“O tempo livre, a alma e, quem diria, uma prótese de primeira natureza, tudo é insumo precioso na busca do lucro. Sob o pretexto de satisfazer as necessidades humanas, a parafernália capitalista não faz mais do que zelar pela sua perpetuação, rebaixando os homens a meios de sua própria conservação.”
Fernando Haddad
domingo, 12 de fevereiro de 2012
Ofício de morrer
eu imagino assim a morte de pavese:
era um quarto de hotel em turim,
decerto um hotel modesto, de uma ou duas
estrelas, se é que havia estrelas.
uma cama de pau, de verniz estalado,
rangendo de encontros fortuitos, um colchão mole e húmido
com a cova no meio, a do costume.
corria o mês de agosto com sua terra escura
encardindo as cortinas. nada ia explodir
naquele mês de agosto àquela hora da tarde
de luz adocicada. e alguém pusera
três rosas de plástico num solitário verde.
vejo como pavese entrou, como pousou a maleta
com indiferença, dobrou alguns papéis
e despiu o casaco (como nos filmes
italianos da época). depois foi aos lavabos
no corredor, ao fundo. talvez tenha pensado
que esta vida é uma mijadela ou que.
voltou ao quarto, havia
uma fétida alma em tudo aquilo.
ele abriu a janela
e pediu a chamada telefónica.
a noite ia caindo sem palavras, memo sem businas
excessivas. encheu um copo de água. e esperou.
quando a campainha tocou, havia muito pouco
a dizer e ele já o tinha dito:
já tinha dito quanto amar nos torna
vulneráveis; e míseros, inermes;
que é precisa humildade, não orgulho;
e parar de escrever;
e que dessa nudez é que morremos.
foi mais ou menos isto – a nossa condição
demasiado humana, a voz humana, a frágil
expressão disso tudo, uma firmeza tensa.
«e até rapariguinhas o fizeram».
tinham nomes obscuros e nenhum
remorso lancinante, ninguém pra falar delas.
a mais temida coisa é a coragem
do que parecia fácil: tudo o que não se disse
carregado num acto de súbitas fronteiras.
foi mais ou menos isto. não sei se ele a seguir
pôs do lado de fora um letreiro
com do not disturb ou coisa assim,
nem se tomou as pastilhas uma a uma, ou se as contou.
não sei se o encontrou uma criada,
se a polícia veio logo, se deixou uma carta
ao seu melhor amigo, se apagou a luz,
nem se pousou ao lado a carteira, o relógio, a esferográfica.
não sei se entrou na morte como quem
traz imagens pungentes na cabeça,
palavras marteladas de desejo, ou como quem friamente
está no avesso do sono e vai calar-se e é justo.
não sei se foi assim, se existe uma outra
verdade imaginável ou vedada. sei que ele tinha
um olhar decidido, alguma instigadora, e quarenta e dois anos,
e sei que nessa altura há já poucas verdades
e nenhuma dimensão biográfica na morte.
já vem nas escrituras. eu prefiro
dizer que ele fechou a porta à chave
e sei que era viril a sua transparência.
Vasco Graça Moura
- Poesia & Lda.
era um quarto de hotel em turim,
decerto um hotel modesto, de uma ou duas
estrelas, se é que havia estrelas.
uma cama de pau, de verniz estalado,
rangendo de encontros fortuitos, um colchão mole e húmido
com a cova no meio, a do costume.
corria o mês de agosto com sua terra escura
encardindo as cortinas. nada ia explodir
naquele mês de agosto àquela hora da tarde
de luz adocicada. e alguém pusera
três rosas de plástico num solitário verde.
vejo como pavese entrou, como pousou a maleta
com indiferença, dobrou alguns papéis
e despiu o casaco (como nos filmes
italianos da época). depois foi aos lavabos
no corredor, ao fundo. talvez tenha pensado
que esta vida é uma mijadela ou que.
voltou ao quarto, havia
uma fétida alma em tudo aquilo.
ele abriu a janela
e pediu a chamada telefónica.
a noite ia caindo sem palavras, memo sem businas
excessivas. encheu um copo de água. e esperou.
quando a campainha tocou, havia muito pouco
a dizer e ele já o tinha dito:
já tinha dito quanto amar nos torna
vulneráveis; e míseros, inermes;
que é precisa humildade, não orgulho;
e parar de escrever;
e que dessa nudez é que morremos.
foi mais ou menos isto – a nossa condição
demasiado humana, a voz humana, a frágil
expressão disso tudo, uma firmeza tensa.
