DAVID COIMBRA -
Uma vez explodiu uma fábrica de fogos de artifício no
Navegantes, perto de onde morava o meu avô. Quadras inteiras foram arrasadas,
como se o bairro tivesse sido bombardeado pela Luftwaffe. Pedaços de pessoas
voaram pelos ares e aterrissaram quilômetros adiante. Os sobreviventes não identificavam
mortos; identificavam partes deles. Uma moça reconheceu o braço do pai pelo
anel que ainda levava no dedo, um rapaz sabia que aquela era a perna do amigo
pelo sapato de pele de crocodilo que lhe restara no pé. Meu irmão, que era bem
pequeno, ficou traumatizado. Repetia a toda hora:
– Bum! Bum!
Foi exatamente isso. Ou será que não foi bem assim? Juro que
tenho essa história impressa na memória como algo que realmente aconteceu, mas,
agora, passados tantos anos, duvido de mim mesmo. Tenho quase certeza de que a
explosão da fábrica ocorreu, mas será que foi tão trágica?
Pedaços de gente voaram como bem-te-vis pelo céu da cidade?
A história da mão com o anel. Estou vendo agora mesmo a mão com o anel, a filha
assistindo à cena com a boca escancarada de horror. Parece que fui testemunha.
Fui mesmo? Ou alguém inventou e me contou? Ou eu inventei?
A memória é ardilosa. Quando estava escrevendo o livro sobre
a história dos Gre-Nais, entrevistei centenas de jogadores do passado. Eles
contavam uma história da qual tinham sido protagonistas, depois eu ia falar com
outros envolvidos e esses relatavam o mesmo episódio de forma diferente.
Então eu ia aos jornais da época para descobrir quem estava
certo. E lá havia mais uma versão, que não raro pouco tinha a ver com o que me
haviam dito uns e outros personagens. Não que pretendessem mentir, nada disso.
Eles ACREDITAVAM no que contavam. Era o que estava gravado na sua memória.
Existe uma memória coletiva, também. Imagens e reputações se
constroem, versões se consagram. Difícil distinguir a realidade crua da réstia
de fantasia. Pensando bem, talvez nem exista realidade crua. Talvez tudo seja
representação da realidade. E agora, lembrando daquele naco de tempo mais ou
menos próximo de quando deve ter ocorrido (ou não) a terrível explosão da
fábrica de fogos, percebo como tudo está mesclado, superposto ou contraposto na
minha lembrança.
Vejo-me pedalando minha Calói Zero azul-escura, minha irmã
Silvia de pé na carona e meu irmão Régis sentado na barra do guidom. Estamos
indo até um silo de cereais ali pertinho para subir no morro formado pelas
sacas e lá de cima, rente ao teto, nos atirarmos na piscina de grãos abaixo,
onde ficávamos enterrados até a cintura. Anos depois li que um menino se afogou
nos grãos fazendo exatamente isso. Os perigos da infância.
Vejo Figueroa matando a bola no peito de lenhador e saindo
da área com o queixo erguido, a passada larga, a cabeleira esvoaçante, ou será
que esse é Beckenbauer, o Kaiser, o homem que não conhecia a cor da grama
porque não olhava para baixo, ou será que é Didi, o Príncipe Etíope, que se
orgulhava de jamais ter pisado na bola? Não, Didi não podia ser, nunca vi Didi
em campo, mas vi o shortinho branco da Alice,
oh, lembro bem daquele shortinho branco e das pernas
dourado-escuras da Alice, as primeiras pernas de mulher em que toquei, quase
não acreditei quando senti a textura macia da sua pele e senti também
vertigens, pensei que ia sair flutuando do Fusca verde do pai dela, que era
onde estávamos, eu e Alice e suas coxas de chocolate ao leite, e falando nisso
vem-me a imagem do Choco Preto e Branco, acho que não existe mais Choco Preto e
Branco, nem Beijo de Moça,
nem quebra-queixo, nem bala gasosa, até porque diziam que
bala gasosa matava a criança que a engolia inteira, a bala gasosa era do
tamanho de uma bola de pingue-pongue, eu que era bom no pingue-pongue, dava um
saque de revesgueio, mas não tão bom quanto o Edu Brites, que batia forte na
bolinha, o Edu Brites tinha saque forte, inhaque forte e também tinha um chute
forte,
uma espingarda na perna direita, talvez tão forte quanto o
chute do Éder, só que o Éder era canhoto, os canhotos são revoltados e uma vez
li que o Éder era revoltado porque, quando criança, uma serpente enroscou-se
nele durante uma enchente em Belo Horizonte, deve ter sido uma enchente tipo a
de 41 em Porto Alegre, o meu avô vivia me mostrando a marca da enchente na
parede da casa dele no Navegantes, uma marca alta, ele tinha de levantar a mão
para tocá-la com o dedo indicador, ah,
eu adorava ouvir as histórias do meu avô e passei a gostar
de futebol por causa dele, ele que torcia pelo Zequinha, mas admirava o Lara, o
Tesourinha e o Foguinho, meu avô falava sempre do Foguinho e um dia eu o
conheci, ao Foguinho, e o entrevistei tantas vezes que posso dizer que nos
tornamos amigos, ao ponto de o Foguinho perguntar por mim quando já estava no
fim da sua vida, doente, de cama, abatido, justo o Foguinho que prezava tanto a
saúde e a força física e provo o que digo lembrando de um dia em que fui
visitá-lo,
ele desceu para abrir a porta e me fez entrar, ele estava de
pijama e chinelos, e nós nos acomodamos no elevador e eu perguntei “está tudo
bem, seu Rolla?”, e ele me enviou um olhar triste, suspirou e respondeu “estava
tudo bem quando eu tinha a sua idade”, e aquilo me deixou sem palavras, subi
mudo até o nono andar e lá, no apartamento dele, seu Rolla tirou umas caixas de
papelão do armário e começou a me mostrar fotos e viu uma do Pinheiro Machado,
que disse ser “o maior homem” que já havia conhecido,
e finalmente tomou nas mãos uma pequena de Luiz Carvalho, o
velho Rei da Virada, centroavante que foi presidente do Grêmio nos anos 70, na
época em que talvez tenha explodido aquela fábrica de fogos de artifício no
Navegantes, o bairro do meu avô, que admirava o Foguinho, e então o Foguinho
pegou aquela foto e olhou para a imagem do seu amigo já morto e pensou por um momento
e murmurou:
– Todos os dias eu penso no Luiz Carvalho.
Para isso também serve a memória.
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