“E a Poesia? Onde estava a verdadeira Poesia?
A que deixava
na praia longa e louca de ventania,
um rasto a sinais enigmáticos
de mulher descalça.”
José Gomes Ferreira
quarta-feira, 18 de agosto de 2010
Último beijo de amor
“Well Juliet! I shall lie with thee to night” .
Bem, Julieta, hei de me deitar com você essa noite!
(Shakespeare – Romeu e Julieta)
A noite ia alta: a orgia findara. Os convivas dormiam repletos, nas trevas.
Uma luz raiou súbito pelas fisgas da porta. A porta abriu-se. Entrou uma mulher vestida de negro. Era pálida, e a luz de uma lanterna, que trazia erguida na mão, se derramava macilenta nas faces dela e dava-lhe um brilho singular aos olhos. Talvez que um dia fosse uma beleza típica, uma dessas imagens que faz-me descorar de volúpia nos sonhos de mancebo. Mas agora com sua tez lívida, seus olhos acesos, seus lábio roxos, suas mãos de mármore, e a roupagem escura e gotejante da chuva, disséreis antes – o anjo perdido da loucura.
A mulher curvou-se: com a lanterna na mão procurava uma por uma entre essas faces dormidas um rosto conhecido.
Quando a luz bateu em Arnold, ajoelhou-se. Quis dar-lhe um beijo – alongou os lábios… Mas uma idéia a susteve. Ergueu-se. Quando chegou a Johann, que dormia, um riso embranqueceu-lhe os beiços: o olhar tornou-se-lhe sombrio.
Abaixou-se junto dele: depôs a lâmpada no chão. O lume baço da lanterna dando nas roupas dela espalhava sombra sobre Johann. A fronte da mulher pendeu – e sua mão passou na garganta dele. – Um soluço rouco e sufocado ofegou daí. A desconhecida levantou-se. Tremia, e ao segurar na lanterna ressoou-lhe na mão um ferro… Era um punhal… Atirou-o no chão. Viu que tinha as mãos vermelhas – enxugou-as nos longos cabelos de Johann.
Voltou a Arnold; sacudiu-o.
- Acorda e levanta-te!
- Que me queres?
- Olha-me: não me conheces?
- Tu! E não é um sonho? És tu! Oh! deixa que eu te aperte ainda! Cinco anos sem ver-te! Cinco anos! E como mudaste!
- Sim: já não sou bela como há cinco anos! É verdade, meu loiro amante! É que a flor de beleza é como todas as flores. Alentai-as ao orvalho da virgindade, ao vento da pureza – e serão belas. – Revolvei-as no lodo – e como os frutos que caem, mergulham nas águas domar, cobrem-se de um invólucro impuro e salobro! Outrora era Giorgia, a virgem: mas hoje é Giorgia, a prostituta!
- Meu Deus! Meu Deus!
E o moço sumiu a fronte nas mãos.
- Não me amaldiçoes, não!
- Oh! deixa que me lembre; estes cinco anos que passaram foram um sonho. Aquele homem do bilhar, o duelo à queima roupa, meu acordar num hospital, essa vida devassa onde me lançou a desesperação, isso é um sonho? Oh! lembremo-nos do passado! Quando o inverno escurece o céu, cerremos os olhos; pobres andorinhas moribundas, lembremo-nos da primavera!…
- Tuas palavras me doem… É um adeus, é um beijo de adeus e separação que venho pedir-te; na terra nosso leito seria impuro, o mundo manchou nossos corpos. O amor do libertino e da prostituta! Satã riria de nós. É no céu, quando o túmulo nos lavar em seu banho, que se levantará nossa manhã de amor…
- Oh! ver-te e para deixar-te ainda uma vez! E não pensaste, Giorgia, que me fora melhor ter morrido devorado pelos cães na rua deserta, onde me levantaram cheio de sangue? Que fora-te melhor assassinar-me no dormir do ébrio, do que apontar-me a estrela errante da ventura e apagar-me a do céu? Não pensaste que, após cinco anos, cinco anos de febre e de insônias, de esperar e desesperar, de vida por ti, de saudades e agonia, fora o inferno ver-te para deixar-te?
- Compaixão, Arnold! É preciso que esse adeus seja longo como a vida. Vês, minha sina é negra: nas minhas lembranças há uma nódoa torpe… Hoje! É o leito venal… Amanhã!… só espero no leito do túmulo. Arnold! Arnold!
