terça-feira, 14 de agosto de 2012
As redes sociais de Cortázar
Cartas e biblioteca explicam obra de argentino
SYLVIA COLOMBO – FOLHA SP
RESUMO Reunidas em cinco tomos, as cartas de Julio Cortázar registram impressões literárias e políticas sobre a Argentina e sobre a Europa. Em outra obra, pesquisador se debruça sobre os 4.500 volumes da biblioteca pessoal do autor de “O Jogo da Amarelinha” para entender o diálogo que escritor manteve com a literatura.
Não havia Facebook nem Twitter no tempo de Julio Cortázar (1914-84). Mas o escritor argentino, autor de “O Jogo da Amarelinha” e “Histórias de Cronópios e de Famas” era um viciado em redes sociais estabelecidas por meio de cartas, e tinha muitos amigos com quem compartilhava impressões sobre filmes, música, viagens e, principalmente, outros livros.
Essa é a sensação que fica quando se folheia os cinco tomos de sua farta correspondência, lançados agora na Argentina pela Alfaguara -”Cartas 1: 1937-1954″, “Cartas 2: 1955-1964″, “Cartas 3: 1965-1968″, “Cartas 4: 1969-1976″, “Cartas 5: 1977-1984″ [cerca de R$ 72 cada um, mais taxas]. As missivas foram reunidas pela viúva do escritor, a tradutora Aurora Bernárdez, e pelo editor e filólogo catalão Carles Álvarez Garriga, e são uma versão estendida, em mais de mil cartas, de uma versão lançada em 2001, com três tomos.
Há conversas com amigos de infância, como Eduardo Jonquieres, o tradutor Paco Porrúa, a mecenas Victoria Ocampo, e com grandes escritores com quem se correspondia com frequência, como Mario Vargas Llosa, José Lezama Lima, Juan Carlos Onetti, Guillermo Cabrera Infante e Alejandra Pizarnik. A correspondência familiar é reduzida, algumas à mãe, outras às suas mulheres e ex-mulheres e uma única enviada ao pai, de quem vivia afastado, em 1949.
Chama a atenção o fato de não haver cartas de seus amigos e conhecidos brasileiros. “Não chegou nada a tempo, mas sabe-se que foi próximo de muitos, como o tradutor Davi Arrigucci Jr., os escritores Haroldo de Campos e Décio Pignatari e o cantor Caetano Veloso”, diz Garriga à Folha.
Cortázar não lia em português, e sim por meio de traduções francesas. Em carta de fevereiro de 1983, escreveu: “Às vezes penso que o mais forte que li nos últimos dez anos foi a obra de dois brasileiros, Clarice Lispector e Osman Lins, quase dá vontade de lançar-se ao português em busca de outras coisas que possam existir”.
GÊNERO Para Garriga, em alguns anos o epistolário de Cortázar será valorizado como um gênero dentro de sua obra. “A qualidade de sua prosa me parece sempre a mesma, esteja escrevendo um conto, um romance ou uma carta. A assombrosa linearidade de seu pensamento é admirável”, diz.
Ele conta que a leitura dos originais, “limpíssimos”, deixa claro que Cortázar “nem corrigia nem duvidava”. “Ainda que escrevesse só com um dedo de cada mão, era um mecanógrafo velocíssimo e, segundo contam, não se detinha em nenhum instante. Há cartas que são pequenos relatos, e outras, quase poemas.”
Em 1937, no começo da primeira leva de cartas, Cortázar era ainda professor na província de Buenos Aires. O argentino partiu para Paris em 1951, aos 37 anos, por não estar de acordo com o regime peronista. Recebeu uma bolsa do governo francês, depois passou a trabalhar como tradutor da Unesco.
Estão registradas suas impressões literárias e políticas sobre a Argentina e sobre a Europa, sobretudo a França, no período em que viveu naquele país. Repete-se o tom entusiasmado com que comenta cada obra ou lugar novo que conhece, mas também um sentimento de culpa e de entrega com relação a cada interlocutor.
“Outra circunstância que desperta a maior simpatia ao ler essas centenas de páginas é ver como Cortázar tem a capacidade camaleônica de adaptar-se ao interlocutor, seja ele um editor renomado, seja o filho de um amigo, seja um tradutor perdido, sempre com a maior empatia”, afirma Garriga.
Pelo visto, na vida real ele atuava de forma parecida, e talvez por isso caia bem a todo o mundo (ainda hoje, pessoas que apenas o frequentaram sustentam que os momentos divididos com ele foram os mais importantes de sua vida).
DESCULPAS A maioria das cartas começa com longas desculpas pela demora em contestar. Depois, comenta aspectos da vida do interlocutor, pergunta sobre a família e sobre o trabalho. Em alguns casos, opina avidamente sobre este.
O cubano José Lezama Lima e o mexicano Octavio Paz recebem detalhados comentários literários sobre suas obras. Também aparecem broncas, como a que dá no peruano Mario Vargas Llosa pelo fato de ele ter se ausentado de um encontro em Cuba que pedia a liberdade de um preso político do regime comunista.
A correspondência chega num momento em que a obra de Cortázar vem sendo rediscutida na Argentina. Alguns críticos fazem ressalvas ao fato de ter se tornado um cânone sem voltar a ser avaliado.
Para o editor e crítico Damián Tabarovsky, o escritor está super-valorizado e sua obra tem mais importância como porta de entrada para a literatura do que por seu verdadeiro legado estético. Ele diz que, depois de passar por autores como Raymond Roussel, Robbe-Grillet e Foucault, torna-se impossível voltar a Cortázar. “Os mecanismos de divulgação cortazarianos passam a nos parecer triviais.”
Cortázar morreu em Paris em 12 de fevereiro de 1984, sendo enterrado no cemitério de Montparnasse. Nove anos mais tarde, seus livros foram doados à Fundação Juan March, em Madri. O editor e jornalista Jesús Marchamalo explorou os 4.500 tomos da coleção, e o resultado é o livro *”Cortázar y los Libros” [importado, ed. Fórcola, 112 págs., cerca de R$ 32 mais taxas],* lançado na Espanha.
ANOTAÇÕES Marchamalo recolheu as anotações, dedicatórias e desenhos, como a famosa espiral, que se repete em várias obras, e que o argentino fazia às margens e nas folhas de rosto dos livros.
“Os comentários que fazia eram o diálogo que estabelecia com a literatura. Fazia observações sobre estrutura, consistência dos personagens, coisa que lhe pareciam inverossímeis, tentativas equivocadas”, diz Marchamalo à Folha.
São comuns as observações “voilá”, “bien!”, “penoso”, mas também outras mais divertidas, como “que macanudo sos!”, esta para Lezama Lima, ou, em referência a um livro cuja capa era desenhada pelo artista mexicano Rufino Tamayo, “que te parta um rayo!”. Cortázar lia em francês, inglês, espanhol e alemão, e os comentários sempre seguiam o idioma em que estava lendo.
A biblioteca e as dedicatórias registram também a relação de Cortázar com Alejandra Pizarnik, a quem o escritor praticamente adotara como irmã mais nova e a quem tentava proteger e aconselhar. Pizarnik atravessou longo calvário em instituições psiquiátricas, até se suicidar em 1972.
“As dedicatórias que ela fazia para ele nos livros que lhe enviava estão entre as coisas mais estremecedoras que li. Mostram como ela caminhava por seu escuro túnel”, diz Marchamalo.
A coleção que está em Madri não pode ser considerada como a reunião de todos os livros que teve em vida. Cortázar viajava muito, conviveu com algumas mulheres, o que pode ter feito com que muitos volumes se perdessem.
Ainda assim, Marchamalo chama a atenção para o fato de que Cortázar tinha poucos livros de Jorge Luis Borges e, além disso, muito pouco anotados.
