove a convergência de todas as outras "mídias". Ela é capaz de fornecer ferramentas para que um conteúdo atinja grandes audiências de um só golpe, ao vivo, assim como permite que duas pessoas falem entre si, reservadamente. Acima disso, porém, ela abre outras portas, muitas outras. Pensá-la simplesmente pelo paradigma da comunicação é estreitá-la, amofiná-la - e, principalmente, ameaçar a liberdade que ela encerra.

A internet também é comércio: os consumidores fazem compras virtualmente - mas isso não nos autoriza a dizer que ela possa ser regulada como se fosse um shopping center. Vendem-se passagens aéreas e pacotes turísticos pela rede, mas ela não cabe na definição de agência de viagens. Correntistas acessam suas contas bancárias e pagam contas sem sair de casa, mas a internet não é banco, e, embora quitemos nossos impostos pelo computador, ninguém há de afirmar que a web é uma extensão da Receita Federal. Ela é tão ampla como são amplas as atividades humanas: aceita declarações de amor, assim como aceita lances ousados da especulação imobiliária. Nela a vida social alcança plenamente outro nível, que não é físico, mas é real, tão real que afeta diretamente o mundo físico, sendo capaz de transformá-lo. Mais que meio de comunicação, a internet é, antes, a sociedade num segundo grau de abstração. Se quiserem comparações, ela tem mais semelhança com a rede de energia elétrica do que com um aparelho de TV ou com o alto-falante na praça do coreto.

Para efeitos da regulamentação e da regulação, a internet não cabe num regime. Ela é capaz de abrigar tantos regimes quanto a própria vida em sociedade - e, assim como a vida em sociedade, é maior que o direito positivo. Ela, sim, pode conter e processar decisões judiciais e trâmites processuais, mas estes não podem contê-la, explicá-la ou discipliná-la por inteiro. Pretender controlá-la, taxá-la, pretender instalar pedágios em cada nó seria equivalente a começarmos a cobrar direitos autorais de quem empresta um livro de papel à namorada, ou, pior ainda, seria como sujeitar as conversas de botequim à legislação do horário eleitoral na televisão e no rádio.

A rede de computadores trouxe uma expansão sem precedentes a uma categoria que, nos estudos de sociologia e de comunicação, ganhou o nome de "mundo da vida". Trata-se de um conceito contíguo a outro, mais conhecido, o de "esfera pública". Nesta se encontram os temas de interesse geral dos cidadãos. No "mundo da vida" moram as práticas sociais mais arraigadas, a rotina mais prosaica, os nossos modos de amar, de velar os mortos ou, se quiserem, de conversar no botequim. Não por acaso, daí, desse mundo da vida, é que brota a esfera pública democrática; a própria imprensa nasceu dos saraus e das tabernas, quando aí se começou a criticar o poder.

Por isso, enfim, as formas de livre expressão na internet precisam estar a salvo do poder do Estado e da voracidade dos grupos econômicos. Por isso a decisão da Suprema Corte é bem-vinda.


 - EUGÊNIO BUCCI. 20 Oct 2011 

O pêndulo, a centralização e a República




Seria de supor que algumas correntes liberais brasileiras, ao menos as de "casco duro" - para se utilizar de uma expressão jocosa introduzida pelo ex-presidente Lula em nosso vocabulário político -, manifestassem alguma relação de empatia com a posição firmada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), uma vez que no cerne da controvérsia sobre que papel deve desempenhar o Conselho Nacional de Justiça no controle do exercício da magistratura está a antinomia centralização/descentralização, que, desde o Império, acompanha a nossa História.

No caso, uma vetusta tradição liberal, cuja mais incisiva formulação se tornou clássica com a publicação de A Província, em 1870, de Tavares Bastos, uma denúncia dos males da centralização administrativa, que ainda ecoa no não menos clássico da nossa bibliografia liberal Os Donos do Poder (1958), de Raimundo Faoro, denúncia que, a partir de outros porta-vozes, vai ressurgir nas lutas contra o autoritarismo político do regime militar e encontrar tradução nas demandas municipalistas dos movimentos políticos e sociais apresentadas ao legislador constituinte de 1988.

A Carta de 1988, redigida num tempo em que ainda se ouviam as vozes de Tancredo Neves e de Ulysses Guimarães - "as pessoas vivem nos municípios e não na União" -, além de fazer girar o pêndulo em favor da descentralização, combinava a democracia representativa com a de participação e abrigava, em nome da justiça social, postulações de direito material, protegidas constitucionalmente por alguns instrumentos criados com essa finalidade. A igualdade, pela primeira vez em nossa História, encontrava estatuto próprio como um ideal coletivo a ser perseguido por políticas de Estado.

