Defesa da Democracia
"A ampla divulgação, pela grande mídia corporativa, de
denúncias envolvendo integrantes do primeiro escalão do governo interino de
Michael Temer e também a divulgação do pedido de prisão de altos dirigentes do
PMDB, Renan Calheiros, presidente do Senado, Romero Jucá, ex-ministro do
planejamento, e de José Sarney, ex-presidente da República e do Senado,
deixaram aturdidos os analistas políticos e, principalmente, os cidadãos comuns
que procuram entender os rumos da política nacional.
Por que motivos a grande mídia, que tudo fez para desgastar
o PT e suas lideranças e para criar o clima que possibilitou o afastamento,
ainda temporário, da presidenta Dilma Rousseff, agora se apressa em divulgar,
em amplas manchetes, os descalabros do governo Temer e de seus integrantes,
incluindo acusações que atingem o próprio presidente interino?
Por que motivos o Procurador Geral da República, Rodrigo
Janot, que já havia pedido investigação sobre as alegadas propriedades do
ex-presidente Lula da Silva e também sobre suas possíveis ações em benefício de
grandes empreiteiras brasileiras no exterior, o que contribuiu em muito para
desestabilizar o governo de Dilma Rousseff, depois de ter conseguido o
afastamento do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, pede, agora, a prisão de
figuras chaves do governo de turno?
As evidências disponíveis para a interpretação do jogo
político em curso indicam que a articulação jurídico-parlamentar-midiática é
muito maior, mais profunda e mais complexa do que tirar Dilma Rousseff e o PT
do governo e, de quebra, impedir que Lula da Silva seja candidato em 2018. Há,
pelo menos, duas hipóteses a serem analisadas para compreender os fatos, ambas
reveladoras de que há um intenso processo de disputa no interior das forças que
promoveram o impeachment e que desestabilizaram o país.
A primeira delas, mais simples, é a de que o PSDB, os
procuradores federais, juízes e delegados que integram a Força Tarefa da
Operação Lava Jato, mais o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, e,
ainda, parte do STF estejam aliados e disputando com Temer a posse do poder.
Para destituir Dilma, eles teriam se aliado a Michel Temer e a Eduardo Cunha,
em um primeiro momento. Cumprida a primeira etapa do processo, teria chegado a
hora de afastar o presidente interino e conquistar o governo.
Para que isto seja possível, alguns peessedebistas poderiam
até ser defenestrados, como por exemplo Aécio Neves, um dos campeões de citações
nas delações premiadas envolvendo empreiteiras que atuaram na Petrobras, para
que outros tucanos, talvez Geraldo Alckmin ou José Serra, tenham chance de
disputar e vencer em uma nova eleição a ser realizada ainda neste ano, por meio
do voto popular, ou no ano que vem, por meio do voto dos parlamentares – pois
de acordo com Constituição, se a presidente Dilma e seu vice Temer forem
destituídos durante a primeira metade do mandato para o qual foram eleitos,
ocorrerão novas eleições populares; se, no entanto, a destituição dupla ocorrer
na segunda metade do mandato, as eleições serão indiretas.
A segunda hipótese de análise, mais ousada e mais nebulosa,
é a de que a articulação em curso inclua apenas a já chamada República do
Paraná, ou seja a parcela de procuradores federais e delegados da PF
integrantes da Força Tarefa da Operação Lava Jato, mais Rodrigo Janot e parte
do STF, deixando de fora o PSDB e seus próceres. Na possibilidade de esta
interpretação ser a correta, este conjunto de personagens estaria atuando para
promover uma “limpeza geral” dos atuais quadros políticos nacionais e um
desmonte completo das instituições políticas atualmente existentes no país.
Neste caso, as acusações aos políticos e os seus vazamentos,
bem como os afastamentos, as prisões e as destituições continuariam com toda a
força, não poupando integrantes de nenhum partido político e de nenhuma
instância do governo Federal. Não apenas Lula da Silva, Dilma Rousseff, Eduardo
Cunha, Renan Calheiros, José Sarney, Michael Temer e os integrantes de seu
governo interino seriam investigados, processados e talvez presos, mas também
Aécio Neves e, ainda, José Serra e Geraldo Alckmin e, ousadia suprema, até
mesmo Fernando Henrique Cardoso. Até mesmo Marina Silva, que vinha se mantendo impune
até há poucos dias, estaria sujeita a punições por fraudes e propinas
utilizadas no financiamento da campanha eleitoral de seu antigo companheiro,
Eduardo Campos, e dela própria.