“Os dois se admiravam mutuamente, mas viviam em mundos diferentes, e sempre deixaram isso claro. Tanto com relação à literatura como quanto à política. Cortázar era mais engajado, abraçou a Revolução Cubana em certo momento. Borges sempre esteve alheio a essas coisas. Aí não havia um diálogo”, diz o editor.
CLARICE De autores brasileiros, há apenas volumes de Clarice Lispector, em espanhol, português e francês. Muitos livros dos mexicanos Carlos Fuentes e Octavio Paz, seus grandes amigos, e alguns de Mario Vargas Llosa, com quem mantinha bastante contato.
Na correspondência lançada na Argentina, está documentado o desentendimento entre eles por conta do desaparecimento do poeta cubano Heberto Padilla, perseguido pelo regime.
Mas a história que Marchamalo prefere e que reflete a relação de Cortázar com os livros é a que o escritor contava sobre como Aurora e ele se entretinham em suas viagens pela Europa.
“Eles não tinham dinheiro e viajavam com poucos recursos. Era muito comum comprarem edições baratas em estações, que liam entre eles. Cortázar lia uma página, arrancava, passava para Aurora, e depois de ler iam jogando-as fora. Para mim, é uma metáfora da biblioteca que colecionou durante toda a vida, de páginas que eram consumidas, comentadas e devolvidas ao vento.”
SYLVIA COLOMBO – FOLHA SP
RESUMO Reunidas em cinco tomos, as cartas de Julio Cortázar registram impressões literárias e políticas sobre a Argentina e sobre a Europa. Em outra obra, pesquisador se debruça sobre os 4.500 volumes da biblioteca pessoal do autor de “O Jogo da Amarelinha” para entender o diálogo que escritor manteve com a literatura.
Não havia Facebook nem Twitter no tempo de Julio Cortázar (1914-84). Mas o escritor argentino, autor de “O Jogo da Amarelinha” e “Histórias de Cronópios e de Famas” era um viciado em redes sociais estabelecidas por meio de cartas, e tinha muitos amigos com quem compartilhava impressões sobre filmes, música, viagens e, principalmente, outros livros.
Essa é a sensação que fica quando se folheia os cinco tomos de sua farta correspondência, lançados agora na Argentina pela Alfaguara -”Cartas 1: 1937-1954″, “Cartas 2: 1955-1964″, “Cartas 3: 1965-1968″, “Cartas 4: 1969-1976″, “Cartas 5: 1977-1984″ [cerca de R$ 72 cada um, mais taxas]. As missivas foram reunidas pela viúva do escritor, a tradutora Aurora Bernárdez, e pelo editor e filólogo catalão Carles Álvarez Garriga, e são uma versão estendida, em mais de mil cartas, de uma versão lançada em 2001, com três tomos.
Há conversas com amigos de infância, como Eduardo Jonquieres, o tradutor Paco Porrúa, a mecenas Victoria Ocampo, e com grandes escritores com quem se correspondia com frequência, como Mario Vargas Llosa, José Lezama Lima, Juan Carlos Onetti, Guillermo Cabrera Infante e Alejandra Pizarnik. A correspondência familiar é reduzida, algumas à mãe, outras às suas mulheres e ex-mulheres e uma única enviada ao pai, de quem vivia afastado, em 1949.
Chama a atenção o fato de não haver cartas de seus amigos e conhecidos brasileiros. “Não chegou nada a tempo, mas sabe-se que foi próximo de muitos, como o tradutor Davi Arrigucci Jr., os escritores Haroldo de Campos e Décio Pignatari e o cantor Caetano Veloso”, diz Garriga à Folha.
Cortázar não lia em português, e sim por meio de traduções francesas. Em carta de fevereiro de 1983, escreveu: “Às vezes penso que o mais forte que li nos últimos dez anos foi a obra de dois brasileiros, Clarice Lispector e Osman Lins, quase dá vontade de lançar-se ao português em busca de outras coisas que possam existir”.
GÊNERO Para Garriga, em alguns anos o epistolário de Cortázar será valorizado como um gênero dentro de sua obra. “A qualidade de sua prosa me parece sempre a mesma, esteja escrevendo um conto, um romance ou uma carta. A assombrosa linearidade de seu pensamento é admirável”, diz.
Ele conta que a leitura dos originais, “limpíssimos”, deixa claro que Cortázar “nem corrigia nem duvidava”. “Ainda que escrevesse só com um dedo de cada mão, era um mecanógrafo velocíssimo e, segundo contam, não se detinha em nenhum instante. Há cartas que são pequenos relatos, e outras, quase poemas.”
Em 1937, no começo da primeira leva de cartas, Cortázar era ainda professor na província de Buenos Aires. O argentino partiu para Paris em 1951, aos 37 anos, por não estar de acordo com o regime peronista. Recebeu uma bolsa do governo francês, depois passou a trabalhar como tradutor da Unesco.
Estão registradas suas impressões literárias e políticas sobre a Argentina e sobre a Europa, sobretudo a França, no período em que viveu naquele país. Repete-se o tom entusiasmado com que comenta cada obra ou lugar novo que conhece, mas também um sentimento de culpa e de entrega com relação a cada interlocutor.
“Outra circunstância que desperta a maior simpatia ao ler essas centenas de páginas é ver como Cortázar tem a capacidade camaleônica de adaptar-se ao interlocutor, seja ele um editor renomado, seja o filho de um amigo, seja um tradutor perdido, sempre com a maior empatia”, afirma Garriga.
Pelo visto, na vida real ele atuava de forma parecida, e talvez por isso caia bem a todo o mundo (ainda hoje, pessoas que apenas o frequentaram sustentam que os momentos divididos com ele foram os mais importantes de sua vida).
DESCULPAS A maioria das cartas começa com longas desculpas pela demora em contestar. Depois, comenta aspectos da vida do interlocutor, pergunta sobre a família e sobre o trabalho. Em alguns casos, opina avidamente sobre este.
O cubano José Lezama Lima e o mexicano Octavio Paz recebem detalhados comentários literários sobre suas obras. Também aparecem broncas, como a que dá no peruano Mario Vargas Llosa pelo fato de ele ter se ausentado de um encontro em Cuba que pedia a liberdade de um preso político do regime comunista.
A correspondência chega num momento em que a obra de Cortázar vem sendo rediscutida na Argentina. Alguns críticos fazem ressalvas ao fato de ter se tornado um cânone sem voltar a ser avaliado.
Para o editor e crítico Damián Tabarovsky, o escritor está super-valorizado e sua obra tem mais importância como porta de entrada para a literatura do que por seu verdadeiro legado estético. Ele diz que, depois de passar por autores como Raymond Roussel, Robbe-Grillet e Foucault, torna-se impossível voltar a Cortázar. “Os mecanismos de divulgação cortazarianos passam a nos parecer triviais.”
Cortázar morreu em Paris em 12 de fevereiro de 1984, sendo enterrado no cemitério de Montparnasse. Nove anos mais tarde, seus livros foram doados à Fundação Juan March, em Madri. O editor e jornalista Jesús Marchamalo explorou os 4.500 tomos da coleção, e o resultado é o livro *”Cortázar y los Libros” [importado, ed. Fórcola, 112 págs., cerca de R$ 32 mais taxas],* lançado na Espanha.
ANOTAÇÕES Marchamalo recolheu as anotações, dedicatórias e desenhos, como a famosa espiral, que se repete em várias obras, e que o argentino fazia às margens e nas folhas de rosto dos livros.
“Os comentários que fazia eram o diálogo que estabelecia com a literatura. Fazia observações sobre estrutura, consistência dos personagens, coisa que lhe pareciam inverossímeis, tentativas equivocadas”, diz Marchamalo à Folha.
São comuns as observações “voilá”, “bien!”, “penoso”, mas também outras mais divertidas, como “que macanudo sos!”, esta para Lezama Lima, ou, em referência a um livro cuja capa era desenhada pelo artista mexicano Rufino Tamayo, “que te parta um rayo!”. Cortázar lia em francês, inglês, espanhol e alemão, e os comentários sempre seguiam o idioma em que estava lendo.