A igualdade tem suas urgências e os recursos para atendê-las eram e são escassos. Nada de surpreendente, portanto, que os tempos subsequentes à promulgação da Carta de 88, que nos trouxe de volta a descentralização, depois de décadas de vigência do princípio que lhe era oposto, comecem a assistir, agora num cenário de democracia política institucionalizada, ao movimento do pêndulo em direção à centralização administrativa, diante de uma sociedade cada vez mais enredada nas agências estatais e dependente delas.

Tais efeitos perversos da afirmação da agenda da igualdade não são incomuns, constatados por dois dos maiores fundadores da teoria social moderna, Tocqueville e Marx, que, malgrado a radical diferença existente entre eles, convergiram no diagnóstico - o primeiro, em O Antigo Regime e a Revolução, o segundo, em O 18 Brumário de Luis Bonaparte - de que a asfixiante centralização que tomou conta da sociedade francesa após a Revolução de 1789 - a revolução da igualdade - era um dos seus frutos negativos. Para ambos, porém, a centralização não é filha, em linha direta, da igualdade, mas da falta de República e da livre vida associativa que lhe é própria. Sem ela as postulações por igualdade são interpretadas pelo Estado que as concede à sua discrição e a partir de um cálculo em que suas conveniências são levadas em alta conta, entre as quais a de sua política de legitimação.

A revolução democrática brasileira, que tomou forma na Carta de 88, resultou da articulação de uma ampla coalizão política, que, em suas lutas por liberdades civis e públicas, abriu passagem para a emergência de uma vigorosa movimentação dos setores subalternos em torno dos seus interesses, logo que começaram a se emancipar dos controles coercitivos a que estavam sujeitos. Tal movimentação persistiu ao longo do processo de transição para a democracia e da sua subsequente institucionalização, mantendo a esfera pública sob pressão, inclusive em suas manifestações eleitorais, no sentido de reforçar as postulações por direito material que procediam de várias regiões da vida social.

Com a escora dos fundamentos constitucionais igualitários, essas pressões se fizeram irresistíveis. Diante da escassez de recursos da Federação e dos imperativos de urgência reclamados pela sociedade, mesmo que na ausência de um plano definido, inicia-se, então, um novo giro em favor das tendências centralizadoras. Seu carro-chefe será o das agências públicas de âmbito nacional, como o Sistema Único de Saúde (SUS), decididamente uma política igualitária de largo alcance, que se torna um paradigma dominante em termos de outras políticas sociais, como no caso das políticas de educação e de segurança, para não falar das políticas assistenciais do tipo do programa Bolsa-Família, todas com baixa ou nenhuma participação ativa da sociedade.

De modo quase invisível à percepção imediata, tem-se instalado uma estatolatria doce, justificada e legitimada por sua destinação social. Nessa batida, sem sequer se mencionarem os graves problemas tributários, a Federação cede espaços à União e a sociedade abdica de sua autonomia em favor do Estado. A tendência à centralização torna-se universal e não poupa nenhuma região da vida social: há problemas de segurança, chamem-se as Forças Armadas, embora o Haiti não seja aqui; há corrupção no Judiciário, apele-se ao Conselho Nacional de Justiça, passando por cima das Corregedorias dos tribunais, tidas de antemão como suspicazes, e sem que sequer se esbocem tentativas de mobilização das corporações profissionais dos operadores do Direito e de setores da sociedade a fim de exigirem exemplar correição.

A República democrática tem seus custos sociais e políticos e um dos mais elementares deles é o de criar e preservar as condições para a auto-organização do social, com a sociedade e suas instituições empenhadas na solução dos seus problemas e desafios, forma com que nem sempre se chega mais rapidamente ao objetivo, mas, como o demonstra sobejamente a nossa já longa experiência republicana, é muito melhor e mais segura.


LUIZ WERNECK VIANNA. 22 Oct 2011 

Jogo das canções






Canções podem ser esquecidas e de repente retornarem intactas, por algum estímulo associativo

O documentário de Eduardo Coutinho “As canções” passou no Festival do Rio e vai passar na Mostra aqui em São Paulo na próxima semana. Quero muito falar dele, especificamente dele, mas só quando entrar em cartaz, o que não vai acontecer antes de dezembro. É que eu não gostaria que o público não pudesse conferir, quando eu vier a comentá-las, as situações únicas que o filme expõe, no modo peculiar criado pelo autor de “Jogo de cena” (filme irmão de “As canções”). Mas não consigo deixar de adiantar o assunto, entrando desde já no tema que ele explora e que nos faz querer explorar também: o poder do lugar emocional profundo, vertical, em certa medida insuspeitado e quase atemporal, que certas canções têm na vida de cada pessoa.

