No início do mês (dia 3 de outubro) a Suprema Corte, nos
Estados Unidos, decidiu que baixar uma música da internet não equivale a exibir
essa mesma música em público. Portanto, ao copiar o arquivo de uma canção no
seu computador, o consumidor não deve ser tratado como alguém que toca essa
mesma canção para uma grande audiência, no rádio ou num show.
Ora, dirá o leitor, nada mais óbvio. Baixar uma faixa de CD
é mais ou menos como copiar no gravador de casa uma canção que a gente
sintoniza na FM. Trata-se de um ato doméstico, que não se confunde com executar
uma obra musical para uma plateia de 5 mil espectadores. No entanto, até hoje,
o pensamento oficial sobre a internet - em especial o pensamento das Cortes de
Justiça - carrega uma tendência de equipará-la aos meios de comunicação de
massa. Um erro grosseiro e desastroso. Além de obtusa, essa visão traz
consequências perversas, como a que levou parlamentares brasileiros, há coisa
de dois anos, a tentarem aprovar uma lei que impedia os cidadãos de
manifestarem suas opiniões sobre as eleições em sites e blogs durante o período
eleitoral, como se a rede mundial de computadores fosse da mesma família que as
redes de televisão e de rádio, que funcionam sob concessão pública.
O furor censório dos parlamentares acabou não vingando, para
alívio da Nação, mas o conceito equivocado em que ele plantou seu alicerce
continua aí. Por isso a recente decisão da Suprema Corte, negando as pretensões
econômicas e intimidatórias da American Society of Composers, Authors and
Publishers (Ascap), interessa especialmente a nós, brasileiros. Ela constitui
um argumento a mais para que expliquemos aos retardatários (autoritários) que
nem tudo o que vai pela internet é comunicação de massa. Aliás, quase nada na
internet é comunicação de massa. Para as relações políticas e jurídicas entre
os seres humanos essa distinção elementar faz uma diferença gigantesca.
A internet não é televisão, não é rádio, não é jornal, nem
revista, assim como não é correio ou telefone. Ela contém tudo isso ao mesmo
tempo - mas contém muito mais que isso. Existem canais de TV e de rádio na
internet, é bem verdade. Os jornais estão quase todos online, bem como as revistas,
sem falar no correio eletrônico: as pessoas trocam mensagens, como trocavam
cartas. O Skype e outros programas vieram para baratear e melhorar os velhos
telefonemas, com a vantagem de mostrar aos interlocutores a cara um do outro.
Logo, dirá a autoridade pública, a rede mundial de computadores internet é uma
Torre de Babel em que todos os meios de comunicação se encontram e se
confundem, certo?
Errado. A humanidade comunica-se pela internet - só no
Brasil já são quase 80 milhões de usuários -, mas isso não significa que ela
seja, como gostam de dizer, uma "mídia" que promove a convergência de
todas as outras "mídias". Ela é capaz de fornecer ferramentas para
que um conteúdo atinja grandes audiências de um só golpe, ao vivo, assim como
permite que duas pessoas falem entre si, reservadamente. Acima disso, porém,
ela abre outras portas, muitas outras. Pensá-la simplesmente pelo paradigma da
comunicação é estreitá-la, amofiná-la - e, principalmente, ameaçar a liberdade
que ela encerra.
A internet também é comércio: os consumidores fazem compras
virtualmente - mas isso não nos autoriza a dizer que ela possa ser regulada
como se fosse um shopping center. Vendem-se passagens aéreas e pacotes
turísticos pela rede, mas ela não cabe na definição de agência de viagens.
Correntistas acessam suas contas bancárias e pagam contas sem sair de casa, mas
a internet não é banco, e, embora quitemos nossos impostos pelo computador,
ninguém há de afirmar que a web é uma extensão da Receita Federal. Ela é tão
ampla como são amplas as atividades humanas: aceita declarações de amor, assim
como aceita lances ousados da especulação imobiliária. Nela a vida social
alcança plenamente outro nível, que não é físico, mas é real, tão real que
afeta diretamente o mundo físico, sendo capaz de transformá-lo. Mais que meio
de comunicação, a internet é, antes, a sociedade num segundo grau de abstração.
Se quiserem comparações, ela tem mais semelhança com a rede de energia elétrica
do que com um aparelho de TV ou com o alto-falante na praça do coreto.
Para efeitos da regulamentação e da regulação, a internet
não cabe num regime. Ela é capaz de abrigar tantos regimes quanto a própria
vida em sociedade - e, assim como a vida em sociedade, é maior que o direito
positivo. Ela, sim, pode conter e processar decisões judiciais e trâmites
processuais, mas estes não podem contê-la, explicá-la ou discipliná-la por
inteiro. Pretender controlá-la, taxá-la, pretender instalar pedágios em cada nó
seria equivalente a começarmos a cobrar direitos autorais de quem empresta um
livro de papel à namorada, ou, pior ainda, seria como sujeitar as conversas de
botequim à legislação do horário eleitoral na televisão e no rádio.
A rede de computadores trouxe uma expansão sem precedentes a
uma categoria que, nos estudos de sociologia e de comunicação, ganhou o nome de
"mundo da vida". Trata-se de um conceito contíguo a outro, mais
conhecido, o de "esfera pública". Nesta se encontram os temas de
interesse geral dos cidadãos. No "mundo da vida" moram as práticas
sociais mais arraigadas, a rotina mais prosaica, os nossos modos de amar, de
velar os mortos ou, se quiserem, de conversar no botequim. Não por acaso, daí,
desse mundo da vida, é que brota a esfera pública democrática; a própria
imprensa nasceu dos saraus e das tabernas, quando aí se começou a criticar o
poder.
Por isso, enfim, as formas de livre expressão na internet
precisam estar a salvo do poder do Estado e da voracidade dos grupos
econômicos. Por isso a decisão da Suprema Corte é bem-vinda.
- EUGÊNIO BUCCI. 20 Oct 2011
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