A biblioteca e as dedicatórias registram também a relação de Cortázar com Alejandra Pizarnik, a quem o escritor praticamente adotara como irmã mais nova e a quem tentava proteger e aconselhar. Pizarnik atravessou longo calvário em instituições psiquiátricas, até se suicidar em 1972.
“As dedicatórias que ela fazia para ele nos livros que lhe enviava estão entre as coisas mais estremecedoras que li. Mostram como ela caminhava por seu escuro túnel”, diz Marchamalo.
A coleção que está em Madri não pode ser considerada como a reunião de todos os livros que teve em vida. Cortázar viajava muito, conviveu com algumas mulheres, o que pode ter feito com que muitos volumes se perdessem.
Ainda assim, Marchamalo chama a atenção para o fato de que Cortázar tinha poucos livros de Jorge Luis Borges e, além disso, muito pouco anotados.
“Os dois se admiravam mutuamente, mas viviam em mundos diferentes, e sempre deixaram isso claro. Tanto com relação à literatura como quanto à política. Cortázar era mais engajado, abraçou a Revolução Cubana em certo momento. Borges sempre esteve alheio a essas coisas. Aí não havia um diálogo”, diz o editor.
CLARICE De autores brasileiros, há apenas volumes de Clarice Lispector, em espanhol, português e francês. Muitos livros dos mexicanos Carlos Fuentes e Octavio Paz, seus grandes amigos, e alguns de Mario Vargas Llosa, com quem mantinha bastante contato.
Na correspondência lançada na Argentina, está documentado o desentendimento entre eles por conta do desaparecimento do poeta cubano Heberto Padilla, perseguido pelo regime.
Mas a história que Marchamalo prefere e que reflete a relação de Cortázar com os livros é a que o escritor contava sobre como Aurora e ele se entretinham em suas viagens pela Europa.
“Eles não tinham dinheiro e viajavam com poucos recursos. Era muito comum comprarem edições baratas em estações, que liam entre eles. Cortázar lia uma página, arrancava, passava para Aurora, e depois de ler iam jogando-as fora. Para mim, é uma metáfora da biblioteca que colecionou durante toda a vida, de páginas que eram consumidas, comentadas e devolvidas ao vento.”
O riso do diabo
11 de agosto de 2012
Sergio Augusto – O Estado de S.Paulo
Em menos de 50 dias, cinco baixas sem reposições à altura. Por ordem de saída de cena: o crítico de cinema Andrew Sarris, o jornalista Alexander Cockburn, o cineasta Chris Marker, o escritor e ensaísta Gore Vidal e o crítico de arte Robert Hughes. Não me lembro de estrago similar na cultura em tão curto espaço de tempo. A bruxa (ou seria o Diabo?) anda à solta.
Os três últimos mortos ao menos foram lembrados e devidamente exaltados nestas paragens, mas os dois primeiros nem à cova rasa de um simples registro fúnebre tiveram direito. Cockburn, vá lá, afinal não escrevia para publicações de grande tiragem, mexia com política e era desbragadamente de esquerda, um réprobo ideológico. Sarris, porém, não só lidava com um assunto bem mais popular como foi um dos mais agudos e influentes críticos americanos das últimas cinco ou seis décadas.
Ambos brilharam na mesma trincheira, o semanário alternativo The Village Voice, no auge de seu prestígio. Sarris, que morreu em 20 de junho, aos 83 anos, tinha uma cabeça europeia e foi cria espiritual da revista parisiense Cahiers du Cinéma, de onde importou a teoria do “cinema de autor”, seu mais lembrado cavalo de batalha e pomo de discórdia entre ele e concorrentes diretos (Pauline Kael, John Simon) e indiretos (Gore Vidal, entre outros).
O olhar privilegiado e a elegância da escrita, com notório penchant por aliterações, fizeram dele o continuador de uma tradição iniciada por Otis Ferguson e James Agee. Estreou no Voice em1961, louvando A Aventura, de Antonioni (cuja opção pelo tédio mais tarde lhe inspiraria o neologismo “antonioniennui”), e em suas páginas pontificou durante 30 anos, até se transferir para o New York Observer.
Considerava-se um “cultista”, um fiel baluarte de filmes autorais, de preferência não herméticos, haja vista sua defesa apaixonada de Chaplin, Murnau, Ford, Renoir, Max Ophuls (Lola Montès reinou absoluto em seu top ten anos a fio), Welles, Hitchcock, Howard Hawks e outros totens da crítica parisiense. A Nouvelle Vague entrou na América por suas mãos. Nenhum de seus livros lhe deu mais notoriedade que The American Cinema, balanço dos primeiros 70 anos do cinema americano, rico em observações sutis e avaliações tão audaciosas quanto idiossincráticas. Em seu panteão não havia lugar para John Huston, Elia Kazan, Billy Wilder, William Wyler e outros monstros sagrados de Hollywood.
Sarris já era uma estrela do Voice quando Cockburn lá estreou a coluna Press Clips, exemplar exercício de media criticism que me serviu de inspiração e modelo para uma coluna (É Isso Aí), que na segunda metade dos anos 1970 editei no Pasquim. Nascido e criado na Irlanda, filho e irmão de grandes jornalistas, Alex, morto em 21 de julho, aos 71 anos, revelou-se um fiscal do poder tão bem informado e implacável quanto I.F. Stone e um dos críticos mais intransigentes das iniquidades do capitalismo, o que não o impediu de ser convidado pelo Wall Street Journal pré-Murdoch para colaborar, por uns tempos, em sua página de opinião, com total liberdade.
Muito inteligente e gozador, ocasionalmente se deixava ofuscar por alguma caturrice ideológica – e aí extrapolava. Insurgiu-se, por exemplo, contra a campanha dos ambientalistas por acreditar que combater os combustíveis fósseis significava fazer o jogo do lobby da indústria nuclear. Àquela altura, há muito deixara (brigado) o Voice e montara sua barraquinha na revista The Nation e também na Counterpunch, publicação impressa e on-line de grande penetração junto às esquerdas, que agora seu velho parceiro Jeffrey St. Clair terá de editar sozinho.
Sua coluna em The Nation intitulava-se Beat the Devil (literalmente, enganar o diabo), em homenagem ao pai, Claud Cockburn, que, com o pseudônimo de James Helvick, escreveu uma pequena farsa com este título, adaptada ao cinema por Truman Capote a pedido de John Huston. Claud era uma figuraça. Enviado pela versão britânica do diário comunista Daily Worker para cobrir a Guerra Civil Espanhola, aderiu à causa republicana e trocou a máquina de escrever pelo fuzil.
Sarris considerava Beat the Devil (no Brasil, O Diabo Riu Por Último) um dos filmes mais superestimados de Huston. O elenco é ótimo (Humphrey Bogart, Jennifer Jones, Robert Morley, Peter Lorre e, de brinde, Gina Lollobrigida), as locações deslumbrantes (Ravello, na costa amalfitana) e a intriga involuntariamente absurda, por culpa do improvisado roteiro de Capote. Sarris tinha razão. Durante as filmagens, em 1953, Huston reclamou dos preciosos azulejos que cobriam o salão de entrada do Palazzo Palumbo, principal locação do filme. “Fotografam mal em preto e branco”, disse ao dono do palácio, já então hotel, que nem discutiu e mandou trocá-los por outros com maior rendimento monocromático.
Gore Vidal, residente em Ravello por várias décadas, nunca deu trégua à sua indignação por aquele atentado ao patrimônio histórico e arquitetônico da cidade. Sempre que a ocasião lhe permitia, espinafrava o dono do Palumbo, um italiano estilo Rossano Brazzi que conheci quando lá me hospedei em 1974 e que, duas décadas depois do atentado, ainda apresentava o falso piso do lobby como se ainda fosse a relíquia seiscentista original, no melhor estilo Vittorio Gassman.
