29/12/1970
Hildinha,
a carta para você já estava escrita, mas aconteceu agora de
noite um negócio tão genial que vou escrever mais um pouco.
Depois que escrevi para você fui ler o jornal de hoje: havia
uma notícia dizendo que Clarice Lispector estaria autografando seus livros numa
televisão, à noite. Jantei e saí ventando. Cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi
uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de
tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. Me
aproximei, dei os livros para ela autografar e entreguei o meu
"Inventário". Ia saindo quando um dos escritores vagamente bichona
que paparicava em torno dela inventou de me conhecer e apresentar. Ela sorriu
novamente e eu fiquei por ali olhando. De repente fiquei supernervoso e sai
para o corredor. Ia indo embora quando (veja que GLÓRIA) ela saiu na porta e me
chamou: - “Fica comigo.” Fiquei. Conversamos um pouco. De repente ela me olhou
e disse que me achava muito bonito, parecido com Cristo. Tive 33 orgasmos
consecutivos. Depois falamos sobre Nélida (que está nos States) e você. Falei
que havia recebido teu livro hoje, e ela disse que tinha muita vontade de ler,
porque a Nélida havia falado entusiasticamente sobre "Lázaro". Aí,
como eu tinha aquele outro exemplar que você me mandou na bolsa, resolvi dar a
ela. Disse que vai ler com carinho. Por fim me deu o endereço e telefone dela
no Rio, pedindo que eu a procurasse agora quando for.
Saí de lá meio bobo com tudo, ainda estou numa espécie de
transe, acho que nem vou conseguir dormir. Ela é demais estranha. Sua mão
direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do
indicador, os outros não têm unhas. Uma coisa dolorosa. Tem manchas de
queimadura por todo o corpo, menos no rosto, onde fez plástica. Perdeu todo o
cabelo no incêndio: usa uma peruca de um loiro escuro. Ela é exatamente como os
seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura
impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase
diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de
ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais
conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei
linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto
dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente
que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor. Talvez eu
esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha
me perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu
sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e taquicardia.
Vê que estranho. Sinto que as coisas vão mudar radicalmente para mim – teu
livro e Clarice Lispector num mesmo dia são, fora de dúvida, um presságio.
Fico por aqui, já é muito tarde.
Um grande beijo do teu
Caio.
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