Não faz muito tempo vivi uma experiência paralela à do filme. Um grupo de parentes e amigos que sabe muito bem que somos ligados por uma rede de canções resolveu ouvir, todos juntos, uma seleção formada pelas dez músicas que cada um considera as mais comoventes de sua vida. Éramos oito, e ouvimos oitenta canções sem parar, sem respirar nada que não fosse elas, durante uma noite inteira. Embora únicas e presentes ali graças à escolha de cada um, as canções provavam, antes de mais nada, que sua vocação é a de ser compartilhadas, fazendo parte da “velha história de um desejo que todas as canções têm pra contar”. Pois “as canções só são canções quando não são mais nossas”, ao mesmo tempo em queremos que os outros escutem as “nossas canções”.

O critério não era o da escolha das canções mais belas, olhadas de um ponto de vista contemplativo e cheio de exigências melódicas, harmônicas e poéticas. Mais refinadas ou não, o que importava é que elas fossem ao nervo da emoção pessoal, ao centro do que na falta de outro nome chamamos de coração, não importa se simplórias, patéticas, supostamente bizarras ou se simplesmente simples. Canções que nos tocaram quando ainda não tínhamos formado um gosto nem padrões estéticos, muitas vezes aprisionadores, ou então que, qualquer que fosse a sua densidade, continuassem a nos tocar nesse lugar que independe dos crivos avaliativos que viemos a selecionar e construir.

Os mais sensíveis à fidelidade primeira que a situação exigia sofreram com a iminência do jogo, passaram insones as noites que antecederam à grande noite, torturados pelas injustiças que poderiam cometer ao escolher essas ou aquelas canções em detrimento de outras. Canções não podem ser traídas, sob pena não se sabe de que graves perdas íntimas. Houve quem desistisse de participar, incapaz de cometer tal violência, de arriscar-se ao erro inevitável e insuportável.

Uma valsa na voz de Francisco Petrônio, uma cantilena anônima, uma velha guarânia, os rocks e as baladas, a música barata e as obras-primas do cancioneiro brasileiro e mundial, que elo misterioso faria com que elas se tornassem canções necessárias? É claro que isso depende do momento em que ficaram gravadas na nossa memória afetiva, e as associações que vêm junto com elas na forma da recordação involuntária. Mas isso não basta. Simples ou complexas, as canções eleitas têm que corresponder
com certas qualidades melódicas, certa integridade interna, certo círculo que se abre e se fecha dentro delas, certo dom misterioso que ninguém sabe explicar.

Posso dizer que já li todo tipo de escrito em matéria de teoria da música. Há longos tratados de harmonia e tratados de ritmo. Luiz Tatit nos esclarece muito sobre as relações entre letra e música. Mas nunca vi nenhuma tentativa de explicação minimamente convincente dos efeitos e dos poderes de uma melodia. Como o poder inigualável das melodias de Caetano, para além do domínio que ele afirma não ter sobre a linguagem da música. E eram as melodias que estavam em causa, junto com as palavras, no eletrizante jogo das canções.

A música fica guardada num outro lugar da memória. Canções podem ser aparentemente esquecidas e de repente retornarem intactas, décadas depois da última vez, movidas e comovidas por algum estímulo associativo (é o que Proust chama de “memória involuntária”). Pois, além de recurso mnemônico altamente delicado e resistente, a música é suporte de conteúdos não verbais, de uma espécie de aura afetiva da experiência, como se, para além dos significados, ela guardasse a forma e o fundo do vivido. Uma ou dez canções escolhidas sinceramente são a expressão mais tangível possível desse “patrimônio imaterial”, ou desse “matrimônio imaterial”, se quisermos, de que é feito alguém. É por isso mesmo que alguns temiam perder, no nosso jogo da escolha das canções, a própria alma. Pois só as “nossas canções”, ou o equivalente delas em halo emocional, prova a nós mesmo que aquilo que vivemos foi realmente vivido por nós.