Soube dessa pitoresca história de lesa patrimônio pelo próprio escritor, não em Ravello, pois lá não se encontrava em minha primeira visita à cidade, justamente programada para entrevistá-lo em seu habitat, uma bela villa debruçada sobre o Mar Tirreno. Hoje a villa é mais um albergue de luxo da rede montada por Giuseppe Palumbo, que nada tem a ver com o quadrinista homônimo e já deve estar rindo com o Diabo faz tempo.
Sergio Augusto – O Estado de S.Paulo
Em menos de 50 dias, cinco baixas sem reposições à altura. Por ordem de saída de cena: o crítico de cinema Andrew Sarris, o jornalista Alexander Cockburn, o cineasta Chris Marker, o escritor e ensaísta Gore Vidal e o crítico de arte Robert Hughes. Não me lembro de estrago similar na cultura em tão curto espaço de tempo. A bruxa (ou seria o Diabo?) anda à solta.
Os três últimos mortos ao menos foram lembrados e devidamente exaltados nestas paragens, mas os dois primeiros nem à cova rasa de um simples registro fúnebre tiveram direito. Cockburn, vá lá, afinal não escrevia para publicações de grande tiragem, mexia com política e era desbragadamente de esquerda, um réprobo ideológico. Sarris, porém, não só lidava com um assunto bem mais popular como foi um dos mais agudos e influentes críticos americanos das últimas cinco ou seis décadas.
Ambos brilharam na mesma trincheira, o semanário alternativo The Village Voice, no auge de seu prestígio. Sarris, que morreu em 20 de junho, aos 83 anos, tinha uma cabeça europeia e foi cria espiritual da revista parisiense Cahiers du Cinéma, de onde importou a teoria do “cinema de autor”, seu mais lembrado cavalo de batalha e pomo de discórdia entre ele e concorrentes diretos (Pauline Kael, John Simon) e indiretos (Gore Vidal, entre outros).
O olhar privilegiado e a elegância da escrita, com notório penchant por aliterações, fizeram dele o continuador de uma tradição iniciada por Otis Ferguson e James Agee. Estreou no Voice em1961, louvando A Aventura, de Antonioni (cuja opção pelo tédio mais tarde lhe inspiraria o neologismo “antonioniennui”), e em suas páginas pontificou durante 30 anos, até se transferir para o New York Observer.
Considerava-se um “cultista”, um fiel baluarte de filmes autorais, de preferência não herméticos, haja vista sua defesa apaixonada de Chaplin, Murnau, Ford, Renoir, Max Ophuls (Lola Montès reinou absoluto em seu top ten anos a fio), Welles, Hitchcock, Howard Hawks e outros totens da crítica parisiense. A Nouvelle Vague entrou na América por suas mãos. Nenhum de seus livros lhe deu mais notoriedade que The American Cinema, balanço dos primeiros 70 anos do cinema americano, rico em observações sutis e avaliações tão audaciosas quanto idiossincráticas. Em seu panteão não havia lugar para John Huston, Elia Kazan, Billy Wilder, William Wyler e outros monstros sagrados de Hollywood.
Sarris já era uma estrela do Voice quando Cockburn lá estreou a coluna Press Clips, exemplar exercício de media criticism que me serviu de inspiração e modelo para uma coluna (É Isso Aí), que na segunda metade dos anos 1970 editei no Pasquim. Nascido e criado na Irlanda, filho e irmão de grandes jornalistas, Alex, morto em 21 de julho, aos 71 anos, revelou-se um fiscal do poder tão bem informado e implacável quanto I.F. Stone e um dos críticos mais intransigentes das iniquidades do capitalismo, o que não o impediu de ser convidado pelo Wall Street Journal pré-Murdoch para colaborar, por uns tempos, em sua página de opinião, com total liberdade.
Muito inteligente e gozador, ocasionalmente se deixava ofuscar por alguma caturrice ideológica – e aí extrapolava. Insurgiu-se, por exemplo, contra a campanha dos ambientalistas por acreditar que combater os combustíveis fósseis significava fazer o jogo do lobby da indústria nuclear. Àquela altura, há muito deixara (brigado) o Voice e montara sua barraquinha na revista The Nation e também na Counterpunch, publicação impressa e on-line de grande penetração junto às esquerdas, que agora seu velho parceiro Jeffrey St. Clair terá de editar sozinho.
Sua coluna em The Nation intitulava-se Beat the Devil (literalmente, enganar o diabo), em homenagem ao pai, Claud Cockburn, que, com o pseudônimo de James Helvick, escreveu uma pequena farsa com este título, adaptada ao cinema por Truman Capote a pedido de John Huston. Claud era uma figuraça. Enviado pela versão britânica do diário comunista Daily Worker para cobrir a Guerra Civil Espanhola, aderiu à causa republicana e trocou a máquina de escrever pelo fuzil.
Sarris considerava Beat the Devil (no Brasil, O Diabo Riu Por Último) um dos filmes mais superestimados de Huston. O elenco é ótimo (Humphrey Bogart, Jennifer Jones, Robert Morley, Peter Lorre e, de brinde, Gina Lollobrigida), as locações deslumbrantes (Ravello, na costa amalfitana) e a intriga involuntariamente absurda, por culpa do improvisado roteiro de Capote. Sarris tinha razão. Durante as filmagens, em 1953, Huston reclamou dos preciosos azulejos que cobriam o salão de entrada do Palazzo Palumbo, principal locação do filme. “Fotografam mal em preto e branco”, disse ao dono do palácio, já então hotel, que nem discutiu e mandou trocá-los por outros com maior rendimento monocromático.
Gore Vidal, residente em Ravello por várias décadas, nunca deu trégua à sua indignação por aquele atentado ao patrimônio histórico e arquitetônico da cidade. Sempre que a ocasião lhe permitia, espinafrava o dono do Palumbo, um italiano estilo Rossano Brazzi que conheci quando lá me hospedei em 1974 e que, duas décadas depois do atentado, ainda apresentava o falso piso do lobby como se ainda fosse a relíquia seiscentista original, no melhor estilo Vittorio Gassman.
Soube dessa pitoresca história de lesa patrimônio pelo próprio escritor, não em Ravello, pois lá não se encontrava em minha primeira visita à cidade, justamente programada para entrevistá-lo em seu habitat, uma bela villa debruçada sobre o Mar Tirreno. Hoje a villa é mais um albergue de luxo da rede montada por Giuseppe Palumbo, que nada tem a ver com o quadrinista homônimo e já deve estar rindo com o Diabo faz tempo.
Obrigada pelo fogo
F. SCOTT FITZGERALD- FOLHA SP
tradução VANESSA BARBARA
Aos 40 anos, a sra. Hanson era uma mulher bonita, mas um tanto apagada, que vendia espartilhos e cintas em viagens de negócios fora de Chicago. Por muitos anos seu território havia oscilado entre Toledo, Lima, Springfield, Columbus, Indianápolis e Fort Wayne, portanto a transferência para a região de Iowa-Kansas-Missouri fora uma promoção, já que a empresa estava mais fortemente estabelecida a oeste de Ohio.
No leste, ela conhecia pessoalmente a clientela e sempre tomava um drinque ou fumava um cigarro no escritório dos compradores, depois de concluídos os negócios. Mas logo descobriu que, na nova área, as coisas eram diferentes. Não só deixavam de lhe perguntar se ela desejava fumar como, em várias ocasiões, quando ela mesma indagou se alguém se importaria caso acendesse um cigarro, a resposta veio compungida: “Não é que eu me importe, mas seria um péssimo exemplo para os empregados”.
“Ah, claro, eu entendo.”
Às vezes, fumar era importante para a sra. Hanson. Ela trabalhava muito e era um jeito de fazê-la descansar e relaxar psicologicamente. Era viúva e não tinha nenhum parente próximo para quem escrever à noite, e assistir a mais de um filme por semana prejudicava seus olhos, de modo que fumar tornou-se um importante sinal de pontuação na comprida sentença de um dia na estrada.