«e até rapariguinhas o fizeram».
tinham nomes obscuros e nenhum
remorso lancinante, ninguém pra falar delas.
a mais temida coisa é a coragem
do que parecia fácil: tudo o que não se disse
carregado num acto de súbitas fronteiras.
foi mais ou menos isto. não sei se ele a seguir
pôs do lado de fora um letreiro
com do not disturb ou coisa assim,
nem se tomou as pastilhas uma a uma, ou se as contou.
não sei se o encontrou uma criada,
se a polícia veio logo, se deixou uma carta
ao seu melhor amigo, se apagou a luz,
nem se pousou ao lado a carteira, o relógio, a esferográfica.
não sei se entrou na morte como quem
traz imagens pungentes na cabeça,
palavras marteladas de desejo, ou como quem friamente
está no avesso do sono e vai calar-se e é justo.
não sei se foi assim, se existe uma outra
verdade imaginável ou vedada. sei que ele tinha
um olhar decidido, alguma instigadora, e quarenta e dois anos,
e sei que nessa altura há já poucas verdades
e nenhuma dimensão biográfica na morte.
já vem nas escrituras. eu prefiro
dizer que ele fechou a porta à chave
e sei que era viril a sua transparência.
Vasco Graça Moura
- Poesia & Lda.
Imagens do Sagrado.
Em 1951, a revista O Cruzeiro publicou uma reportagem sobre um ritual de iniciação no Candomblé, na Bahia, com a seguinte títuto “As Noivas dos Deuses Sanguináros”, com 42 fotografias de Jose Medeiros. Seis anos depois, a mesma editora publicou un livro, chamado de “Candomblé”, com mais 22 fotografias inéditas. A nova forma de publicação colocou as mesmas imagens em outro formato e em outra valorização imagética. Pretendemos nessa comunicação discutir o deslocamento dos significados sociais entre o sensacionalismo e a documentação etnográfica. A partir de um estudo de caso, pretendemos discutir os formatos de apresentação de material etnográfico nos meios de comunicação de massas e suas decorrentes conseqüências com a invasão de um olhar leigo “voyerista” e, muitas vezes preconceituoso, induzido pela mídia em relação às cerimônias e rituais tradicionais de culturas locais não globalizadas.
Autor: Fernando de Tacca
Fotógrafo e professor no Departamento de Multimeios, Unicamp.
e -mail: tacca@unicamp.br
Fonte: Revista chilena de antropologia visual.número 4. julho 2004.
http://www.antropologiavisual.cl/fernando_de_tacca.htm#Layer2
Autor: Fernando de Tacca
Fotógrafo e professor no Departamento de Multimeios, Unicamp.
e -mail: tacca@unicamp.br
Fonte: Revista chilena de antropologia visual.número 4. julho 2004.
http://www.antropologiavisual.cl/fernando_de_tacca.htm#Layer2
Um poeta da resistência
Sobre o autor deste artigoUrariano Mota - Recife
É pernambucano, jornalista e autor de "Soledad no Recife", recriação dos últimos dias de Soledad Barret, mulher do cabo Anselmo, executada pela equipe do Delegado Fleury com o auxílio de Anselmo.
Um poeta da resistência
Recife (PE) - Em um belo dia de julho de 2009, o ex-preso político Alípio Freire nos guiou pelo Memorial da Resistência em São Paulo. Ali ele conduziu a mim, a minha esposa e filha pelas celas do Deops paulista e, em lugar da pura exposição do terror estatal, nos mostrou humanidade e sementes de esperança entre mortos e torturados.
Enquanto Alípio discorria por entre aquelas paredes, era possível notar que nele residiam juntos um artista plástico, um intelectual, um bom narrador de casos e causos, contados como se surgissem do nada, no meio de pausas de um cigarro e outro. Mas isso, digamos, ainda não estava materializado como um documento íntimo, pessoal da história daqueles anos - eram percepções de passagem entre fumaças. A existência do Memorial era, é objetiva, a sua necessária e dura referência está ao lado de nós. Ali houve e há uma história ocorrida antes e agora pelo rescaldo da ditadura, da sociedade de classes, abjeta e objetiva.