Tudo isso está em “As canções” de Eduardo Coutinho, através de pessoas das ruas do Rio de Janeiro, convidadas a cantar uma canção e a falar sobre ela. Muitas vezes atingidas de repente, para sua própria surpresa, por um raio emocional que as faz chorar. O filme nos faz pensar também sobre a extração de classe dessas canções, e sobre o lugar que a canção tem no Brasil. Sobre o que espero voltar, em dezembro.

A propósito, Felipe Hirsch fez da sua coluna aqui mesmo, às segundas-feiras, um incrível ritual ostensivo de celebração do universo inesgotável de suas canções. “Pop cult 65.” Às vezes eu lamento não ter ousado fazer o mesmo. Mas é que o meu sintoma é outro, quase o contrário do dele, o de querer falar de tudo.


- JOSÉ MIGUEL WISNIK. 22 Oct 2011 

O outro Rio que passou em sua vida



  
Língua ferina, coração de manteiga: assim sintetizado Marques Rebêlo passou pela vida (1907- 1973). Sempre independente, à margem das modas, panelinhas e facções ideológicas: assim Marques Rebêlo passou pela vida literária.

Franco, polemista e maledicente, em guerra constante com "os escritores de coquetel, profissionais da noite de autógrafo, mais atores do que escritores", tantos desafetos fez entre seus pares que se chegou a duvidar de sua eleição para a Academia Brasileira de Letras, para a qual entrou tranquilamente, ele certo de que contribuiria para elevar o nível da instituição, esta crente que havia domado o escritor. Vãs aspirações.

Se sua franca e indomável irreverência não conseguiu eclipsar os méritos literários a que afinal se dobraram os acadêmicos, a ela se pode atribuir a parcimoniosa divulgação que lhe davam as colunas e os suplementos de livros, a despeito do seu enorme prestígio entre os críticos e da considerável popularidade de sua ficção, desde o primeiro livro de contos (Oscarina, 1931), ainda à venda nas livrarias, como quase todos os seus romances, um dos quais (A Estrela Sobe) transformado em sucesso cinematográfico um ano depois da morte do escritor.

O sarcástico Oswald de Andrade também empilhou inimizades, mas não tinha o, como direi?, recato de seu colega carioca, aliás, carioquíssimo, o mais carioca dos ficcionistas depois de Manuel Antônio de Almeida, autor de Memórias de um Sargento de Milícias, a quem Rebêlo dedicou um estudo biográfico, e Lima Barreto. Bela linhagem, que remonta a Machado e desemboca em Rubem Fonseca.

Seu Rio de Janeiro era o da vida miúda suburbana, da pequena burguesia de sentimentos mornos e existência medíocre, confinada em vilas, ruas humildes e pensões, dos pequenos funcionários públicos e privados que só andam de bonde, das donas de casa anônimas e estoicas e das mocinhas que sonham com glórias que jamais terão. Essa fauna está presente até em seu roman-fleuve sobre a vida literária no Rio dos anos 1930, O Trapicheiro (512 págs., R$ 52), que a José Olympio acaba de relançar.

Fleuve desde o título. Trapicheiro é o nome de um pequeno rio que nasce no Maciço da Tijuca e acompanha a vida do narrador da infância à idade adulta. Quem tudo narra, em forma de diário, é um escritor chamado Eduardo, às voltas com a feitura de um romance intitulado A Estrela. Óbvio alter ego de Rebêlo, através dele acompanhamos todo um ciclo da história brasileira desde o fim do Império, pois no diário, balizado entre 1936 e 1938, com a serpente estado-novista a chocar seu ovo, há brechas para reminiscências que a Eduardo chegaram através do pai.

Falou-se muito na influência que Jules Renard e seu Journal teriam exercido sobre Rebêlo, e por ele próprio assumida, mas seu memorialista faz parte de uma linhagem bem nossa, a que pertencem o conselheiro Aires machadiano, o Anselmo de A Conquista (de Coelho Neto) e o escrivão Isaías Caminha de Lima Barreto.

Além de fleuve, um roman à clef. Um conhecedor do meio intelectual da época não terá muita dificuldade em identificar atrás dos imaginários literatos que desfilam em suas páginas as figuras de Tristão de Athayde (com quem Rebêlo brigou e depois fez as pazes, mais ainda estavam brigados quando Athayde cobriu O Trapicheiro de elogios), Augusto Frederico Schmidt (outro desafeto), Jorge Amado (que Rebêlo achava desleixado), Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Lasar Segall, Santa Rosa, Alvaro Lins, José Lins do Rego, entre outras, reais e nominalmente mencionadas, como Graça Aranha.

