– Humberto de Campos
A casa de José, o carpinteiro, em Nazaré, ficava à margem do
caminho que leva a Tiberíades. Pequena e humilde, mais humilde parecia, ainda,
pela ancianidade, e por não ser possível ao dono reconstruí-la. Edificada por
Jacó, primogênito de Matran, tornara-se, por morte deste, propriedade do esposo
de Maria, filha de Ana, da casa de Davi. E como o carpinteiro já se encontrasse
velho e alquebrado de forças, ia deixando que o casebre se desmoronasse,
açoitado pelos grandes ventos que sopravam no verão, das bandas do golfo de
Caifa, e no inverno, da alta cordilheira que orna o país de Sichen. Sem cercas
que a defendessem, era a casa rodeada de limoeiros, que embalsamavam o ar, e
que a afogavam, com as suas frondes de um verde escuro, como punhados de
manjericão em torno de uma rosa fanada.
Era à sombra de um desses limoeiros que José trabalhava,
quando fazia bom tempo, manejando, trêmulo, o seu serrote e a plaina primitiva.
E era sob a copa de todos os outros que brincavam, a manhã toda, e a tarde
inteira, as crianças das casas vizinhas. Atraídas para ali pela frescura do
local, vinham elas, isoladamente, ou duas a duas, ou três a três, com o seu
perfil judaico, os olhos muito vivos e chegados um ao outro, para as correrias
habituais. Trazia-as, muitas vezes, João, filho de Zacarias, antigo sacerdote
do Templo, em Jerusalém. O senhor, entre elas, da casa e dos limoeiros, era,
porém, Jesus, filho do carpinteiro, mais moço do que João quase um ano, e que
era ainda seu parente, pois que Maria, esposa de José, e Isabel, esposa do
velho sacerdote, eram primas e, apesar da diferença de idade, amigas e
confidentes.
As duas famílias, a de Zacarias como a do carpinteiro,
traziam no espírito, constantemente, duas preocupações. Segundo a palavra dos
Profetas, o povo de Israel teria de cair sob o jugo do estrangeiro, do qual o
livraria, no entanto, um grande Rei, que viria disfarçadamente à terra, com o
sangue de Davi. A primeira parte das profecias estava cumprida. Os sucessores
dos Macabeus haviam ateado a guerra civil na Judéia, e invocado, em certo o
auxílio dos romanos, que tinham escolhido entre eles um rei, de nome Herodes, o
qual reinava em Jerusalém. E a outra, a mais grave e difícil, parecia, agora,
em via de realização.
Efetivamente, nove anos antes, achando-se Zacarias sozinho
no Templo, em Jerusalém, incensando o altar, ouvira um ruído, que lhe parecera
o de um grande pássaro em vôo. Volvera, lento, o rosto, e estacara, surpreso.
Diante dele, vestido de uma túnica diáfana, e que parecia feita com o fumo do
turíbulo, estava um mancebo de fisionomia resplandecente, de cujas espáduas
saíam grandes asas, e que lhe dissera, em palavras sem mistérios, que sua
esposa, Isabel, lhe daria, dentro de alguns meses, um filho varão. Dissera
isto, e desaparecera.
Suspeitando dos próprios olhos e dos próprios ouvidos,
duvidava o sacerdote do próprio entendimento. Se a esposa, na mocidade, não lhe
dera um filho, como lho daria, agora, quando os dois, ele e ela, já se sentiam
velhos? Que fazer, pois, naquela emergência? Narrar o sucedido? Contar à
mulher, e aos íntimos, a ocorrência do Templo? Melhor seria, talvez, não pecar
pela palavra, quem já pecava, incrédulo, pelo pensamento. E desse dia em
diante, aguardando os acontecimentos de cada hora, os seus lábios se selaram
para o mundo, enquanto a sua alma se descerrava, inteira, para os olhos de
Deus.
Semanas depois, o mesmo Enviado aparecia, belo e fulgurante,
na casa do carpinteiro, em Nazaré. Levava àquele outro lar uma notícia
idêntica. Maria, esposa de José, seria mãe, e o seu filho, neto de Reis, seria
o Rei da Judéia.
