Cartas e biblioteca explicam obra de argentino
SYLVIA COLOMBO – FOLHA SP
RESUMO Reunidas em cinco tomos, as cartas de Julio Cortázar registram impressões literárias e políticas sobre a Argentina e sobre a Europa. Em outra obra, pesquisador se debruça sobre os 4.500 volumes da biblioteca pessoal do autor de “O Jogo da Amarelinha” para entender o diálogo que escritor manteve com a literatura.
Não havia Facebook nem Twitter no tempo de Julio Cortázar (1914-84). Mas o escritor argentino, autor de “O Jogo da Amarelinha” e “Histórias de Cronópios e de Famas” era um viciado em redes sociais estabelecidas por meio de cartas, e tinha muitos amigos com quem compartilhava impressões sobre filmes, música, viagens e, principalmente, outros livros.
Essa é a sensação que fica quando se folheia os cinco tomos de sua farta correspondência, lançados agora na Argentina pela Alfaguara -”Cartas 1: 1937-1954″, “Cartas 2: 1955-1964″, “Cartas 3: 1965-1968″, “Cartas 4: 1969-1976″, “Cartas 5: 1977-1984″ [cerca de R$ 72 cada um, mais taxas]. As missivas foram reunidas pela viúva do escritor, a tradutora Aurora Bernárdez, e pelo editor e filólogo catalão Carles Álvarez Garriga, e são uma versão estendida, em mais de mil cartas, de uma versão lançada em 2001, com três tomos.
Há conversas com amigos de infância, como Eduardo Jonquieres, o tradutor Paco Porrúa, a mecenas Victoria Ocampo, e com grandes escritores com quem se correspondia com frequência, como Mario Vargas Llosa, José Lezama Lima, Juan Carlos Onetti, Guillermo Cabrera Infante e Alejandra Pizarnik. A correspondência familiar é reduzida, algumas à mãe, outras às suas mulheres e ex-mulheres e uma única enviada ao pai, de quem vivia afastado, em 1949.
Chama a atenção o fato de não haver cartas de seus amigos e conhecidos brasileiros. “Não chegou nada a tempo, mas sabe-se que foi próximo de muitos, como o tradutor Davi Arrigucci Jr., os escritores Haroldo de Campos e Décio Pignatari e o cantor Caetano Veloso”, diz Garriga à Folha.
Cortázar não lia em português, e sim por meio de traduções francesas. Em carta de fevereiro de 1983, escreveu: “Às vezes penso que o mais forte que li nos últimos dez anos foi a obra de dois brasileiros, Clarice Lispector e Osman Lins, quase dá vontade de lançar-se ao português em busca de outras coisas que possam existir”.
GÊNERO Para Garriga, em alguns anos o epistolário de Cortázar será valorizado como um gênero dentro de sua obra. “A qualidade de sua prosa me parece sempre a mesma, esteja escrevendo um conto, um romance ou uma carta. A assombrosa linearidade de seu pensamento é admirável”, diz.
Ele conta que a leitura dos originais, “limpíssimos”, deixa claro que Cortázar “nem corrigia nem duvidava”. “Ainda que escrevesse só com um dedo de cada mão, era um mecanógrafo velocíssimo e, segundo contam, não se detinha em nenhum instante. Há cartas que são pequenos relatos, e outras, quase poemas.”
Em 1937, no começo da primeira leva de cartas, Cortázar era ainda professor na província de Buenos Aires. O argentino partiu para Paris em 1951, aos 37 anos, por não estar de acordo com o regime peronista. Recebeu uma bolsa do governo francês, depois passou a trabalhar como tradutor da Unesco.
Estão registradas suas impressões literárias e políticas sobre a Argentina e sobre a Europa, sobretudo a França, no período em que viveu naquele país. Repete-se o tom entusiasmado com que comenta cada obra ou lugar novo que conhece, mas também um sentimento de culpa e de entrega com relação a cada interlocutor.
“Outra circunstância que desperta a maior simpatia ao ler essas centenas de páginas é ver como Cortázar tem a capacidade camaleônica de adaptar-se ao interlocutor, seja ele um editor renomado, seja o filho de um amigo, seja um tradutor perdido, sempre com a maior empatia”, afirma Garriga.
Pelo visto, na vida real ele atuava de forma parecida, e talvez por isso caia bem a todo o mundo (ainda hoje, pessoas que apenas o frequentaram sustentam que os momentos divididos com ele foram os mais importantes de sua vida).