Eis como Eduardo registra em seu diário o lançamento de uma revista literária, em janeiro de 1937:

"Com o título todo em minúsculas e prévias girândolas de publicidade nos suplementos dominicais, saiu hoje o primeiro número de Arte e Literatura, quinzenário de pouca arte e pouquíssima literatura, com João Soares no rodapé crítico alinhando maçudas banalidades, e Gustavo Orlando pontificando sobre coisas de que não entende".

Não faltaram capuças nos arredores da ABL e da Livraria São José.

Mistura de ficção e realidade, fragmentário e cíclico, O Trapicheiro foi um corpo estranho no panorama editorial do fim da década de 50, ainda sitiado pela literatura regionalista, que Rebêlo, embora amigo e admirador de Graciliano Ramos, detestava, "feita por gente com o traseiro no Café Simpatia e o coração lá na terrinha agreste", dizia. Primeira parte de uma saga intitulada O Espelho Partido, prevista para espichar-se, proustianamente, por sete volumes, mas que a morte do autor condenou a três tomos (A Mudança, 1963, e A Guerra Está Entre Nós, 1969, as outras) e um quarto (A Paz Não É Branca) apenas bosquejado.

Ainda que, a exemplo da trilogia Os Sonâmbulos, de Hermann Broch, possam ser lidos separadamente, não entendi por que a José Olympio reeditou a série fora de ordem: em 2009 o terceiro tomo, agora o primeiro, ano que vem o segundo. No início da década, a Nova Fronteira reeditou O Trapicheiro e A Mudança. É sempre bem-vinda qualquer reedição de Rebêlo, cuja prosa urbana, moderna, ao mesmo tempo lírica e maliciosa, realista e distanciada, encantou até autores por ele desdenhados ou pichados.

Nenhum dos grandes críticos literários - de Mário de Andrade (que se afligia um pouco com o "pessimismo" do escritor) a Wilson Martins e Alfredo Bosi, passando por Otto Maria Carpeaux, Alvaro Lins e Mario da Silca Brito - economizou nos adjetivos à sua obra. Que ninguém duvide: Rebêlo foi a maior contribuição de Vila Isabel à cultura brasileira depois de Noel Rosa.

 - Sérgio Augusto.22 Oct 2011

Para além do triste retrato na parede





Confira a versão abreviada do estudo que marca a reedição de 'Confissões de Minas' - que a Cosac Naify lançou no  dia 31 de outubro de 2011 -, de Drummond de Andrade, escrito pelo maior especialista estrangeiro na obra do autor


 John Gledson
Confissões de Minas é a primeira coletânea de prosa que Drummond publicou; apareceu em 1944, pouco antes do fim da 2ª Guerra Mundial e do Estado Novo. Agora, foi republicada na sua forma original, pela primeira vez desde 1944: sempre apareceu como parte da Obra Completa da Editora Nova Aguilar, mas foi sofrendo vários cortes, alguns sancionados pelo próprio poeta, que já no começo removeu duas narrativas para Contos de Aprendiz. A mais recente Prosa Seleta omite vários itens, entre eles uma seção inteira, Caderno de notas. Esta nova e benvindíssima edição vem acompanhada de quatro resenhas do tempo, de Antonio Candido, Sérgio Milliet, Lauro Escorel e Mário da Silva Brito - todas de uma qualidade invejável, mostrando o enorme respeito que se tinha pelo poeta já, antes da publicação de "A Rosa do Povo". Há também dois ensaios críticos, de João Adolfo Hansen e Milton Ohata, e 23 páginas de material bibliográfico, sobretudo sobre a história da publicação das múltiplas peças de que o livro se compõe. O livro é um avanço esplêndido no nosso conhecimento e compreensão do poeta, cuja prosa - "a linguagem de todos os instantes", como ele mesmo diz - fica à altura de qualquer prosa da época (ou de outras épocas), fato sublinhado já por Antonio Candido no seu ensaio.

Para mim, a releitura foi um reencontro com um velho amigo, mas com a (possível) vantagem de uma distância maior, a esperança de entender melhor, e o fascínio de velhos problemas, que podem, quem sabe, encontrar novas soluções. Drummond seria o primeiro a questionar meu entusiasmo, com a consciência profunda que tinha das perdas e ganhos que o tempo traz - "amar, depois de perder" - e a sua insistência, já em 1944, que "Hoje não escreveria quase nada do que aí se contém". Mas, sobretudo, podemos entender melhor o processo de composição do livro, feito de ensaios, "quase histórias", e apontamentos publicados aqui e ali, em Minas e no Rio de Janeiro, entre 1925 e 1944, e assim compreender melhor o "tempo" que, o poeta insiste, é ou deve ser a substância do livro. Confrontando a crescente descrença dos leitores numa literatura "que se faz à margem do tempo ou contra ele - seja por incapacidade de apreensão, covardia ou cálculo", a voz do poeta será precária - "sou eu, o poeta precário / que fez de Fulana um mito" - mas por isso mesmo é (e continua sendo) viva."Confissões de Minas" contém dois ensaios que são, sem dúvida, a melhor introdução ao poeta e à sua poesia. São opostos diametrais. Primeiro, "Suas Cartas" (publicado em duas partes em 1944 na Folha Carioca), o artigo extraordinário sobre a correspondência de Mário de Andrade com Drummond nos anos 20, com as suas citações generosas das próprias cartas, na época completamente desconhecidas. Imagina-se o efeito que deve ter tido, sobretudo depois do "terrível exame de consciência que foi a conferência sobre o movimento modernista", em 1942. Tenho até a impressão que o artigo talvez seja uma espécie de resposta a essa "insatisfação por não ter feito tudo e até mais que do que tudo": quase uma retificação histórica. Agora, nosso conhecimento aumentou. Podemos ler, por exemplo, a comovida reação do próprio Mário - "Vibrei tanto que fiquei impossibilitado muito tempo de qualquer espécie de atividade, até ler" - na edição que Drummond fez das cartas, "A Lição do Amigo", e em "Carlos e Mário", a edição da correspondência de ambos, editado e fartamente anotado por Silviano Santiago.

Seu oposto polar talvez seja "Vila de Utopia", publicado em Belo Horizonte em 1933. É o primeiro encontro pleno com Itabira-do-Mato-Dentro, com a lembrança da cidade natal. É, já, nitidamente, um encontro com uma perda: "Haverá uma terceira e diversa Itabira? Meu Deus, como me doeria responder sim à pergunta, e confessar que em 1933 o antigo menino da Rua Municipal foi encontrar a sua cidade habitada por um pelotão de velhos, que nada poderiam dizer, e por um exército de rapazes e meninas, para os quais não tinha nenhuma mensagem." Isto em 1933: o artigo foi escrito para celebrar o centenário da elevação da cidade a vila. Devo confessar que quando primeiro li o artigo, há muitos anos, quase nem notei o detalhe, subjugado pela visão da cidade "utópica", emperrado no tempo: "a cidade não avança nem recua. A cidade é paralítica." É um efeito que o artigo procura, mas já com uma profunda ironia. Está cheio da tensão entre passado, presente, e, sobretudo, futuro - o futuro que traria, nas palavras de "A Montanha Pulverizada", de "Menino Antigo" (1973), o "trem-monstro de 5 locomotivas / -- o trem maior do mundo, tomem nota", e o desaparecimento total da montanha enorme e "eterna", o Pico do Cauê, toda feita de hematita pura, e que agora é um enorme buraco na terra. No livro, Drummond informa, numa nota brevíssima, meramente fatual, que o artigo é de 1933. Não era para menos: em 1944, a Companhia do Vale do Rio Doce já fora fundada, e Itabira era o foco de uma polêmica acerca da exploração das jazidas minerais nacionais, no contexto da Guerra, e dos Acordos de Washington. "Confidência do Itabirano" - "Itabira é apenas um retrato na parede / mas como dói!" - foi publicado pela primeira vez em 1939, num cenário completamente mudado; não há leitura possível deste famoso poema sem conhecimento do novo simbolismo da cidade. "Vila de Utopia", seis anos antes, já explorava esta paisagem da perda: "eu também sou filho da mineração, e tenho os olhos vacilantes quando saio da escura galeria para o dia claro."

Entre Vila de Utopia e Suas Cartas, 1933 e 1944, o mundo mudou. No prefácio (sem título), Drummond distorce ligeiramente os fatos para sublinhar a natureza da mudança - "Este livro começa em 1932, quando Hitler era candidato (derrotado) a presidente de república e termina em 1943, com o mundo submetido a um processo de transformação pelo fogo" (duas das peças do livro datam dos anos 20); mas, "nesta fase integralmente política da humanidade" (frase de Suas Cartas), é um deslize perdoável, e provavelmente intencional. Confissões de Minas acompanha a mudança mais radical da carreira do poeta: de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro, de funcionário estadual a alto funcionário federal, de um cinismo autocrítico e angustiado ao engajamento e ao entusiasmo políticos, da fama local à fama autenticamente nacional - em suma, de Brejo das Almas, de 1934, a Sentimento do mundo, de 1940, e José, de 1942, já numa edição de toda a sua poesia, publicada pela José Olympio, a primeira editora a custear a publicação de seus livros, como sublinha o próprio Drummond na Cronologia da edição Aguilar. De fato, como nos informa Vinícius Dantas numa nota à sua edição de Plataforma de uma Geração de Antonio Candido, muitos dos poemas de A Rosa do Povo, publicado em 1945, já circulavam numa forma semi-clandestina.