- Não me chames Arnold! Chama-me Artur como dantes, Artur! Não ouves? Chama-me assim! Há tanto tempo que não ouço me chamarem pó esse nome!… Eu era um louco! Quis afogar meus pensamentos, e vaguei pelas cidades e pelas montanhas deixando em toda a parte lágrimas – nas cavernas solitárias, nos campos silenciosos, e nas mesas molhadas de vinho! Vem, Giorgia! Senta-te aqui, senta-te nos meus joelhos – bem aconchegada a meu coração… tua cabeça no meu ombro! Vem um beijo! Quero sentir ainda uma vez o perfume que respirava outrora nos teus lábios. – Respire-o eu e morra depois!… Cinco anos! Oh! tanto tempo a esperar-te, a desejar uma hora no teu seio!… Depois… escuta… tenho tanto a dizer-te! Tantas lágrimas a derramar no teu colo! Vem! E dir-te-ei toda a minha história! Minhas ilusões de amante e as noites malditas da crápula, e o tédio que me inspiravam aqueles beiços frios das vendidas que me beijavam! Vem! Contar-te-ei tudo isso: dir-te-ei como profanei minha alma, e meu passado: e choraremos juntos – e nossas lágrimas nos levarão como a chuva lava as folhas do lodo!
- Obrigado, Artur! Obrigado!
A mulher sufocava-se nas lágrimas, e o mancebo murmurava entre beijos palavras de amor.
- Escuta, Artur, eu vinho só dizer-te – adeus! – da borda do meu túmulo: e depois contente fecharia eu mesma a porta dele… Artur, eu vou morrer!
Ambos choravam.
- Agora vê – continuou ela. – Acompanha-me: vês aquele homem?
Arnold tomou a lanterna.
- Johann! Morto! Sangue de Deus! Quem o matou?
- Giorgia. Era ele um infame. Foi quem deixou por morto um mancebo a quem esbofeteara numa casa de jogo. Giorgia a prostituta vingou nele Giorgia, a virgem. Esse homem foi quem a desonrou! Desonrou-a, a ela que era sua irmã!
- Horror! Horror!
E o moço virou a cara e cobriu-a com as mãos.
A mulher ajoelhou-se a seus pés.
- E agora adeus! Adeus que morro! Não vês que fico lívida, que meus olhos se empanam e tremo… e desfaleço?
- Não! Eu não partirei. Se eu vivesse amanhã haveria uma lembrança horrível em meu passado…
- E não tens medo? Olha! É a morte que vem! É a vida que crepuscula em minha fronte. Não vês esse arrepio entre minhas sobrancelhas?…
- E que me importa o sonho da morte? Meu porvir amanhã seria terrível: e à cabeça apodrecida do cadáver não ressoam lembranças; seus lábios gruda-os a morte: a campa é silenciosa. Morrerei!
A mulher recuava… recuava. O moço tomou-a nos braços, pregou os lábios nos dela… Ela deu um grito, e caiu-lhe das mãos. Era horrível de ver-se. O moço tomou o punhal, fechou os olhos, apertou-o no peito, e caiu sobre ela. Dois gemidos sufocaram-se no estrondo do baque de um corpo…
A lâmpada apagou-se.
Fonte: http://www.trapichedosoutros.blogspot.com/
Bem, Julieta, hei de me deitar com você essa noite!
(Shakespeare – Romeu e Julieta)
A noite ia alta: a orgia findara. Os convivas dormiam repletos, nas trevas.
Uma luz raiou súbito pelas fisgas da porta. A porta abriu-se. Entrou uma mulher vestida de negro. Era pálida, e a luz de uma lanterna, que trazia erguida na mão, se derramava macilenta nas faces dela e dava-lhe um brilho singular aos olhos. Talvez que um dia fosse uma beleza típica, uma dessas imagens que faz-me descorar de volúpia nos sonhos de mancebo. Mas agora com sua tez lívida, seus olhos acesos, seus lábio roxos, suas mãos de mármore, e a roupagem escura e gotejante da chuva, disséreis antes – o anjo perdido da loucura.
A mulher curvou-se: com a lanterna na mão procurava uma por uma entre essas faces dormidas um rosto conhecido.
Quando a luz bateu em Arnold, ajoelhou-se. Quis dar-lhe um beijo – alongou os lábios… Mas uma idéia a susteve. Ergueu-se. Quando chegou a Johann, que dormia, um riso embranqueceu-lhe os beiços: o olhar tornou-se-lhe sombrio.
Abaixou-se junto dele: depôs a lâmpada no chão. O lume baço da lanterna dando nas roupas dela espalhava sombra sobre Johann. A fronte da mulher pendeu – e sua mão passou na garganta dele. – Um soluço rouco e sufocado ofegou daí. A desconhecida levantou-se. Tremia, e ao segurar na lanterna ressoou-lhe na mão um ferro… Era um punhal… Atirou-o no chão. Viu que tinha as mãos vermelhas – enxugou-as nos longos cabelos de Johann.
Voltou a Arnold; sacudiu-o.
- Acorda e levanta-te!
- Que me queres?
- Olha-me: não me conheces?
- Tu! E não é um sonho? És tu! Oh! deixa que eu te aperte ainda! Cinco anos sem ver-te! Cinco anos! E como mudaste!
- Sim: já não sou bela como há cinco anos! É verdade, meu loiro amante! É que a flor de beleza é como todas as flores. Alentai-as ao orvalho da virgindade, ao vento da pureza – e serão belas. – Revolvei-as no lodo – e como os frutos que caem, mergulham nas águas domar, cobrem-se de um invólucro impuro e salobro! Outrora era Giorgia, a virgem: mas hoje é Giorgia, a prostituta!
