domingo, 24 de julho de 2016

Sobre a vaidade


Soberana, mas agressiva quando provocada: a vaidade é lâmina afiada, pronta para o combate. Um colega, cuja postura política é distinta de minha, comentou que jamais aceitaria um convite destes. Respondi que ele deveria esperar primeiro que o convite fosse formulado a ele para saber se aceitaria ou não. Até lá, comentei sardônico, seria lícito supor que a imaginada negativa pudesse ser filha mais da inveja do que da consciência política. Orgulhosos não se toleram refletidos: rompemos.
Guiado pelos cavalos do triunfo, segui no meu deleite interno por alguns dias. Depois, como o servo que sussurrava aos generais romanos, fui ouvindo a voz da consciência prudente, que nada mais é do que a voz do medo. Lembra-te de que és apenas um homem. Será que eu conseguiria? Tenho algo a dizer toda semana? Artigos esporádicos? Criei-os às grosas. Mas... toda semana? Ser bom num texto é mais fácil do que ser bom sempre. O triunfo empacou no medo. Tal temor também é fruto da vaidade: vou me expor a um mundo gigantesco, como jamais fiz. Teria sonhado alto demais?
Piorou minha angústia: lembrei-me de que estaria ao lado de um homem que leio há anos e considero genial: Luis Fernando Verissimo, filho de outro homem que admiro desde a infância. Fico apenas nesse nome, mas há muitos outros. Minha vaidade é enorme, mas não é patológica. Reconheço qualidades em Luis Fernando Verissimo que nunca existirão em mim. O lago no qual Narciso se admira viu o reflexo da queda de Ícaro... Suas asas de cera não poderiam ter tocado na luz de Apolo. Poderei estar ao lado de Luis Fernando Verissimo?
A reunião com o diretor de Jornalismo João Caminoto trouxe, além do encontro agradável, uma certeza clara. Perguntei sobre ponto nevrálgico para toda pessoa com aspiração a escrever e pensar. Serei livre? Terei carta branca? Intelectuais toleram quase tudo, até festa de formatura, mas temos uma ojeriza ancestral à censura. João foi enfático. Sim, eu seria inteiramente livre. O Estadão apenas oferecia o patíbulo: a tipologia do nó da forca e a liberdade do salto para a morte seriam, inexoravelmente, meus. O terrível, pensei, era que a censura e a repressão fizeram brotar pérolas como As Moscas, de Sartre; ou O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc. Curiosamente, a liberdade não parecia ser um fermento tão poderoso para o pão da criatividade.Quando entrei na Unicamp, há duas décadas, foi um dos dias mais felizes da minha vida. Era o zênite de anos de bancos escolares, livros, arquivos, viagens e pesquisas. