sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Penitentes da Lagoa, 1999.Barbalha, CE

Não estranhem os estrangeirismos

Com alguma regularidade, volta-se a discutir o que pensar a respeito do uso de palavras estrangeiras na língua portuguesa. Há mesmo um deputado com um projeto maluco pretendendo proibir estrangeirismos – a febre legislativa dessa gente é indomável.



O curioso é que a questão é apresentada como se fosse nova, algo que só atualmente, com a informática, os filmes americanos, a música pop, a linguagem dos técnicos em administração e economia, estivesse acontecendo.



Aí começa o equívoco, que acaba levando de arrasto uma série de discussões que se transformam num show (olha o estrangeirismo!) de desencontros. Basta uma olhada nas palavras que usamos para descobrir, com uma grande frequência, a intromissão de vocábulos de outras línguas. Coisa que não é nova.



Uma primeira coleção de palavras ingressou no português, vinda dos idiomas indígenas, talvez mais do que suspeitamos. Vejam só: o saboroso guaraná, a inocente paçoca, o Maracanã, a afoita perereca, etc. Sem falar no magnífico urubu. Além disso, nomes de lugares e de pessoas.



A seguir, palavras que vieram de línguas africanas. Começa pelo samba, a senzala, a batucada, o bafafá. E o esporte nacional, o fuxico. O quiabo e o dendê. Como contar a história do Brasil sem falar em cangaço e da música popular sem falar em berimbau? E a bagunça política? O menino pode ser guri ou moleque. O cachimbo, o macaco e a quitanda. E há a onipresente e imbatível – no bom sentido – bunda.



Todo esse vocabulário já está incorporado definitivamente ao falar e escrever brasileiro, embora exista quem pense que sejam portuguesas. Então, viria a pergunta: o que faremos com tais palavras, caso nos obstinarmos a espantar todo estrangeirismo?



Mas não é só. Antes do inglês, através dos dois impérios recentes – Grã-Bretanha e EUA –, o francês era bastante falado no Brasil (não por todas as classes, como é óbvio) e deixou pelo caminho muitas palavras e expressões que incorporamos há muitas décadas, na verdade há mais de um século. Lá vai: maiô, complô, batom, tricô, sutiã, guichê, metrô, vanguarda. E o indispensável garçom. Eu passei a infância chamando armário ou prateleira de “etagér” (étagère).



Depois veio o inglês, que tanta preocupação desperta nos puristas. Mas não é raro esquecermos contribuições, não desprezíveis, vindas das línguas faladas por imigrantes italianos, espanhóis, alemães etc. Influência, como todas as outras, que se dá não apenas no vocabulário, mas no próprio modo de produzir frases e expressões. Penso especialmente no italiano, de grande presença no linguajar popular brasileiro, mas também no texto literário, sobretudo de escritores paulistas, gaúchos, paranaenses e catarinenses. De Adoniran Barbosa a Sérgio Faraco, o italiano está sempre presente. De minha parte, lembro que usei vocábulos e formas de expressão com influência italiana quando escrevi o romance Os Dias do Demônio, que se passa no sudoeste do Paraná.



Essa falsa polêmica contra os estrangeirismos ignora o que ocorreu com a língua portuguesa quando veio ela própria transplantada para o Brasil. E é interessante lembrar que o “perigo” dos estrangeirismos é relativo e muito exagerado. Assim como certas palavras ou expressões foram incorporadas, outras sumiram depois de um sucesso momentâneo. Há algumas décadas, tudo que era grande, importante, admirável, marcante, era chamado de big – pois é, sumiu. Calça feminina, comprida, era chamada de eslaque (do inglês, slake) – hoje pode parecer ofensa.



O uso assimila ou rejeita certas modas. É tudo. E isso só faz enriquecer a língua. A língua que hoje falamos ou escrevemos, está muito longe daquela falada pelos primeiros portugueses que vieram para o Brasil, e também está distante da língua que se fala hoje em Portugal. Enfim, a língua é algo vivo, dinâmico, mutante e, como todo organismo vivo, assimila, rejeita ou transforma, conforme as circunstâncias, aquilo com que entra em contato.



Enfim, alguma paciência e certa dose de antropofagia, como queria Oswald de Andrade, poderiam colocar ordem nessa polêmica inútil.

Roberto Gomes
Fonte:Gazeta do Povo .05/12/2010



Romaria de Nossa Senhora Aparecida, 1999.Aparecida.SP

Fugindo de dezembro

Como faço todo fim de ano, também agora consegui uma semana de refúgio em dezembro, o mês alucinado – parece que algum tóxico se espalha na cidade e as pessoas enlouquecidas saem às ruas como formigas cujo formigueiro foi atacado. Os sentimentos em geral são bons, é preciso reconhecer – a fantasia de que o fim de ano é época de paz, amor, compreensão, tolerância e solidariedade é tão forte que as pessoas acabam acreditando nela, pelo menos no âmbito familiar. E o modo de demonstrar esses bons sentimentos é simples e direto: encher os shoppings e as sacolas e trocar presentes. Nada contra: é isso que faz mover a máquina do mundo. Mas para dizer que ainda tenho alguma metafísica na alma, sinto que há também uma certa percepção de um ciclo que se encerra e outro que se abre, simbolicamente poderosa, como se estivéssemos ainda vivendo sob a dura natureza ao sabor renovado das estações, aliás nítidas como nos filmes, e não embaralhadas como em Curitiba.



Saiba mais

A crise de sempreVaga (tecnológica) para idososPensamento chapadoTudo bem, mas como agora estou assumindo meu ansiado papel de velho esquisito, o que eu sempre quis ser desde criança, desci para o litoral, no deserto de Gaivotas, que no dezembro que antecede o Natal tem as características de um paraíso: não há nada a fazer, nada a ver, nada a pensar. Nem uma viva alma nas ruas – aqui e ali, raros, um ou outro operário trabalhando. O caminhão do lixo está mesmo passando de dois em dois dias, o que nos protege das moscas. E banho de mar, só para malucos – sou do tipo vampiro, dos que viram pó à luz do sol. Que, aliás, maravilha das maravilhas, praticamente não está aparecendo. Na dúvida, trouxe a caixa de ferramentas, para enfim fazer uma prateleirinha que venho planejando há uma década. Desta vez, abrindo o portão rangente, descubro que a única coisa que roubaram da casa – à falta de qualquer outro bem fungível além da geladeira, que é grande e pesada – foi a velha antena externa de televisão.



Tranquilo aqui na varanda, posso até ouvir a grama crescer. Mas algo extraordinário aconteceu, percebi acompanhando o dedo apontado do Felipe, meu filho: de uma toca do quintal saíram dois pterodáctilos, ou duas miniaturas de tiranossauros rex (não tão miniaturas: mais de meio metro cada), lagartões pré-históricos. Lentos, desconfiados, mimetizando cuidadosamente o mato em torno, saíram passo a passo da toca para o ar livre, arrastando os rabos imensos. Não pareceram malfeitores, concluí, depois do susto inicial. Invejei neles a capacidade de ficar imóveis, absolutamente imóveis, como monges do Tibete contemplando a neve da montanha.



E exigem silêncio, se queremos a companhia deles – o mínimo gesto brusco e ambos desaparecem no buraco como por mágica. Uma hora depois, desconfiança redobrada, voltam a mostrar as caras, testando a nossa capacidade de ficar quietos. E são poderosos – já estou praticamente domesticado por eles.


Cristovão Tezza.
Fonte:Gazeta do Povo.14/12/2010

Romaria de São Francisco das Chagas, 1999.Canindé, CE