- Meu Deus! Meu Deus!
E o moço sumiu a fronte nas mãos.
- Não me amaldiçoes, não!
- Oh! deixa que me lembre; estes cinco anos que passaram foram um sonho. Aquele homem do bilhar, o duelo à queima roupa, meu acordar num hospital, essa vida devassa onde me lançou a desesperação, isso é um sonho? Oh! lembremo-nos do passado! Quando o inverno escurece o céu, cerremos os olhos; pobres andorinhas moribundas, lembremo-nos da primavera!…
- Tuas palavras me doem… É um adeus, é um beijo de adeus e separação que venho pedir-te; na terra nosso leito seria impuro, o mundo manchou nossos corpos. O amor do libertino e da prostituta! Satã riria de nós. É no céu, quando o túmulo nos lavar em seu banho, que se levantará nossa manhã de amor…
- Oh! ver-te e para deixar-te ainda uma vez! E não pensaste, Giorgia, que me fora melhor ter morrido devorado pelos cães na rua deserta, onde me levantaram cheio de sangue? Que fora-te melhor assassinar-me no dormir do ébrio, do que apontar-me a estrela errante da ventura e apagar-me a do céu? Não pensaste que, após cinco anos, cinco anos de febre e de insônias, de esperar e desesperar, de vida por ti, de saudades e agonia, fora o inferno ver-te para deixar-te?
- Compaixão, Arnold! É preciso que esse adeus seja longo como a vida. Vês, minha sina é negra: nas minhas lembranças há uma nódoa torpe… Hoje! É o leito venal… Amanhã!… só espero no leito do túmulo. Arnold! Arnold!
- Não me chames Arnold! Chama-me Artur como dantes, Artur! Não ouves? Chama-me assim! Há tanto tempo que não ouço me chamarem pó esse nome!… Eu era um louco! Quis afogar meus pensamentos, e vaguei pelas cidades e pelas montanhas deixando em toda a parte lágrimas – nas cavernas solitárias, nos campos silenciosos, e nas mesas molhadas de vinho! Vem, Giorgia! Senta-te aqui, senta-te nos meus joelhos – bem aconchegada a meu coração… tua cabeça no meu ombro! Vem um beijo! Quero sentir ainda uma vez o perfume que respirava outrora nos teus lábios. – Respire-o eu e morra depois!… Cinco anos! Oh! tanto tempo a esperar-te, a desejar uma hora no teu seio!… Depois… escuta… tenho tanto a dizer-te! Tantas lágrimas a derramar no teu colo! Vem! E dir-te-ei toda a minha história! Minhas ilusões de amante e as noites malditas da crápula, e o tédio que me inspiravam aqueles beiços frios das vendidas que me beijavam! Vem! Contar-te-ei tudo isso: dir-te-ei como profanei minha alma, e meu passado: e choraremos juntos – e nossas lágrimas nos levarão como a chuva lava as folhas do lodo!
- Obrigado, Artur! Obrigado!
A mulher sufocava-se nas lágrimas, e o mancebo murmurava entre beijos palavras de amor.
- Escuta, Artur, eu vinho só dizer-te – adeus! – da borda do meu túmulo: e depois contente fecharia eu mesma a porta dele… Artur, eu vou morrer!
Ambos choravam.
- Agora vê – continuou ela. – Acompanha-me: vês aquele homem?
Arnold tomou a lanterna.
- Johann! Morto! Sangue de Deus! Quem o matou?
- Giorgia. Era ele um infame. Foi quem deixou por morto um mancebo a quem esbofeteara numa casa de jogo. Giorgia a prostituta vingou nele Giorgia, a virgem. Esse homem foi quem a desonrou! Desonrou-a, a ela que era sua irmã!
- Horror! Horror!
E o moço virou a cara e cobriu-a com as mãos.
A mulher ajoelhou-se a seus pés.
- E agora adeus! Adeus que morro! Não vês que fico lívida, que meus olhos se empanam e tremo… e desfaleço?
- Não! Eu não partirei. Se eu vivesse amanhã haveria uma lembrança horrível em meu passado…
- E não tens medo? Olha! É a morte que vem! É a vida que crepuscula em minha fronte. Não vês esse arrepio entre minhas sobrancelhas?…
- E que me importa o sonho da morte? Meu porvir amanhã seria terrível: e à cabeça apodrecida do cadáver não ressoam lembranças; seus lábios gruda-os a morte: a campa é silenciosa. Morrerei!
A mulher recuava… recuava. O moço tomou-a nos braços, pregou os lábios nos dela… Ela deu um grito, e caiu-lhe das mãos. Era horrível de ver-se. O moço tomou o punhal, fechou os olhos, apertou-o no peito, e caiu sobre ela. Dois gemidos sufocaram-se no estrondo do baque de um corpo…
A lâmpada apagou-se.
Fonte: http://www.trapichedosoutros.blogspot.com/
Assinar:
Postagens (Atom)