Na última semana de sua primeira viagem pelo novo território, ela foi parar em Kansas City. Era meados de agosto e estava se sentindo sozinha entre seus novos contatos, portanto foi com alegria que encontrou, na recepção de uma das empresas, uma mulher que havia conhecido em Chicago. A sra. Hanson sentou-se enquanto aguardava ser anunciada e, conversando, descobriu um pouco sobre o homem com quem iria se encontrar.
“Ele se importaria se eu fumasse?”
“O quê? Meu Deus, sim!”, a amiga afirmou. “Ele deu dinheiro para financiar a lei contra o fumo.”
“Ah. Bem, obrigada pelo conselho – obrigada mesmo.”
“É bom você tomar cuidado por aqui”, a amiga acrescentou. “Principalmente com os maiores de 50 anos. Os que não estiveram na guerra. Um homem me disse que quem participou da guerra nunca faria objeção a um fumante.”
Porém, em sua parada seguinte, a sra. Hanson topou com uma exceção. Ele parecia um jovem muito agradável, mas tinha os olhos fixos no cigarro que ela segurava entre os dedos, tanto que ela se viu obrigada a apagá-lo. Foi recompensada quando ele a convidou para almoçar e, ao longo do período, efetuou uma compra de valor substancial.
Depois disso, ele insistiu em lhe dar carona até o compromisso seguinte, embora ela tivesse a intenção de procurar um hotel nas redondezas e dar umas tragadas no banheiro.
Foi um desses dias repletos de espera -todos estavam ocupados ou atrasados e, quando os clientes chegavam a aparecer, eram homens de rosto duro que não toleravam a autocomplacência alheia, ou então mulheres consciente ou inconscientemente comprometidas com as ideias desses homens.
A sra. Hanson não acendia um cigarro desde o café da manhã e de repente percebeu que era por isso que sentia uma vaga insatisfação ao fim de cada reunião, não importando o quanto havia sido bem-sucedida financeiramente.
Ela dizia: “Acho que cobrimos um mercado diferente. É tudo entretela e látex, claro, mas nós realmente conseguimos juntá-los de um modo diferente. O aumento de 30 por cento nas vendas deste ano fala por si só”.
Mas pensava consigo mesma: Se ao menos eu pudesse dar três tragadas, conseguiria vender até aqueles corpetes antiquados com barbatanas.
Só havia mais uma loja para visitar, porém o compromisso estava marcado para dali a meia hora. Daria tempo de passar no hotel, mas, sem nenhum táxi à vista, ela caminhou pela rua, pensando: “Talvez eu deva parar de fumar. Estou ficando viciada”.
À sua frente havia uma catedral católica. Parecia muito alta, e de repente ela teve uma ideia: se tantas nuvens de incenso haviam subido em espirais até chegar a Deus, um pouco de fumaça no vestíbulo não faria a menor diferença. Por que é que o Altíssimo iria se importar com uma mulher exausta dando umas baforadas no vestíbulo?
Contudo, ainda que não fosse católica, o pensamento a incomodou. Fumar era tão importante assim, mesmo correndo o risco de ofender tanta gente?
E ainda assim. Ele não se importaria, pensou com persistência. Na época Dele, ainda não haviam descoberto o tabaco…
A sra. Hanson entrou na igreja; o vestíbulo estava escuro e ela procurou um fósforo na bolsa, mas não encontrou nenhum.
Vou apanhar o fogo de uma das velas, pensou.
A escuridão da nave era cortada apenas por um facho de luz num dos cantos. Ela caminhou pelo corredor lateral em direção ao borrão esbranquiçado, então reparou que não era causado por velas e, em todo caso, estava quase sumindo -um homem parecia prestes a apagar a última lamparina a óleo.
“São oferendas votivas”, ele disse. “Nós apagamos à noite. Acho que é mais importante para quem ofereceu se as economizarmos para o dia seguinte, em vez de mantê-las acesas a noite toda.”
“Entendo.”
Ele apagou a última chama. Não havia mais luz na catedral, salvos um candelabro elétrico no teto e a lâmpada sempre acesa diante do sacrário.
“Boa noite”, disse o sacristão.
“Boa noite.”
“Suponho que você tenha vindo para rezar.”
“Isso mesmo.”
Ele entrou na sacristia. A sra. Hanson ajoelhou-se e rezou.
Fazia muito tempo que ela não rezava. Mal sabia para quê, então rezou para seu empregador e para os clientes em Des Moines e Kansas City. Quando terminou, olhou para cima. Uma imagem de Nossa Senhora a encarava de um nicho a menos de dois metros de sua cabeça.
A sra. Hanson contemplou vagamente a imagem. Então ficou de pé e caiu, exausta, na beira do assento. Em sua imaginação, a Virgem desceu, como na peça “O Milagre”, tomou seu lugar e vendeu espartilhos e cintas, ficando tão cansada quanto ela. Então a sra. Hanson deve ter cochilado por uns minutos. Acordou com a sensação de que algo havia mudado, sentiu aos poucos um aroma familiar no ar, que não era de incenso, e sentiu que seus dedos doíam. Então percebeu que o cigarro que trazia entre os dedos estava aceso -e queimando.
Ainda sonolenta demais para pensar, ela deu uma tragada para manter a chama viva. Então olhou para cima e viu o nicho vago de Nossa Senhora, à meia-luz.
“Obrigada pelo fogo”, ela disse.
Mas não lhe pareceu o suficiente, de modo que ela se ajoelhou, com a fumaça subindo em espirais do cigarro entre seus dedos.
“Muitíssimo obrigada pelo fogo”, ela disse.
SOBRE O TEXTO Recusado em 1936 pela “New Yorker”, que o considerou muito fantástico e diferente do estilo de Scott, este conto foi publicado pela primeira vez na edição de 1º de agosto da revista. Agora, chega ao leitor brasileiro pelas mãos de Vanessa Barbara, tradutora de “O Grande Gatsby” (Penguin Companhia).
tradução VANESSA BARBARA
Aos 40 anos, a sra. Hanson era uma mulher bonita, mas um tanto apagada, que vendia espartilhos e cintas em viagens de negócios fora de Chicago. Por muitos anos seu território havia oscilado entre Toledo, Lima, Springfield, Columbus, Indianápolis e Fort Wayne, portanto a transferência para a região de Iowa-Kansas-Missouri fora uma promoção, já que a empresa estava mais fortemente estabelecida a oeste de Ohio.
No leste, ela conhecia pessoalmente a clientela e sempre tomava um drinque ou fumava um cigarro no escritório dos compradores, depois de concluídos os negócios. Mas logo descobriu que, na nova área, as coisas eram diferentes. Não só deixavam de lhe perguntar se ela desejava fumar como, em várias ocasiões, quando ela mesma indagou se alguém se importaria caso acendesse um cigarro, a resposta veio compungida: “Não é que eu me importe, mas seria um péssimo exemplo para os empregados”.
“Ah, claro, eu entendo.”
Às vezes, fumar era importante para a sra. Hanson. Ela trabalhava muito e era um jeito de fazê-la descansar e relaxar psicologicamente. Era viúva e não tinha nenhum parente próximo para quem escrever à noite, e assistir a mais de um filme por semana prejudicava seus olhos, de modo que fumar tornou-se um importante sinal de pontuação na comprida sentença de um dia na estrada.
Na última semana de sua primeira viagem pelo novo território, ela foi parar em Kansas City. Era meados de agosto e estava se sentindo sozinha entre seus novos contatos, portanto foi com alegria que encontrou, na recepção de uma das empresas, uma mulher que havia conhecido em Chicago. A sra. Hanson sentou-se enquanto aguardava ser anunciada e, conversando, descobriu um pouco sobre o homem com quem iria se encontrar.
“Ele se importaria se eu fumasse?”