Claro que Drummond tinha uma alta consciência desta mudança, durante o próprio processo - a auto-análise começou cedo, e acompanhou-o ao longo da carreira e da vida. "Confissões de Minas" contém dois exemplos cruciais. O primeiro é a famosa "Autobiografia para uma Revista", publicada, esta edição nos informa, em 1938, na Revista Acadêmica, e novamente, atualizada, em 1941, desta vez num número dedicado a Drummond; o próprio poeta disse da revista, editada por Murilo Miranda, que "refletiu o que a inteligência brasileira tinha de mais vivo, na criação literária e artística, e na crítica social". Esta "Autobiografia" estabeleceu os parâmetros da visão do poeta, que perduram até hoje - as origens burguesas em Itabira, a expulsão do colégio dos jesuítas em Nova Friburgo ("Perdi a Fé. Perdi tempo"), o poeta tímido, gauche, auto-crítico, que "não se julga substancialmente e permanentemente poeta", e, claro, o autor do escandaloso "No Meio do Caminho", "que serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais". Em Confissões, ele situa esta peça no centro da importante seção "Na rua, com os homens", logo antes de "Suas Cartas", que deve ter tido um grande efeito sobre a reputação do amigo também.

Logo a seguir vem "Estive em Casa de Candinho", mera crônica talvez, mas que nos apresenta ao mundo artístico e intelectual para a qual Drummond entrou quando emigrou para o Rio em 1934, e que descreve uma festa na casa de Candido Portinari, com uma "imensa macarronada". Apareceu num número da mesma Revista Acadêmica, dedicado ao pintor, em 1940, e cuja capa essa nova edição reproduz. "Ah, é Drummond", diz o anfitrião quando entra, detalhe que sublinha, muito levemente, a (des-)importância do poeta neste mundo. Por mais que este "homem de frágeis omelettes" fique na sombra, "calado e gauche" ao lado de figuras como Bandeira, Mário ou Murilo Mendes, ele é parte integral de um mundo que não é mais mineiro, e até começa a ultrapassar os limites nacionais. Muitos detalhes, inclusive a presença de um misterioso M. Offaire (o adido cultural francês?) estabelecem esta atmosfera de abertura. O mesmo acontece com os artigos restantes de Na Rua, com os Homens - sobre Antonio Simões dos Reis, García Lorca, François Mauriac, José Boadella, e William Berrien. Difícil imaginar um elenco mais heterogêneo - um bibliógrafo brasileiro, um poeta espanhol morto e famoso, um romancista francês e católico, outro poeta espanhol vivo e desconhecido, e um professor americano, empregado da Divisão Cultural da Fundação Rockefeller. Esta heterogeneidade talvez fosse proposital. A "timidez" ou "humildade" de Drummond foi muitas vezes um jeito de afirmar a sua própria independência e de esquivar categorizações fáceis; é possível, por exemplo, ser de esquerda e apreciar a simpatia e a companhia de um representativo da política da "boa vizinhança".

A segunda tentativa de "autobiografia", ou de aproximação à crise dos anos 30, é "Um Escritor Nasce e Morre", publicado em 1939, na Revista do Brasil, e removido para Contos de aprendiz em 1951. Relendo-o agora no seu contexto original, acho que foi uma decisão infeliz - os editores têm toda a razão ao restaurar a integridade do livro. Este tem uma unidade e uma ordem reais, se bem que relativas - como um móbile, na expressão feliz de Milton Ohata, em que as partes se refletem, se contrabalançam de várias maneiras: parece que Drummond, já no fim da vida, tinha planos de restaurar o livro. "Um Escritor Nasce e Morre" conta a crise dos anos 30 como se tivesse sido um evento apenas "literário", num sentido comicamente estrito. O poeta, ao "nascer" na aula de D. Emerenciana Barbosa, em Turmalinas, compara-se a outro Barbosa, "um homem pequenininho, de cabeça enorme, que fazia discursos muito compridos e era inteligentíssimo." Esse poeta agora morreu - "Dou minha palavra que morri, estou morto, bem morto". "Renasceu", é claro,mas fora do texto, para a vida, e para outro tipo de contacto com a realidade.