A falta de informações confiáveis impede que se possa
antever até onde poderá ir a chamada República de Curitiba. Sua força advirá
apenas da aliança construída com a grande mídia corporativa e alimentada pelos
vazamentos seletivos de depoimentos e acusações realizados em momentos
estrategicamente planejados ou existirão aliados mais poderosos, possivelmente
de fora do país? É sabido e foi amplamente noticiado que grande parte dos
integrantes da força tarefa da Lava Jato e delegados da PF receberam
treinamento no FBI, por força de convênio firmado durante o governo FHC e ainda
vigente, e os procuradores federais brasileiros mantêm estreitas relações com
seus congêneres norte-americanos. Além disso, a proximidade de Rodrigo Janot e
Sérgio Moro com a justiça dos EUA é tão grande, que eles têm prestado
informações confidenciais a respeito da Petrobras no processo movido contra ela
por investidores internacionais que se julgaram prejudicados pela diminuição
dos valores de suas ações na bolsa de Nova Iorque.
Cabe lembrar, ainda, que a Petrobras e o Pre-Sal, que
garantirão ao Brasil a posse da quinta maior reserva petrolífera do mundo,
foram os alvos da espionagem realizada pela NSA, agência nacional de espionagem
norte-americana, sobre a presidenta Dilma Rousseff e todo seu staff palaciano.
Escândalo que veio a público em 2012 e que estremeceu as relações entre o
Brasil e os EUA, fazendo com que a presidenta brasileira cancelasse encontro
anteriormente agendado com o presidente daquele país.
Qualquer que seja a hipótese verdadeira dentre as duas aqui
consideradas, o fato concreto é que o país enfrentará um enorme desafio para
reconstruir suas instituições ao final do tsunami político em curso.
Na Itália, onde ocorreu ação jurídico-midiática semelhante à
que ocorre no Brasil hoje, com a Operação Mãos Limpas, durante os anos de
1992/1996, o saldo final foi desastroso. As máfias, que se pretendiam expurgar
do país e da política, assumiram diretamente o poder por meio da conquista dos
espaços políticos deixados vagos no Parlamento por força das cassações e
prisões. Sílvio Berlusconi, dono do maior conglomerado de mídia do país,
envolvido em casos de sonegação fiscal e associado aos segmentos políticos e
empresariais mais retrógrados do país, foi eleito Chefe do Conselho de
Ministros (Primeiro Ministro) e exerceu o poder durante nove longos anos. Ainda
hoje, passados já 20 anos do encerramento do processo, os representantes das
novas máfias continuam exercendo grande influência na política italiana.
No Brasil, a desestruturação política das instituições do
Estado e das empresas nacionais responsáveis pela construção das plataformas
submarinas de exploração de petróleo e pelo desenvolvimento do submarino e do
projeto nuclear brasileiro, entre outras ações estratégicas, tem sido tão
intensa e tão profunda que exigirá muito tempo e muito esforço para ser
superada.
Está em curso o desmanche das instituições políticas e o
enfraquecimento das únicas empresas nacionais aptas ao desenvolvimento de
tecnologia de ponta e com capacidade de concorrer no mercado internacional,
decorrente da forma como foram feitas as ações de combate à corrupção
executadas por integrantes da Procuradoria Geral da República e do Poder
Judiciário brasileiro.
A partir do início do governo interino, passaram a ser
desmontadas também as políticas sociais, que garantiram a inserção de milhões
de pessoas principalmente ao mercado de consumo, ao ensino e à saúde públicos,
e a política de inserção internacional do país em uma posição de protagonismo
entre as nações em desenvolvimento.
No espaço político, mesmo que Eduardo Cunha e Renan
Calheiros sejam destituídos definitivamente de seus cargos e de seus mandatos e
até mesmo presos, as bancadas BBB (da Bala, da Bíblia e do Boi), que reúnem os
políticos mais reacionários da política brasileira, aliadas aos deputados e
senadores eleitos pelo poder dos recursos de empresas privadas, continuarão
dominando as votações na Câmara e no Senado e impondo novas derrotas e novos
sobressaltos à governante, em caso de seu difícil retorno.