Mal sabia eu que outro Memorial da Resistência já se encontrava em gestação, em uma forma imprevisível e original, como agora sei ao ler “Poemas - De Ordem Política e Social”. Pois aqui ocorre o lugar de um outro Departamento, que em vez de um Deops se estabelece como um Poeops, mas nada de Poe, de Allan Poe, porque Alípio Freire escreve à sua maneira a Poesia que é uma Resistência daquelas vidas de jovens e velhos, homens e mulheres subversivos contra a Ordem. E o resultado agora todos vão conhecer.
Quisera eu poder guiá-los neste momento. Ainda que não tenha o dom do artista Alípio, quando em 2009 nos conduziu pelo Memorial da Resistência, tentarei algo à semelhança de uma apresentação do poeta neste livro que se abre como um fruto maduro, caído do pé da árvore do Brasil.
Na primeira revelação, descubro que todo poeta chama, reclama e ensina para o leitor uma nova poética - aquela que o liberta e nos liberta do vício do acostumado, da forma que é fôrma. Os indivíduos mais tradicionais e conservadores – e nada mais burro e estéril que pessoas condenadas à carga desses dois adjetivos – poderiam dizer que em alguns poemas de Alípio há uma tendência de versos que são uma prosa em linhas descontínuas. E com isso o estúpido confunde poesia com determinados temas e canto ao orvalho na flor, por um lado, e por outro, com a obscuridade, que com freqüência é vista como sublime.
Mas o que é a poesia? Será ela somente a de significados multívocos, quando não ambíguos, com a dignificação de “poesia aberta?” Ou seria ela, mais propriamente, aquele associada ao sentido de beleza e verdade, verdade e beleza, beleza e verdade, até o sol raiar e noite adentro? Se não for isso, parem aqui e respondam depois da leitura:
“Eu tenho uma casinha
lá na Marambaia
fica na beira da praia
onde helicópteros e aviões da Aeronáutica
despejavam corpos de opositores do regime.
Alguns
ainda com vida
Outros
esquartejados.
O terror de Estado contaminou tudo.
Até o nosso mais lírico cancioneiro”.
Na segunda revelação, descubro que este é um livro e lugar onde nasce e se inaugura uma floresta de citações mais adiante, em futuros discursos de políticos iluminados, em poemas vindouros de jovens poetas, em inteligentes conversas de muitos jovens e militantes de todas idades, inconformados com o lixo de mundo que recebem. Se não, olhem alguns versos, como estes:
“Da tragédia
Nós sobrevivemos
ao pau-de-arara.
Mas o pau-de-arara
também sobreviveu”.
Então vamos chegando mais perto da poética de Alípio Freire. A sua estética liga o domínio de conquistas cultas ao pensamento maduro, que gera reflexão, pois este é o poeta que não abstrai, não exclui o pensamento da sua poesia. Isso quer dizer: este poeta é um intelectual de esquerda, um pensador que exerce a sua história e cultura em um só corpo:
“Coquetel
Uma garrafa
Uma rolha
Gasolina
Óleo 30
Pólvora e ácido nítrico
Ou uma mecha em chamas...
... e...
desde então
aquela dificuldade insana de hierarquizar os alvos”.
E mais esta Prestação de contas:
“Para morrer
basta estar vivo.
Para viver
não.”
A vontade que deixa na gente é de escrever somente com os seus poemas, porque descobrimos neles a expressão de um desconforto nosso, uma angústia que não teve ainda vida expressa. Como nestes versos, vizinhança de um epigrama:
“Onde não há igualdade
toda liberdade é sempre um excesso
de privilégios”.
Enfim, aqui reside uma poesia que são cravos, mas não são flores.
(Do prefácio ao livro “Poemas – De Ordem Política e Social”)
É pernambucano, jornalista e autor de "Soledad no Recife", recriação dos últimos dias de Soledad Barret, mulher do cabo Anselmo, executada pela equipe do Delegado Fleury com o auxílio de Anselmo.
Um poeta da resistência
Recife (PE) - Em um belo dia de julho de 2009, o ex-preso político Alípio Freire nos guiou pelo Memorial da Resistência em São Paulo. Ali ele conduziu a mim, a minha esposa e filha pelas celas do Deops paulista e, em lugar da pura exposição do terror estatal, nos mostrou humanidade e sementes de esperança entre mortos e torturados.