“O quê? Meu Deus, sim!”, a amiga afirmou. “Ele deu dinheiro para financiar a lei contra o fumo.”
“Ah. Bem, obrigada pelo conselho – obrigada mesmo.”
“É bom você tomar cuidado por aqui”, a amiga acrescentou. “Principalmente com os maiores de 50 anos. Os que não estiveram na guerra. Um homem me disse que quem participou da guerra nunca faria objeção a um fumante.”
Porém, em sua parada seguinte, a sra. Hanson topou com uma exceção. Ele parecia um jovem muito agradável, mas tinha os olhos fixos no cigarro que ela segurava entre os dedos, tanto que ela se viu obrigada a apagá-lo. Foi recompensada quando ele a convidou para almoçar e, ao longo do período, efetuou uma compra de valor substancial.
Depois disso, ele insistiu em lhe dar carona até o compromisso seguinte, embora ela tivesse a intenção de procurar um hotel nas redondezas e dar umas tragadas no banheiro.
Foi um desses dias repletos de espera -todos estavam ocupados ou atrasados e, quando os clientes chegavam a aparecer, eram homens de rosto duro que não toleravam a autocomplacência alheia, ou então mulheres consciente ou inconscientemente comprometidas com as ideias desses homens.
A sra. Hanson não acendia um cigarro desde o café da manhã e de repente percebeu que era por isso que sentia uma vaga insatisfação ao fim de cada reunião, não importando o quanto havia sido bem-sucedida financeiramente.
Ela dizia: “Acho que cobrimos um mercado diferente. É tudo entretela e látex, claro, mas nós realmente conseguimos juntá-los de um modo diferente. O aumento de 30 por cento nas vendas deste ano fala por si só”.
Mas pensava consigo mesma: Se ao menos eu pudesse dar três tragadas, conseguiria vender até aqueles corpetes antiquados com barbatanas.
Só havia mais uma loja para visitar, porém o compromisso estava marcado para dali a meia hora. Daria tempo de passar no hotel, mas, sem nenhum táxi à vista, ela caminhou pela rua, pensando: “Talvez eu deva parar de fumar. Estou ficando viciada”.
À sua frente havia uma catedral católica. Parecia muito alta, e de repente ela teve uma ideia: se tantas nuvens de incenso haviam subido em espirais até chegar a Deus, um pouco de fumaça no vestíbulo não faria a menor diferença. Por que é que o Altíssimo iria se importar com uma mulher exausta dando umas baforadas no vestíbulo?
Contudo, ainda que não fosse católica, o pensamento a incomodou. Fumar era tão importante assim, mesmo correndo o risco de ofender tanta gente?
E ainda assim. Ele não se importaria, pensou com persistência. Na época Dele, ainda não haviam descoberto o tabaco…
A sra. Hanson entrou na igreja; o vestíbulo estava escuro e ela procurou um fósforo na bolsa, mas não encontrou nenhum.
Vou apanhar o fogo de uma das velas, pensou.
A escuridão da nave era cortada apenas por um facho de luz num dos cantos. Ela caminhou pelo corredor lateral em direção ao borrão esbranquiçado, então reparou que não era causado por velas e, em todo caso, estava quase sumindo -um homem parecia prestes a apagar a última lamparina a óleo.
“São oferendas votivas”, ele disse. “Nós apagamos à noite. Acho que é mais importante para quem ofereceu se as economizarmos para o dia seguinte, em vez de mantê-las acesas a noite toda.”
“Entendo.”
Ele apagou a última chama. Não havia mais luz na catedral, salvos um candelabro elétrico no teto e a lâmpada sempre acesa diante do sacrário.
“Boa noite”, disse o sacristão.
“Boa noite.”
“Suponho que você tenha vindo para rezar.”
“Isso mesmo.”
Ele entrou na sacristia. A sra. Hanson ajoelhou-se e rezou.
Fazia muito tempo que ela não rezava. Mal sabia para quê, então rezou para seu empregador e para os clientes em Des Moines e Kansas City. Quando terminou, olhou para cima. Uma imagem de Nossa Senhora a encarava de um nicho a menos de dois metros de sua cabeça.
A sra. Hanson contemplou vagamente a imagem. Então ficou de pé e caiu, exausta, na beira do assento. Em sua imaginação, a Virgem desceu, como na peça “O Milagre”, tomou seu lugar e vendeu espartilhos e cintas, ficando tão cansada quanto ela. Então a sra. Hanson deve ter cochilado por uns minutos. Acordou com a sensação de que algo havia mudado, sentiu aos poucos um aroma familiar no ar, que não era de incenso, e sentiu que seus dedos doíam. Então percebeu que o cigarro que trazia entre os dedos estava aceso -e queimando.
Ainda sonolenta demais para pensar, ela deu uma tragada para manter a chama viva. Então olhou para cima e viu o nicho vago de Nossa Senhora, à meia-luz.
“Obrigada pelo fogo”, ela disse.
Mas não lhe pareceu o suficiente, de modo que ela se ajoelhou, com a fumaça subindo em espirais do cigarro entre seus dedos.
“Muitíssimo obrigada pelo fogo”, ela disse.
SOBRE O TEXTO Recusado em 1936 pela “New Yorker”, que o considerou muito fantástico e diferente do estilo de Scott, este conto foi publicado pela primeira vez na edição de 1º de agosto da revista. Agora, chega ao leitor brasileiro pelas mãos de Vanessa Barbara, tradutora de “O Grande Gatsby” (Penguin Companhia).
Por uma literatura suja
10/08/2012
Por Tatiana Salem Levy | Para o Valor, do Rio
O último romance de Paulo Scott, “Habitante Irreal”, me despertou inúmeras questões que mereceriam um estudo minucioso. Eu poderia discorrer longamente sobre o livro, tamanha a sua força. Poderia falar de Maína, a personagem índia que continuou habitando o meu imaginário dias depois de concluída a leitura. Ou do envolvimento político de Paulo, jovem gaúcho envolvido com o movimento estudantil nos anos 80 e, mais tarde, com os “squats” em Londres. Ou de Donato, filho desse casal improvável, e a primeira vez em que vê o mar. Poderia ainda falar da segurança narrativa do autor, do seu domínio da trama e da estrutura. No entanto, prefiro falar daquilo que, aparentemente, constitui o defeito do romance e termina por se revelar a sua maior potência: a sujeira.
“Habitante Irreal” é um livro sujo, tanto na temática quanto na linguagem. Fala de assuntos pouco explorados na nossa literatura, dos índios, de seus descendentes, da situação calamitosa em que se encontram, à margem na sociedade. Aliás, literalmente à margem, vivem, como Maína, em acampamentos na beira da estrada. Buscam, como Donato, uma identidade esfacelada.
O romance aborda esse universo com uma voz de dentro. Embora o narrador seja em terceira pessoa, sua visão é muito íntima dos personagens, muito próxima da realidade em que ocorre a história. Ao lado da temática surge uma narrativa suja, em que abundam excessos, descrições exageradas, parênteses insistentes, diálogos barrocos e, ao mesmo tempo, muito realistas. É justamente dessa linguagem excessiva que emerge o fulgor do livro de Scott.
O excesso é o movimento de transbordamento pelo qual o autor tende a sair de si, extravasar-se. Uma obra de arte limpa demais, concisa demais, redonda demais, termina, na maioria dos casos, por sufocar a vida. É nos pontos de sujeira que emerge o “efeito de real”, conceito criado por Roland Barthes para explicar aquilo que numa obra salta para fora, capaz de nos tocar, de nos levar perto do tão almejado real. Em outros termos, a sujeira é aquilo que escapa do controle do autor, aquilo que se impõe à mercê da sua vontade e, num certo sentido, o extrapola. Aquilo que num trabalho de edição até poderia ficar de fora, mas, de tão insistente, permanece. Porque sem a sujeira muitos livros seriam apenas histórias bem contadas. E o leitor precisa de mais do que isso, precisa do sangue que só “aquele” autor pode dar.
