sábado, 6 de abril de 2019

Ler um romance





Acompanhamos essas histórias como se observássemos uma paisagem e, transformando-a em pintura com os olhos da mente, deixamos que ela nos influencie

Um romance é uma segunda vida. Como os sonhos de que fala o poeta francês Gérard de Nerval, os romances revelam cores e complexidades de nossa vida e são cheios de pessoas, rostos e objetos que julgamos reconhecer. Assim como no sonho, quando lemos um romance, às vezes ficamos tão impressionados com a natureza extraordinária das coisas que nele encontramos que esquecemos onde estamos e nos vemos no meio dos acontecimentos e das pessoas imaginárias que contemplamos. Em tais ocasiões, achamos o mundo fictício que descobrimose apreciamos mais real que o mundo real. O fato de essa segunda vida nos parecer mais real que a realidade muitas vezes indica que substituímos a realidade pelo romance. Ou no mínimo o confundimos com a vida real. Mas nunca lamentamos essa ilusão, essa ingenuidade. Ao contrário, assim como em alguns sonhos, queremos que o romance que estamos lendo prossiga e esperamos que essa segunda vida continue evocando em nós uma sensação consistente de realidade e autenticidade. Apesar do que sabemos sobre a ficção, ficamos irritados e aborrecidos se um romance deixa de sustentar a ilusão de que é, na verdade, a vida real.

Sonhamos supondo que o sonho é real; essa é a definição de sonho. Do mesmo modo, lemos um romance supondo que ele é real – mas no fundo sabemos muito bem que não é assim. Esse paradoxo se deve à natureza do romance. Comecemos por enfatizar que a arte do romance conta com nossa capacidade de acreditar ao mesmo tempo em estados contraditórios.

Leio romances há quarenta anos. Sei que podemos adotar muitas posturas em relação ao romance, que existem muitas maneiras de engajar alma e mente nele, tratando-o com leviandade ou seriamente. Da mesma forma, aprendi pela experiência que há muitos modos de ler um romance. Às vezes, lemos logicamente; às vezes, com os olhos; às vezes, com a imaginação; às vezes, com uma pequena parte do cérebro; às vezes, como queremos; às vezes, como o livro quer; e, às vezes, com todas as fibras de nosso ser. Houve uma época, em minha juventude, na qual me dediquei por completo aos romances, lendo-os com atenção – até com êxtase. Naquele tempo, dos 18 aos 30 anos (1970 a1982), eu queria descrever o que me passava pela cabeça e pela alma da mesma forma como um pintor retrata com precisão e clareza uma paisagem vívida, complexa, animada, cheia de montanhas, planícies, rochedos, bosques e rios.

O que ocorre em nossa cabeça, e em nossa alma, quando lemos um romance? Em que essas sensações interiores diferem do que sentimos quando vemos um filme, contemplamos um quadro ou escutamos um poema, mesmo um poema épico? De quando em quando, um romance pode proporcionar os mesmos prazeres que uma biografia, um filme, um poema, um quadro ou um conto de fadas. No entanto, o efeito singular e verdadeiro dessa arte é fundamentalmente diferente do de outros gêneros literários, do filme e do quadro. E talvez eu possa começar a mostrar essa diferença falando sobre as coisas que eu fazia e as complexas imagens que surgiam dentro de mim quando eu lia romances apaixonadamente em minha juventude.


 *O texto abaixo, escrito por Orhan Pamuk, foi publicado na edição número 62 da revista Piauí.
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