DESCULPAS A maioria das cartas começa com longas desculpas pela demora em contestar. Depois, comenta aspectos da vida do interlocutor, pergunta sobre a família e sobre o trabalho. Em alguns casos, opina avidamente sobre este.
O cubano José Lezama Lima e o mexicano Octavio Paz recebem detalhados comentários literários sobre suas obras. Também aparecem broncas, como a que dá no peruano Mario Vargas Llosa pelo fato de ele ter se ausentado de um encontro em Cuba que pedia a liberdade de um preso político do regime comunista.
A correspondência chega num momento em que a obra de Cortázar vem sendo rediscutida na Argentina. Alguns críticos fazem ressalvas ao fato de ter se tornado um cânone sem voltar a ser avaliado.
Para o editor e crítico Damián Tabarovsky, o escritor está super-valorizado e sua obra tem mais importância como porta de entrada para a literatura do que por seu verdadeiro legado estético. Ele diz que, depois de passar por autores como Raymond Roussel, Robbe-Grillet e Foucault, torna-se impossível voltar a Cortázar. “Os mecanismos de divulgação cortazarianos passam a nos parecer triviais.”
Cortázar morreu em Paris em 12 de fevereiro de 1984, sendo enterrado no cemitério de Montparnasse. Nove anos mais tarde, seus livros foram doados à Fundação Juan March, em Madri. O editor e jornalista Jesús Marchamalo explorou os 4.500 tomos da coleção, e o resultado é o livro *”Cortázar y los Libros” [importado, ed. Fórcola, 112 págs., cerca de R$ 32 mais taxas],* lançado na Espanha.
ANOTAÇÕES Marchamalo recolheu as anotações, dedicatórias e desenhos, como a famosa espiral, que se repete em várias obras, e que o argentino fazia às margens e nas folhas de rosto dos livros.
“Os comentários que fazia eram o diálogo que estabelecia com a literatura. Fazia observações sobre estrutura, consistência dos personagens, coisa que lhe pareciam inverossímeis, tentativas equivocadas”, diz Marchamalo à Folha.
São comuns as observações “voilá”, “bien!”, “penoso”, mas também outras mais divertidas, como “que macanudo sos!”, esta para Lezama Lima, ou, em referência a um livro cuja capa era desenhada pelo artista mexicano Rufino Tamayo, “que te parta um rayo!”. Cortázar lia em francês, inglês, espanhol e alemão, e os comentários sempre seguiam o idioma em que estava lendo.
A biblioteca e as dedicatórias registram também a relação de Cortázar com Alejandra Pizarnik, a quem o escritor praticamente adotara como irmã mais nova e a quem tentava proteger e aconselhar. Pizarnik atravessou longo calvário em instituições psiquiátricas, até se suicidar em 1972.
“As dedicatórias que ela fazia para ele nos livros que lhe enviava estão entre as coisas mais estremecedoras que li. Mostram como ela caminhava por seu escuro túnel”, diz Marchamalo.
A coleção que está em Madri não pode ser considerada como a reunião de todos os livros que teve em vida. Cortázar viajava muito, conviveu com algumas mulheres, o que pode ter feito com que muitos volumes se perdessem.
Ainda assim, Marchamalo chama a atenção para o fato de que Cortázar tinha poucos livros de Jorge Luis Borges e, além disso, muito pouco anotados.
“Os dois se admiravam mutuamente, mas viviam em mundos diferentes, e sempre deixaram isso claro. Tanto com relação à literatura como quanto à política. Cortázar era mais engajado, abraçou a Revolução Cubana em certo momento. Borges sempre esteve alheio a essas coisas. Aí não havia um diálogo”, diz o editor.
CLARICE De autores brasileiros, há apenas volumes de Clarice Lispector, em espanhol, português e francês. Muitos livros dos mexicanos Carlos Fuentes e Octavio Paz, seus grandes amigos, e alguns de Mario Vargas Llosa, com quem mantinha bastante contato.
Na correspondência lançada na Argentina, está documentado o desentendimento entre eles por conta do desaparecimento do poeta cubano Heberto Padilla, perseguido pelo regime.
Mas a história que Marchamalo prefere e que reflete a relação de Cortázar com os livros é a que o escritor contava sobre como Aurora e ele se entretinham em suas viagens pela Europa.
“Eles não tinham dinheiro e viajavam com poucos recursos. Era muito comum comprarem edições baratas em estações, que liam entre eles. Cortázar lia uma página, arrancava, passava para Aurora, e depois de ler iam jogando-as fora. Para mim, é uma metáfora da biblioteca que colecionou durante toda a vida, de páginas que eram consumidas, comentadas e devolvidas ao vento.”
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