Na mesma altura em que li “Habitante Irreal”, fui ao cinema ver “Na Estrada”, de Walter Salles, impecável na direção, na atuação e na fotografia. Belo em sua melancolia. Mas limpo demais para ser “on the road”. Faltou lama no filme, a terra das estradas gaúchas do romance de Scott. Então, lembrei-me da obra de outro escritor, Samuel Rawet, sujo dos pés à cabeça. Sua obra é bastante irregular, mas tem momentos primorosos que se destacam por uma falta de compromisso com a estética limpa e acadêmica. “Não temo a linguagem exaltada”, diz ele em “Eu-Tu-Ele”. E de fato não teme: em seus contos e novelas, abundam palavrões, obscenidade, escatologia.
No ensaio intitulado “Corpus”, Jean-Luc Nancy desenvolve o conceito de “excrita”, “excrição”. Em realidade, ele liga a ideia de escrita ao sufixo “ex” (fora), aproximando-a de palavras como exteriorização, exposição e excesso. Trata-se de pensar a literatura como um movimento para o exterior. Afirma o filósofo: “A ‘excrição’ (’excription’) de nosso corpo, eis por onde é preciso passar primeiro. Sua inscrição para fora, sua colocação ‘fora do texto’ como o movimento mais ‘próprio’ do texto: o texto ‘mesmo’ abandonado, deixado no seu limite.” Na literatura de Rawet, observamos constantemente um corpo que se expõe, que se revela excessivamente. O excesso seria a forma de se deixar levar, pois nele não há boicote possível: fica-se a nu.
Na novela “Viagens de Ahasverus à Terra Alheia em Busca de um Passado Que não Existe Porque É Futuro e de um Futuro Que já Passou Porque Sonhado”, essa ideia mostra-se evidente. Ahasverus perambula por todos os cantos do planeta, vai de Haifa ao Rio e a Paris; por todos os tempos, passando da Inquisição na Península Ibérica a hoje, e sob as formas humanas mais variadas. Condenado à errância eterna por ter zombado de Cristo, não consegue se lembrar exatamente de onde vem, quem é e “nem mesmo se havia nascido”. Está sempre se metamorfoseando, tomando as formas mais diversas. Tudo é muito difuso e impreciso para Ahasverus, pois ele não consegue se fixar numa terra, num tempo.
O corpo do personagem se expõe em todas as suas facetas: o movimento, a dor, a paralisia e o sexo. Nessa novela de um único parágrafo, a sexualidade é explorada com vigor. Ahasverus se masturba e tem relações com homens e mulheres. A certa altura, diz o narrador:
“E subitamente precipitou-se numa avalanche de metamorfoses incompletas até assumir a forma de íncubo e depois súcubo, e nas duas formas de súcubo e íncubo exalar um cheiro de esperma e enxofre, produto de uma sexualidade desbragada, insatisfeita, permanente, ávidas sempre as duas formas de gozo, e no auge do gozo desejando mais gozo, tanto gozo que as duas formas eram insuficientes, e se multiplicaram em quatro, oito, dezesseis, trinta e duas, sessenta e quatro, fazendo sentir em toda a terra o cheiro de gozo, esperma e enxofre”.
Uma exaltação constante anima Ahasverus, como se ele pudesse explodir a qualquer instante. A sexualidade aparece aqui como uma maneira de fazer expelir o próprio corpo, expô-lo. Da mesma forma, as cenas de vômito são frequentes em sua obra, como se os personagens, na impossibilidade de falar do incômodo, precisassem vomitar o que sentem. No conto “Trio”, diz o narrador: “Paulo, sentado no meio, equilibrou a garrafa de cachaça no chão e abriu os braços como se crescesse de repente. O corpo maior do que o corpo. A pele, uma jaula para o tamanho que ia tomando. Nem o vômito perturbou a amplidão das mãos estendidas. Escorreu pelo peito, ramificou-se pelas coxas, e foi se empoçar entre as pernas”.
Se o padrão é um corpo limpo e quase inorgânico, ele traz para seus textos um corpo sujo e orgânico. Para tratar desse tema, é preciso uma linguagem igualmente suja. Por isso, em seus textos há tantas exclamações, frases de inconformidade e xingamentos. Para exteriorizar o corpo que não cabe em si, Rawet faz uso de uma linguagem que se coloca para fora, vomita, libertando-se de um pensamento sistemático e fechado.
É claro que uma prosa, para ser convincente, precisa de uma estrutura bem amarrada, personagens vivos, domínio linguístico. Qualidades essas que Paulo Scott e Samuel Rawet têm de sobra. Não estou aqui para fazer uma apologia do caos. Queria apenas dizer que um pouco de sujeira é fundamental, aquele ponto de desequilíbrio que coloca o leitor diante das feridas do mundo.
Tatiana Salem Levy é escritora e doutora em letras. Publicou os romances “A Chave de Casa” e “Dois Rios” (Record).
Por Tatiana Salem Levy | Para o Valor, do Rio
O último romance de Paulo Scott, “Habitante Irreal”, me despertou inúmeras questões que mereceriam um estudo minucioso. Eu poderia discorrer longamente sobre o livro, tamanha a sua força. Poderia falar de Maína, a personagem índia que continuou habitando o meu imaginário dias depois de concluída a leitura. Ou do envolvimento político de Paulo, jovem gaúcho envolvido com o movimento estudantil nos anos 80 e, mais tarde, com os “squats” em Londres. Ou de Donato, filho desse casal improvável, e a primeira vez em que vê o mar. Poderia ainda falar da segurança narrativa do autor, do seu domínio da trama e da estrutura. No entanto, prefiro falar daquilo que, aparentemente, constitui o defeito do romance e termina por se revelar a sua maior potência: a sujeira.
“Habitante Irreal” é um livro sujo, tanto na temática quanto na linguagem. Fala de assuntos pouco explorados na nossa literatura, dos índios, de seus descendentes, da situação calamitosa em que se encontram, à margem na sociedade. Aliás, literalmente à margem, vivem, como Maína, em acampamentos na beira da estrada. Buscam, como Donato, uma identidade esfacelada.
O romance aborda esse universo com uma voz de dentro. Embora o narrador seja em terceira pessoa, sua visão é muito íntima dos personagens, muito próxima da realidade em que ocorre a história. Ao lado da temática surge uma narrativa suja, em que abundam excessos, descrições exageradas, parênteses insistentes, diálogos barrocos e, ao mesmo tempo, muito realistas. É justamente dessa linguagem excessiva que emerge o fulgor do livro de Scott.
O excesso é o movimento de transbordamento pelo qual o autor tende a sair de si, extravasar-se. Uma obra de arte limpa demais, concisa demais, redonda demais, termina, na maioria dos casos, por sufocar a vida. É nos pontos de sujeira que emerge o “efeito de real”, conceito criado por Roland Barthes para explicar aquilo que numa obra salta para fora, capaz de nos tocar, de nos levar perto do tão almejado real. Em outros termos, a sujeira é aquilo que escapa do controle do autor, aquilo que se impõe à mercê da sua vontade e, num certo sentido, o extrapola. Aquilo que num trabalho de edição até poderia ficar de fora, mas, de tão insistente, permanece. Porque sem a sujeira muitos livros seriam apenas histórias bem contadas. E o leitor precisa de mais do que isso, precisa do sangue que só “aquele” autor pode dar.
Na mesma altura em que li “Habitante Irreal”, fui ao cinema ver “Na Estrada”, de Walter Salles, impecável na direção, na atuação e na fotografia. Belo em sua melancolia. Mas limpo demais para ser “on the road”. Faltou lama no filme, a terra das estradas gaúchas do romance de Scott. Então, lembrei-me da obra de outro escritor, Samuel Rawet, sujo dos pés à cabeça. Sua obra é bastante irregular, mas tem momentos primorosos que se destacam por uma falta de compromisso com a estética limpa e acadêmica. “Não temo a linguagem exaltada”, diz ele em “Eu-Tu-Ele”. E de fato não teme: em seus contos e novelas, abundam palavrões, obscenidade, escatologia.