Além disso, os estragos feitos por Temer e seus aliados
durante o exercício do governo interino, tanto nas políticas sociais, quanto na
política econômica e, ainda, na política externa brasileira, dificilmente serão
revertidos sem que se componha nova maioria parlamentar, só possível com a
eleição de novos representantes no Congresso Nacional.
A disputa interna estabelecida e acirrada entre os
articuladores e executores do processo de impeachment de Dilma Rousseff, aliada
à resistência popular, eclodida em manifestações de repúdio a Temer em todo o
país, ao surgimento de movimentos, comitês e núcleos em defesa da democracia e
do estado democrático de direito, à baixa aprovação do governo interino,
aferida por pesquisas de opinião pública e, ainda, à possível divulgação de uma
carta, por meio da qual a presidenta afastada se comprometeria, tão logo
reassumisse o cargo, a apresentar proposta de consulta popular sobre sua
permanência ou a realização de eleições gerais no país, talvez possam
influenciar o voto de um número suficiente de senadores para reverter o
processo de impeachment.
Em qualquer um destes dois cenários – a permanência da
presidenta ou a realização de eleições gerais no país – para reverter as
medidas de desmonte do Estado efetuadas pelo governo interino, promover uma
ampla reforma política e institucional e, com isto, dar início a um processo de
reconstrução do país, será necessária a constituição de uma ampla frente
política.
Sem a constituição de uma grande e ampla frente, na qual
partidos políticos, movimentos sociais, sindicatos e as novas organizações
surgidas à margem das anteriores ajam em conjunto e tenham o mesmo peso nas
decisões, de forma semelhante à Frente Ampla Uruguaia, o fôlego da resistência
será curto e a força reunida será insuficiente para que se possa superar a
crise atual.
Uma Frente Ampla, como a que vem sendo proposta por alguns
movimentos, núcleos e comitês de resistência ao golpe e de defesa da
democracia, só vingará se for assumida pelos partidos e líderes políticos de
esquerda e centro-esquerda, acolhendo os partidos de centro e todos os liberais
democratas que se mostrarem dispostos a participar da luta pela reconstrução
das instituições políticas brasileiras.
Os partidos políticos de esquerda e de centro-esquerda, até
agora pelo menos, não deram mostras de estarem dispostos a construir uma frente
ampla deste tipo. A Frente Brasil Popular continua com muitos dos antigos
vícios hegemonistas dos partidos que a compõem. A Frente Povo Sem Medo, ainda
não contaminada por práticas oligárquicas, posto que recentemente fundada, não
conseguiu sequer a adesão da totalidade dos dirigentes do PSOL, muitos deles
ainda simpáticos ao processo de impeachment de Dilma Rousseff.
Vejam-se, além disso, as articulações para as candidaturas
das eleições municipais a se realizarem em outubro, nas quais cada partido
tenta impor o seu candidato. De modo geral, não há renovação sequer de nomes,
quanto mais de propostas e de posturas. Sendo assim, enquanto as oligarquias
partidárias de esquerda não reavaliarem suas práticas, dificilmente vingará a
possibilidade de composição de uma verdadeira Frente Ampla Democrática.
Será preciso uma enorme pressão dos movimentos recém
surgidos na cena política brasileira, para fazer os militantes e dirigentes
partidários entenderem que ou eles se renovam ou todos nós teremos muito pouca
chance de mudar o jogo e de reestruturar o país no rumo da construção de uma
efetiva democracia social em um tempo não muito dilatado.
Programas de frentes amplas têm que ser construídos em
conjunto com os parceiros e nunca a priori, por apenas um ou por um pequeno
grupo de forças políticas que tome a dianteira. Cada um dos integrantes precisa
ter peso semelhante na formulação das propostas e, ao final, liberdade para
aceitá-las ou não. Se algum dos possíveis parceiros se colocar como liderança e
tentar definir isoladamente que rumos e que limites estabelecer, estará
comprometida, desde o início, a frente agora proposta, pois, mais uma vez,
haverá alguém ou um partido assumindo ou tentando assumir uma posição de
hegemonia sobre os demais.
Só quando cada um dos movimentos, núcleos, comitês e
partidos políticos realmente comprometidos com a democracia e a construção de
um país socialmente mais justo se dispuserem a caminhar juntos sob estas
bandeiras, teremos uma chance concreta de converter o processo de desmonte
político-institucional, social e econômico em curso em um amplo, profundo e
salutar processo de reconstrução e reestruturação nacional.
Benedito Tadeu César