De acordo com o anunciado, Isabel tivera, em verdade, um
filho, que tomou o nome de João. E Maria concebera outro, que era, agora, essa
triste criança, de seis anos, sob cujos olhos, de uma estranha doçura, as outras
vinham, de longe, brincar à sombra cheirosa dos limoeiros.
Desde o nascimento do menino, em Belém, quando iam àquela
cidade para serem recenseados por ordem de Augusto, o carpinteiro e a esposa se
haviam convencido dos altos destinos do filho. Daquele infante dependia, desde
aquela hora, a sorte do Povo de Deus. Daí os cuidados de que 0 rodeavam, a
cautela com que o vigiavam dia e noite, o susto com que acompanhavam as suas
menores enfermidades. Naquele pequenito moreno, de olhos claros e fisionomia meiga,
estava, não apenas o filho único, mas o Rei; não unicamente o rebento
miraculoso de um casal que ia desaparecendo sem prole, mas o Salvador de uma
raça, prometido pelas profecias do fundo remoto dos séculos.
Jesus havia nascido, entretanto, tão alegre como os outros
meninos de Nazaré. Ao se lhe enrijar o pequeno corpo, de linhas modelares e
puras, procurara correr, como os outros, e, como os outros, subir às árvores,
roubar o ninho aos pássaros, ou banhar-se no lago, quando a família ia a
Genezaré ou a Tiberíades. Mal, porém, tentava uma dessas distrações infantis, a
mãe acorria aflita, ou acorria o pai, preocupado, detendo-lhe o gesto ou o
desejo. E essa diferença de tratamento acordava-lhe dúvidas no espírito e no
coração. Por que, sendo o mundo tão vasto, e a vida tão boa, só lhe não cabia,
a ele, a alegria de ser livre como as crianças? Aquelas ondas cariciosas do
lago, e aqueles ninhos de rouxinol dos olivais, teriam sido feitos unicamente
para Mateus, filho de Marta, para Barnabé, filho de Manassés, para Eleazer,
filho de Josué, ou, mesmo, para João, seu primo, tão violento que só procurava
brinquedos de guerra, em que sempre saía vencedor? Por que, ainda, a
curiosidade de toda a gente, em torno da sua pessoa: 0 sorriso de zombaria de
uns, ao apontá-lo de passagem, e o respeito comovido de outros, alguns dos
quais chegavam, até, a ajoelhar na poeira dos caminhos para beijar-lhe,
chorando, a fímbria grosseira da túnica?
Sob os limoeiros copados, cujas ramas, aqui e ali, roçavam o
chão, as crianças brincavam, correndo em algazarra, simulando combates de
judeus e romanos. Por cima das ramagens, o céu era todo azul e ouro, e uma
brisa fresca soprava, como uma carícia, das bandas do lago. Balouçado por ela,
o limoal escrevia em hebraico, aqui e ali, no solo pedregoso, com letras de luz
abertas na sombra, pequenos poemas misteriosos. Tudo era, em torno, festivo e
jovial. As próprias aves, tontas de luz, cantavam mais alto.
Sentado junto ao muro limoso de um poço, Jesus, ele só,
estava triste.
— Pai — havia pedido, momentos antes, ao carpinteiro —,
deixa-me brincar com os outros!
— Não, meu filho; não podes, — respondera, paternal, o
ancião, passando a mão trêmula e rude pelos seus cabelos castanhos. — E se
caísses, em uma dessas correrias, que seria de nós, e do teu Povo?
Aquelas palavras eram, para ele, um mistério. Que
significavam elas? Que Povo era esse, que era seu, e que ele não conhecia?
Os seus olhos, doces, e mansos, encheram-se de sombra. Uma
lágrima correu, lenta e límpida, parando aqui e ali, pela sua face morena,
vindo deter-se ao canto da boca miúda, pondo, nela, um desagradável gosto de
sal.
Jesus de Nazaré começava a sofrer, nesse dia, a tristeza de
ter nascido Deus...
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Humberto de Campos, em "Contos de Natal" (Vilma Maria
da Silva, org.), São Paulo: Landy, 2006.