segunda-feira, 10 de abril de 2017

1.
Avanço
a mortalha me alcança.
2.
Ando na trilha
que liga Deus a soltas cortinas
trocá-lo talvez eu consiga.
3.
Como num jogo
correm nas minhas juntas
os ventos do cansaço.
Sentem medo do meu fogo?
se refugiaram na minha pluma
se esconderam nos meus livros.
4.
Hora não sabida na mudez do tormento
isto são agulhas costurando minha pele
meu caminho está escuro:
onde o rosto do horizonte, para ler para mim meu livro?
5.
Para dizer a verdade
mude seus passos, esteja pronto
para incendiar-se.
6,
Um pouco de tédio
e cubro a todo instante
poças de esperança.
7.
Levo um guia nas asas
que me leva ao caminho
e no caminho há cinzas
que apagam, fogo que arde.
8.
Sou a casa da luz que não se acende:
minha inquietude arde no monte da soberba
meu amor é uma almenara verde.
9.
Repousa nas minhas veias a aquiescência do sonho
chora a cítara das coisas:
o que custa para a aurora lembrar meu passo
o que custa para o sol andar atrás de mim?
10.
Vêm dançar nas minhas pálpebras
a noite cadáver a cidade camaleoa
me revisto de triste Artarte
desenho a tempestade.
11.
Rosto do possível ó rosto do horizonte
mude seu sol ou queime-se.
12.
Virei meu trono do avesso:
quando brinco ou me alegro
preparo em segredo a mortalha
e caminho quando me canso.
13.
Por ser todo eco o horizonte
retorno do que vem, exaltamento
não envelhecem os ventos.
14.
Quem vê como ele a morte e a vida
escreve com os olhos a noite e o dia
e as folhas apagam o que as apagaria.
15.
Vela adivinha do futuro
que tenho que temo o caminho curto?
16.
Confuso disse o depois:
"saltando o canto
do bico do pássaro
o galho não se
encanta".
17.
Ele é isto, se recusa a subir
a não ser abrasado
tem um fogo que não se apaga
tem um coração.
18.
Brilhe, escreva um poema, ande:
amplie ainda mais a terra.

Adonis | Folhas ao vento

Salmo


Avança desarmado como o bosque e sem ser detido como
a nuvem, ontem carregou um continente e mudou o mar de lugar.
Traça o avesso do dia. Dos pés produz um dia e da noite
empresta um calçado e espera pelo que não virá. Ele é a
física das coisas. Conhece-as, chama-as por nomes que não
revela. Ele é o real e seu contrário, a vida e a não vida.
Ali onde a pedra vira lago e a sombra cidade, ele vive - e
faz errar o desespero, apaga o chão da esperança, dança
para o pó até que este boceje e dança para as árvores até que elas durmam.
Ei-lo a anunciar o cruzamento das pontas, a imprimir o
signo da magia na fronte da nossa era.
Enche a vida sem que seja visto. Faz da vida espuma e
mergulha nela. Transforma o amanhã em caça, corre
atrás dela em desespero. Inscritas, suas palavras seguem
rumo: à perdição à perdição.
A confusão é a sua pátria, mas tem os olhos cheios.
Assusta e conforta
exala terror transborda ironia
descasca os homens como cebola.
Ele e o vento que não volta atrás, a água que não retorna
à fonte. Cria sua espécie a partir dele mesmo. Não tem
ascendentes, suas raízes estão em seus passos.
Caminha no abismo e tem o porte do vento.

Adonis | O cavaleiro das palavras estranhas