Enquanto Alípio discorria por entre aquelas paredes, era possível notar que nele residiam juntos um artista plástico, um intelectual, um bom narrador de casos e causos, contados como se surgissem do nada, no meio de pausas de um cigarro e outro. Mas isso, digamos, ainda não estava materializado como um documento íntimo, pessoal da história daqueles anos - eram percepções de passagem entre fumaças. A existência do Memorial era, é objetiva, a sua necessária e dura referência está ao lado de nós. Ali houve e há uma história ocorrida antes e agora pelo rescaldo da ditadura, da sociedade de classes, abjeta e objetiva.
Mal sabia eu que outro Memorial da Resistência já se encontrava em gestação, em uma forma imprevisível e original, como agora sei ao ler “Poemas - De Ordem Política e Social”. Pois aqui ocorre o lugar de um outro Departamento, que em vez de um Deops se estabelece como um Poeops, mas nada de Poe, de Allan Poe, porque Alípio Freire escreve à sua maneira a Poesia que é uma Resistência daquelas vidas de jovens e velhos, homens e mulheres subversivos contra a Ordem. E o resultado agora todos vão conhecer.
Quisera eu poder guiá-los neste momento. Ainda que não tenha o dom do artista Alípio, quando em 2009 nos conduziu pelo Memorial da Resistência, tentarei algo à semelhança de uma apresentação do poeta neste livro que se abre como um fruto maduro, caído do pé da árvore do Brasil.
Na primeira revelação, descubro que todo poeta chama, reclama e ensina para o leitor uma nova poética - aquela que o liberta e nos liberta do vício do acostumado, da forma que é fôrma. Os indivíduos mais tradicionais e conservadores – e nada mais burro e estéril que pessoas condenadas à carga desses dois adjetivos – poderiam dizer que em alguns poemas de Alípio há uma tendência de versos que são uma prosa em linhas descontínuas. E com isso o estúpido confunde poesia com determinados temas e canto ao orvalho na flor, por um lado, e por outro, com a obscuridade, que com freqüência é vista como sublime.
Mas o que é a poesia? Será ela somente a de significados multívocos, quando não ambíguos, com a dignificação de “poesia aberta?” Ou seria ela, mais propriamente, aquele associada ao sentido de beleza e verdade, verdade e beleza, beleza e verdade, até o sol raiar e noite adentro? Se não for isso, parem aqui e respondam depois da leitura:
“Eu tenho uma casinha
lá na Marambaia
fica na beira da praia
onde helicópteros e aviões da Aeronáutica
despejavam corpos de opositores do regime.
Alguns
ainda com vida
Outros
esquartejados.
O terror de Estado contaminou tudo.
Até o nosso mais lírico cancioneiro”.
Na segunda revelação, descubro que este é um livro e lugar onde nasce e se inaugura uma floresta de citações mais adiante, em futuros discursos de políticos iluminados, em poemas vindouros de jovens poetas, em inteligentes conversas de muitos jovens e militantes de todas idades, inconformados com o lixo de mundo que recebem. Se não, olhem alguns versos, como estes:
“Da tragédia
Nós sobrevivemos
ao pau-de-arara.
Mas o pau-de-arara
também sobreviveu”.
Então vamos chegando mais perto da poética de Alípio Freire. A sua estética liga o domínio de conquistas cultas ao pensamento maduro, que gera reflexão, pois este é o poeta que não abstrai, não exclui o pensamento da sua poesia. Isso quer dizer: este poeta é um intelectual de esquerda, um pensador que exerce a sua história e cultura em um só corpo:
“Coquetel
Uma garrafa
Uma rolha
Gasolina
Óleo 30
Pólvora e ácido nítrico
Ou uma mecha em chamas...
... e...
desde então
aquela dificuldade insana de hierarquizar os alvos”.
E mais esta Prestação de contas:
“Para morrer
basta estar vivo.
Para viver
não.”
A vontade que deixa na gente é de escrever somente com os seus poemas, porque descobrimos neles a expressão de um desconforto nosso, uma angústia que não teve ainda vida expressa. Como nestes versos, vizinhança de um epigrama:
“Onde não há igualdade
toda liberdade é sempre um excesso
de privilégios”.
Enfim, aqui reside uma poesia que são cravos, mas não são flores.
(Do prefácio ao livro “Poemas – De Ordem Política e Social”)
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