sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Funchal

um poema no nobel de literatura 2011

Tomas Transtromer

O restaurante do peixe na praia, uma simples barraca, construída por náufragos.
Muitos, chegados à porta, voltam para trás, mas não assim as rajadas de vento do mar. Uma sombra encontra-se num cubículo fumarento e assa dois peixes, segundo uma antiga receita da Atlântida, pequenas explosões de alho.
O óleo flui sobre as rodelas do tomate. Cada dentada diz que o oceano nos quer bem, um zunido das profundezas.
Ela e eu: olhamos um para o outro. Assim como se trepássemos as agrestes colinas floridas, sem qualquer cansaço. Encontramo-nos do lado dos animais, bem-vindos, não envelhecemos. Mas já suportámos tantas coisas juntos, lembramo-nos disso, horas em que também de pouco ou nada servíamos ( por exemplo, quando esperávamos na bicha para doar o sangue saudável – ele tinha prescrito uma transfusão). Acontecimentos, que nos podiam ter separado, se não nos tivéssemos unido, e acontecimentos que, lado a lado, esquecemos – mas eles não nos esqueceram!
Eles tornaram-se pedras, pedras claras e escuras, pedras de um mosaico desordenado.
E agora aconteceu: os cacos voam todos na mesma direcção, o mosaico nasce.
Ele espera por nós. Do cimo da parede, ele ilumina o quarto de hotel, um design, violento e doce, talvez um rosto, não nos é possível compreender tudo, mesmo quando tiramos as roupas.
Ao entardecer, saímos. A poderosa pata, azul escura, da meia ilha jaz, expelida sobre o mar. Embrenhamo-nos na multidão, somos empurrados amigavelmente, suaves controlos, todos falam, fervorosos, na língua estranha. “ um homem não é uma ilha.“ Por meio deles fortalecemo-nos, mas também por meio de nós mesmos. Por meio daquilo que existe em nós e que os outros não conseguem ver. Aquela coisa que só se consegue encontrar a ela própria. O paradoxo interior, a flor da garagem, a válvula contra a boa escuridão.
Uma bebida que borbulha nos copos vazios. Um altifalante que propaga o silêncio.
Um atalho que, por detrás de cada passo, cresce e cresce. Um livro que só no escuro se consegue ler.

Tomas Tranströmer
(Traducão do sueco para alemão por Hans Grössel)

Traducão do alemão para português por Luís Costa

"Primeira foto de Hitler",


de Wislawa Szymborska

"E quem é essa gracinha de tiptop?
É o Adolfinho, filho do casal Hitler!
Será que vai se tornar um doutor em direito?
Ou um tenor da ópera de Viena?
De quem é essa mãozinha, essa orelhinha, esse olhinho, esse narizinho?
De quem é essa barriguinha cheia de leite, ainda não se sabe;
de um tipógrafo, padre, médico, mercador?
Quais caminhos percorrerão essas pernocas, quais?
Irão para o jardinzinho, a escola, o escritório, o casório
com a filha do prefeito?
Anjinho, pimpolho, docinho de coco, raiozinho de sol,
quando chegou ao mundo um ano atrás,
não faltaram sinais na terra nem no céu:
gerânios na janela, um sol primaveril,
a música de um realejo no portão,
votos de bom augúrio envoltos em papel crepom rosa,
pouco antes do parto, o sonho profético da mãe:
sonhar com uma pomba - sinal de boas-novas,
se for pega - vem uma visita muito esperada.
Toc, toc, quem é, é o coraçãozinho do Adolfinho que bate.
Fralda, babador, chupeta, chocalho,
o menino, com a graça de Deus e bate na madeira, é sadio,
parecido com os pais, com um gatinho no cesto,
com os bebês de todos os outros álbuns de família.
Não, não vai chorar agora,
o fotógrafo atrás do pano preto vai fazer um clique.
Ateliê Klinger, Grabenstrasse Braunau,
e Braunau é uma cidade pequena mas respeitável,
firmas sólidas, vizinhos honestos,
cheiro de massa de pão e de sabão cinzento.
Não se ouve o ladrar dos cães nem os passos do destino.
Um professor de história afrouxa o colarinho
e boceja sobre os cadernos."

(De Poemas de Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien, publicação da Companhia das Letras.)

Com Deus A Nosso Lado

um poema (musicado) do nobel de literatura 2016

Com Deus A Nosso Lado
(With God On Our Side - Bob Dylan - 1964)

Com Deus Ao Nosso Lado
Meu nome não importa, e a idade, tampouco
Minha terra natal se chama Meio Oeste
Pois lá fui criado pras leis respeitar
E a terra onde vivo tem Deus a seu lado
Os livros de história contam, e contam tão bem
A cavalaria atacava, e os índios caíam
A cavalaria atacava, e os índios morriam
O país era jovem, com Deus a seu lado
A Guerra Hispano-Americana teve o seu dia
E a Guerra Civil também depressa se foi
E os nomes de heróis me forçaram a decorar
Com armas nas mãos e Deus a seu lado
A Primeira Grande Guerra lacrou nosso destino
A razão dessa luta eu nunca entendi
Mas aprendi a aceitá-la e aceitá-la com orgulho
Pois não se contam os mortos quando Deus está a seu lado
A Segunda Grande Guerra chegou ao seu fim
Perdoamos os alemães e nos tornamos seus amigos
E embora seis milhões nos fornos eles tenham fritado
Os alemães agora também têm Deus a seu lado
Aprendi a odiar os russos por toda minha vida
Se outra guerra começar serão eles os inimigos
De odiar e temer, de correr e se esconder
E tudo aceitar bravamente, com Deus a meu lado
Mas agora temos armas de pós químicos tóxicos
Se formos obrigados, vamos usar esses tóxicos
Um apertar um botão, e lá se vai o mundo todo
E você nunca faz perguntas, quando Deus está a seu lado
Nas minhas horas escuras tenho pensado sobre isso:
Que o próprio Jesus Cristo foi traído por um beijo
Mas não posso pensar por você, decidir sobre o fato:
Se Judas Iscariotes tinha Deus a seu lado
Então agora em despedida, estou cansado pra diabo.
A confusão que sinto língua alguma falava
As palavras me enchem a cabeça, e se derramam por terra:
E se Deus está a nosso lado, impedirá a próxima guerra

versão brasileira: ijs

tradução do Ivan Justen Santana, link para o seu blog


“O desenvolvimento não pode ser matéria de decretos, nem é assim que uma nação aprende de outra. Uma elite não pode, pela compulsão, pela ideologia, gerar a nação. A nação que quer se modernizar sob o impulso e o controle da classe dirigente cria uma enfermidade, que a modernidade, quando aflorar, extirpa, extirpando os Modernizadores. Todos os países que sofreram modernizações (...) expulsaram, para que o desenvolvimento se irradiasse ao povo, a elite, a classe dirigente, a burocracia (...). A modernidade emergiu com a ruptura, construindo, sobre a ruína das autocracias o desenvolvimento, capaz de se sustentar com o movimento próprio, eliminando, juntamente com os males antigos, os males modernos. Todos deixaram de ser uma dualidade, uma imobilizada oposição de direções, para revelarem sua identidade cultural, num vôo próprio, dentro do universo, libertos da tradição e da contemplação nacional.”
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- Raymundo Faoro, em "Existe um pensamento político brasileiro?". São Paulo: Ática, 1994, p. 113.