No ensaio intitulado “Corpus”, Jean-Luc Nancy desenvolve o conceito de “excrita”, “excrição”. Em realidade, ele liga a ideia de escrita ao sufixo “ex” (fora), aproximando-a de palavras como exteriorização, exposição e excesso. Trata-se de pensar a literatura como um movimento para o exterior. Afirma o filósofo: “A ‘excrição’ (’excription’) de nosso corpo, eis por onde é preciso passar primeiro. Sua inscrição para fora, sua colocação ‘fora do texto’ como o movimento mais ‘próprio’ do texto: o texto ‘mesmo’ abandonado, deixado no seu limite.” Na literatura de Rawet, observamos constantemente um corpo que se expõe, que se revela excessivamente. O excesso seria a forma de se deixar levar, pois nele não há boicote possível: fica-se a nu.
Na novela “Viagens de Ahasverus à Terra Alheia em Busca de um Passado Que não Existe Porque É Futuro e de um Futuro Que já Passou Porque Sonhado”, essa ideia mostra-se evidente. Ahasverus perambula por todos os cantos do planeta, vai de Haifa ao Rio e a Paris; por todos os tempos, passando da Inquisição na Península Ibérica a hoje, e sob as formas humanas mais variadas. Condenado à errância eterna por ter zombado de Cristo, não consegue se lembrar exatamente de onde vem, quem é e “nem mesmo se havia nascido”. Está sempre se metamorfoseando, tomando as formas mais diversas. Tudo é muito difuso e impreciso para Ahasverus, pois ele não consegue se fixar numa terra, num tempo.
O corpo do personagem se expõe em todas as suas facetas: o movimento, a dor, a paralisia e o sexo. Nessa novela de um único parágrafo, a sexualidade é explorada com vigor. Ahasverus se masturba e tem relações com homens e mulheres. A certa altura, diz o narrador:
“E subitamente precipitou-se numa avalanche de metamorfoses incompletas até assumir a forma de íncubo e depois súcubo, e nas duas formas de súcubo e íncubo exalar um cheiro de esperma e enxofre, produto de uma sexualidade desbragada, insatisfeita, permanente, ávidas sempre as duas formas de gozo, e no auge do gozo desejando mais gozo, tanto gozo que as duas formas eram insuficientes, e se multiplicaram em quatro, oito, dezesseis, trinta e duas, sessenta e quatro, fazendo sentir em toda a terra o cheiro de gozo, esperma e enxofre”.
Uma exaltação constante anima Ahasverus, como se ele pudesse explodir a qualquer instante. A sexualidade aparece aqui como uma maneira de fazer expelir o próprio corpo, expô-lo. Da mesma forma, as cenas de vômito são frequentes em sua obra, como se os personagens, na impossibilidade de falar do incômodo, precisassem vomitar o que sentem. No conto “Trio”, diz o narrador: “Paulo, sentado no meio, equilibrou a garrafa de cachaça no chão e abriu os braços como se crescesse de repente. O corpo maior do que o corpo. A pele, uma jaula para o tamanho que ia tomando. Nem o vômito perturbou a amplidão das mãos estendidas. Escorreu pelo peito, ramificou-se pelas coxas, e foi se empoçar entre as pernas”.
Se o padrão é um corpo limpo e quase inorgânico, ele traz para seus textos um corpo sujo e orgânico. Para tratar desse tema, é preciso uma linguagem igualmente suja. Por isso, em seus textos há tantas exclamações, frases de inconformidade e xingamentos. Para exteriorizar o corpo que não cabe em si, Rawet faz uso de uma linguagem que se coloca para fora, vomita, libertando-se de um pensamento sistemático e fechado.
É claro que uma prosa, para ser convincente, precisa de uma estrutura bem amarrada, personagens vivos, domínio linguístico. Qualidades essas que Paulo Scott e Samuel Rawet têm de sobra. Não estou aqui para fazer uma apologia do caos. Queria apenas dizer que um pouco de sujeira é fundamental, aquele ponto de desequilíbrio que coloca o leitor diante das feridas do mundo.
Tatiana Salem Levy é escritora e doutora em letras. Publicou os romances “A Chave de Casa” e “Dois Rios” (Record).
Os primeiros encontros
Cada momento passado juntos
Era uma celebração, uma Epifania,
Nós os dois sozinhos no mundo,
Tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
Descias numa vertigem a escada
A dois e dois, arrastando-me
Através dos húmidos lilases, aos teus domínios
Do outro lado, passando o espelho
Pela noite concedias-me o favor,
Abriam-se as portas do altar
E a nossa nudez iluminava o escuro
À medida que genuflectia. E ao acordar
Eu diria «Abençoada sejas!»
Sabendo como pretenciosa era a bênção:
Dormias, os lilases tombavam da mesa
Para tocar-te as pálpebras num universo de azul,
E tu recebias esse sinal sobre as pálpebras
Imóveis, e imóvel estava a tua mão quente.
Rios palpitantes por dentro do cristal,
A montanha assomando na bruma, mar enfurecido,
E tu com a bola de cristal nas mãos,
Sentada num trono enquanto dormes,
- Deus do céu! – tu pertences-me.
Acordas para transfigurar
As palavras de todos os dias,
E o teu discorrer transbordante
De poder revela na palavra «tu»
O seu novo sentido: significa «rei».
Simples objectos transfigurados,
Tudo – a bacia, o jarro -, tudo
Uma vez de sentinela entre nós
Se torna límpido, laminar e firme.
Íamos, sem saber por onde,
Perseguidos por miragens de cidades
Derrotadas construídas no milagre,
Hortelã pimenta a nossos pés,
As aves acompanhando-nos o voo,
E no rio os peixes à procura da nascente;
O céu, a nós se abrindo.
Porque o destino seguia-nos o rastro
Como um louco com uma navalha na mão.
Arseny Tarkovsky.
« 8 Ícones». Versão de Paulo da Costa Domingos.
Assíro&Alvim, Lisboa, 1987., p.15-19
Era uma celebração, uma Epifania,
Nós os dois sozinhos no mundo,
Tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
Descias numa vertigem a escada
A dois e dois, arrastando-me
Através dos húmidos lilases, aos teus domínios
Do outro lado, passando o espelho
Pela noite concedias-me o favor,
Abriam-se as portas do altar
E a nossa nudez iluminava o escuro
À medida que genuflectia. E ao acordar
Eu diria «Abençoada sejas!»
Sabendo como pretenciosa era a bênção:
Dormias, os lilases tombavam da mesa
Para tocar-te as pálpebras num universo de azul,
E tu recebias esse sinal sobre as pálpebras
Imóveis, e imóvel estava a tua mão quente.
Rios palpitantes por dentro do cristal,
A montanha assomando na bruma, mar enfurecido,
E tu com a bola de cristal nas mãos,
Sentada num trono enquanto dormes,
- Deus do céu! – tu pertences-me.
Acordas para transfigurar
As palavras de todos os dias,
E o teu discorrer transbordante
De poder revela na palavra «tu»
O seu novo sentido: significa «rei».
Simples objectos transfigurados,
Tudo – a bacia, o jarro -, tudo
Uma vez de sentinela entre nós
Se torna límpido, laminar e firme.
Íamos, sem saber por onde,
Perseguidos por miragens de cidades
Derrotadas construídas no milagre,
Hortelã pimenta a nossos pés,
As aves acompanhando-nos o voo,
E no rio os peixes à procura da nascente;
O céu, a nós se abrindo.
Porque o destino seguia-nos o rastro
Como um louco com uma navalha na mão.
Arseny Tarkovsky.
« 8 Ícones». Versão de Paulo da Costa Domingos.
Assíro&Alvim, Lisboa, 1987., p.15-19
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