– José Eduardo Agualusa
Jorge Luis Borges soube que tinha morrido quando, tendo
fechado os olhos para melhor escutar o longínquo rumor da noite crescendo sobre
Genebra, começou a ver. Distinguiu primeiro uma luz vermelha, muito intensa, e
compreendeu que era o fulgor do sol filtrado pelas suas pálpebras. Abriu os
olhos, inclinou o rosto, e viu uma fileira de densas sombras verdes. Estava
estendido de costas numa plantação de bananeiras.
Aquilo deixou-o de mau humor. Bananeiras?! Ele sempre
imaginara o paraíso como uma enorme biblioteca: uma sucessão interminável de
corredores, escadas e outros corredores, ainda mais escadas e novos corredores,
e todos eles com livros empilhados até o tecto.
Levantou-se. Endireitou-se com dificuldade, sentindo-se
desconfortável dentro do próprio corpo subitamente rejuvenescido (quando
morremos reencarnamos jovens e Borges não se recordava de como isso era).
Caminhou devagar entre as bananeiras.
Parecia-lhe pouco provável encontrar ali alguém conhecido,
ou seja, alguém de quem tivesse lido algo. Ou alguém sobre quem tivesse lido
algo. Nesse caso seria alguém um pouco menos conhecido, ou um pouco menos
alguém, ou ambas as coisas.
A plantação prolongava-se por toda a eternidade. Uma dúvida
começou a atormentá-lo: talvez estivesse, afinal, não no paraíso, mas no
inferno. Para onde quer que olhasse só avistava as largas folhas verdes, os
pesados cachos amarelos, e sobre essa idêntica paisagem um céu imensamente
azul. Borges lamentava a ausência de livros. Se ali ao menos existissem tigres
– tigres metafóricos, claro, com um alfabeto secreto gravado nas manchas do
dorso –, se houvesse algures um labirinto, ou uma esquina cor-de-rosa
(bastava-lhe a esquina), mas não: só avistava bananeiras, bananeiras, ainda
bananeiras.
Bananeiras a perder de vista.
Percorreu sem cansaço, mas com crescente fastio, a infinita
plantação. Era como se
andasse em círculos. Era como se não andasse. Fazia-lhe
falta a cegueira. Cego, o que não via tinha mais cores do que aquilo – além do
mistério, claro. Como é que um homem morre na Suíça e ressuscita para a vida
eterna entre bananeiras?
Borges não gostava da América Latina. A Argentina, como se
sabe, é um país europeu (ou quase), que por desgraça faz fronteira com o
Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai. Para Borges, aquele quase sempre foi um
espinho cravado no fundo da alma. Isso e a vizinhança. Os índios ele ainda
tolerava. Tinham fornecido bons motivos para a literatura e além disso estavam
mortos. O pior eram os negros e os mestiços, gente capaz de transformar o
grande drama da vida – da vida, meu Deus! – numa festa ruidosa. Borges
sentia-se europeu. Gostava de ler os clássicos gregos (gostaria de os ter lido
em grego). Gostava do silêncio poderoso das velhas catedrais.
Foi então que a viu. À sua frente uma mulher flutuava, pálida
e nua, sobre as bananeiras. A mulher dormia, com o rosto voltado para o sol e
as mãos pousadas sobre os seios, e era belíssima, mas isso para Borges não
tinha grande importância (a especialidade dele sempre foram os tigres).
Horrorizado compreendeu o equívoco. Deus confundira-o com outro escritor
latino-americano. Aquele paraíso fora construído, só podia ter sido construído,
a pensar em Gabriel García Marquez.
Jorge Luis Borges sentou-se sobre a terra úmida. Levantou o
braço, colheu uma banana, descascou-a e comeu-a. Pensou em Gabriel García
Marquez e voltou a experimentar o intolerável tormento da inveja. Um dia o
escritor colombiano fechará os olhos, para melhor escutar o rumor longínquo da
noite, e quando os reabrir estará deitado de costas sobre o lajedo frio de uma
biblioteca. Caminhará pelos corredores, subirá escadas, atravessará outros
corredores, ainda mais escadas e novos corredores, e em todos eles encontrará
livros, milhares, milhões de livros. Um labirinto infinito, forrado de estantes
até o tecto, e nessas estantes todos os livros escritos e por escrever, todas
as combinações possíveis de palavras em todas as línguas dos homens.
Jorge Luis Borges descascou outra banana e nesse momento um
sorriso – ou algo como um sorriso – iluminou-lhe o rosto. Começava a adivinhar
naquele equívoco cruel um inesperado sentido: sendo certo que o paraíso do
outro era agora o inferno dele, então o paraíso dele haveria de ser,
certamente, o inferno do outro. Borges terminou de descascar a banana e
comeu-a. Era boa. Era um bom inferno, aquele.
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