Um dos fascínios desta nova edição é que permite, ou incentiva, uma nova apreciação da fase mineira do poeta - não é por acaso que o livro se intitule Confissões de Minas. Salta aos olhos uma preocupação com a morte e o fechamento nos ensaios e apontamentos escritos antes da mudança (que podemos datar no fim de 1934). Nas palavras de "A voz pelo telefone", da última seção, Caderno de Notas, e publicado em 1932: "Mas nós estávamos em Minas Gerais, Brasil, país de caminhos fechados, país irremediável..." Os três ensaios que abrem "Na Rua, com os Homens" são homenagens, lembranças de três mineiros que morreram jovens, Alberto Campos, irmão mais novo de Milton Campos, Ascânio Lopes, do grupo da Verde de Cataguases, e João Guimarães, da mesma família de Bernardo Guimarães, Alphonsus de Guimaraens, e João Alphonsus. Mas cuidado: a mesma empatia com um lugar provinciano, católico, paralítico, reaparece em 1942, no ensaio - introdução a uma tradução de Thérèse Desqueyroux - sobre Mauriac.

É um processo complexo que, na sua totalidade, resta por estudar. Para a outra crise famosa, a que levou de A Rosa do Povo para Claro Enigma, temos o excelente livro de Vagner Camilo, Da Rosa do Povo à Rosa das Trevas (2002). Lentamente, estamos juntando as peças para esta outra história. Temos as edições das cartas de Mário e Drummond, a Bibliografia comentada de Fernando Py, que chegou até 1934, e o Inventário do arquivo do poeta, estes ambos publicados pela Casa de Rui Barbosa. Temos até uma primeira tentativa de biografia, a de José Maria Cançado (Os Sapatos de Orfeu), que não será ideal, mas tem detalhes inesquecíveis: a imagem, por exemplo, do poeta, nos seus primeiros anos cariocas, perambulando aos fins de semana com a filha Maria Julieta pelo Cemitério São João Batista, ou pelas favelas atrás de Copacabana (morte e vida, novamente...).

O processo fascina, em boa parte pelos seus muitos níveis. Vamos do assunto controvertido do poeta de esquerda, funcionário do Estado Novo, até os constantes poéticos que subjazem as mudanças "de superfície" (mas que no entanto foram inteiramente reais, não só "literários", como fica patente nas cartas do período que conhecemos). No seu ensaio no fim da edição, João Adolfo Hansen argumenta que este poeta da passagem nunca abandona uma poética da negatividade - outra forma da precariedade tão importante em A rosa do povo, e que explica a presença clara de Mallarmé mesmo no livro "engajado" de 1945. Escolhe para provar o seu argumento O Livro Inútil, de Caderno de Notas, apontamento curto, fascinante, publicado em 1935, no que imaginamos seria o momento mesmo da crise, o seu auge (ou o seu nadir). A grande virtude deste artigo (e diria que um sine qua non de toda apreciação plena da obra drummondiana) é que recusa-se a dividir o poeta em dois, o engajado e o esteta, que inexistem em estado puro. O desafio é, e continua sendo, poder transitar entre este nível de profundidade e/ou abstração, e a história, a vida diária, em comum, em que o poeta tanto insiste. Qualquer história destes anos terá que reconciliar os vários Drummonds presentes aqui em Confissões de Minas, nas cartas, na vida pública e privada, e sobretudo na poesia ("a linguagem de certos instantes, e sem dúvida os mais densos e importantes da existência"). Sobretudo, tentará entender um fenômeno que Antonio Candido já apontava, na Plataforma de uma Geração, de 1943: "Carlos Drummond representa essa coisa invejável que é o amadurecimento paralelo aos fatos; o amadurecimento que significa riqueza progressiva e não redução paulatina a princípios afastados do Tempo." O Tempo, novamente.



JOHN GLEDSON, CRÍTICO INGLÊS, MAIOR ESPECIALISTA EM DRUMMOND E MACHADO DE ASSIS NO EXTERIOR, É PROFESSOR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE LIVERPOOL. PUBLICOU, ENTRE OUTROS, POESIA E POÉTICA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE (DUAS CIDADES) E INFLUÊNCIAS E IMPASSES - DRUMMOND E ALGUNS CONTEMPORÂNEOS (COMPANHIA DAS LETRAS).


Posted: 22 Oct 2011 03:52 PM PDT