10/08/2012
Por Tatiana Salem Levy | Para o Valor, do Rio
O último romance de Paulo Scott, “Habitante Irreal”, me despertou inúmeras questões que mereceriam um estudo minucioso. Eu poderia discorrer longamente sobre o livro, tamanha a sua força. Poderia falar de Maína, a personagem índia que continuou habitando o meu imaginário dias depois de concluída a leitura. Ou do envolvimento político de Paulo, jovem gaúcho envolvido com o movimento estudantil nos anos 80 e, mais tarde, com os “squats” em Londres. Ou de Donato, filho desse casal improvável, e a primeira vez em que vê o mar. Poderia ainda falar da segurança narrativa do autor, do seu domínio da trama e da estrutura. No entanto, prefiro falar daquilo que, aparentemente, constitui o defeito do romance e termina por se revelar a sua maior potência: a sujeira.
“Habitante Irreal” é um livro sujo, tanto na temática quanto na linguagem. Fala de assuntos pouco explorados na nossa literatura, dos índios, de seus descendentes, da situação calamitosa em que se encontram, à margem na sociedade. Aliás, literalmente à margem, vivem, como Maína, em acampamentos na beira da estrada. Buscam, como Donato, uma identidade esfacelada.
O romance aborda esse universo com uma voz de dentro. Embora o narrador seja em terceira pessoa, sua visão é muito íntima dos personagens, muito próxima da realidade em que ocorre a história. Ao lado da temática surge uma narrativa suja, em que abundam excessos, descrições exageradas, parênteses insistentes, diálogos barrocos e, ao mesmo tempo, muito realistas. É justamente dessa linguagem excessiva que emerge o fulgor do livro de Scott.
O excesso é o movimento de transbordamento pelo qual o autor tende a sair de si, extravasar-se. Uma obra de arte limpa demais, concisa demais, redonda demais, termina, na maioria dos casos, por sufocar a vida. É nos pontos de sujeira que emerge o “efeito de real”, conceito criado por Roland Barthes para explicar aquilo que numa obra salta para fora, capaz de nos tocar, de nos levar perto do tão almejado real. Em outros termos, a sujeira é aquilo que escapa do controle do autor, aquilo que se impõe à mercê da sua vontade e, num certo sentido, o extrapola. Aquilo que num trabalho de edição até poderia ficar de fora, mas, de tão insistente, permanece. Porque sem a sujeira muitos livros seriam apenas histórias bem contadas. E o leitor precisa de mais do que isso, precisa do sangue que só “aquele” autor pode dar.
Na mesma altura em que li “Habitante Irreal”, fui ao cinema ver “Na Estrada”, de Walter Salles, impecável na direção, na atuação e na fotografia. Belo em sua melancolia. Mas limpo demais para ser “on the road”. Faltou lama no filme, a terra das estradas gaúchas do romance de Scott. Então, lembrei-me da obra de outro escritor, Samuel Rawet, sujo dos pés à cabeça. Sua obra é bastante irregular, mas tem momentos primorosos que se destacam por uma falta de compromisso com a estética limpa e acadêmica. “Não temo a linguagem exaltada”, diz ele em “Eu-Tu-Ele”. E de fato não teme: em seus contos e novelas, abundam palavrões, obscenidade, escatologia.
No ensaio intitulado “Corpus”, Jean-Luc Nancy desenvolve o conceito de “excrita”, “excrição”. Em realidade, ele liga a ideia de escrita ao sufixo “ex” (fora), aproximando-a de palavras como exteriorização, exposição e excesso. Trata-se de pensar a literatura como um movimento para o exterior. Afirma o filósofo: “A ‘excrição’ (’excription’) de nosso corpo, eis por onde é preciso passar primeiro. Sua inscrição para fora, sua colocação ‘fora do texto’ como o movimento mais ‘próprio’ do texto: o texto ‘mesmo’ abandonado, deixado no seu limite.” Na literatura de Rawet, observamos constantemente um corpo que se expõe, que se revela excessivamente. O excesso seria a forma de se deixar levar, pois nele não há boicote possível: fica-se a nu.
Na novela “Viagens de Ahasverus à Terra Alheia em Busca de um Passado Que não Existe Porque É Futuro e de um Futuro Que já Passou Porque Sonhado”, essa ideia mostra-se evidente. Ahasverus perambula por todos os cantos do planeta, vai de Haifa ao Rio e a Paris; por todos os tempos, passando da Inquisição na Península Ibérica a hoje, e sob as formas humanas mais variadas. Condenado à errância eterna por ter zombado de Cristo, não consegue se lembrar exatamente de onde vem, quem é e “nem mesmo se havia nascido”. Está sempre se metamorfoseando, tomando as formas mais diversas. Tudo é muito difuso e impreciso para Ahasverus, pois ele não consegue se fixar numa terra, num tempo.
O corpo do personagem se expõe em todas as suas facetas: o movimento, a dor, a paralisia e o sexo. Nessa novela de um único parágrafo, a sexualidade é explorada com vigor. Ahasverus se masturba e tem relações com homens e mulheres. A certa altura, diz o narrador:
“E subitamente precipitou-se numa avalanche de metamorfoses incompletas até assumir a forma de íncubo e depois súcubo, e nas duas formas de súcubo e íncubo exalar um cheiro de esperma e enxofre, produto de uma sexualidade desbragada, insatisfeita, permanente, ávidas sempre as duas formas de gozo, e no auge do gozo desejando mais gozo, tanto gozo que as duas formas eram insuficientes, e se multiplicaram em quatro, oito, dezesseis, trinta e duas, sessenta e quatro, fazendo sentir em toda a terra o cheiro de gozo, esperma e enxofre”.
Uma exaltação constante anima Ahasverus, como se ele pudesse explodir a qualquer instante. A sexualidade aparece aqui como uma maneira de fazer expelir o próprio corpo, expô-lo. Da mesma forma, as cenas de vômito são frequentes em sua obra, como se os personagens, na impossibilidade de falar do incômodo, precisassem vomitar o que sentem. No conto “Trio”, diz o narrador: “Paulo, sentado no meio, equilibrou a garrafa de cachaça no chão e abriu os braços como se crescesse de repente. O corpo maior do que o corpo. A pele, uma jaula para o tamanho que ia tomando. Nem o vômito perturbou a amplidão das mãos estendidas. Escorreu pelo peito, ramificou-se pelas coxas, e foi se empoçar entre as pernas”.
Se o padrão é um corpo limpo e quase inorgânico, ele traz para seus textos um corpo sujo e orgânico. Para tratar desse tema, é preciso uma linguagem igualmente suja. Por isso, em seus textos há tantas exclamações, frases de inconformidade e xingamentos. Para exteriorizar o corpo que não cabe em si, Rawet faz uso de uma linguagem que se coloca para fora, vomita, libertando-se de um pensamento sistemático e fechado.
É claro que uma prosa, para ser convincente, precisa de uma estrutura bem amarrada, personagens vivos, domínio linguístico. Qualidades essas que Paulo Scott e Samuel Rawet têm de sobra. Não estou aqui para fazer uma apologia do caos. Queria apenas dizer que um pouco de sujeira é fundamental, aquele ponto de desequilíbrio que coloca o leitor diante das feridas do mundo.
Tatiana Salem Levy é escritora e doutora em letras. Publicou os romances “A Chave de Casa” e “Dois Rios” (Record).
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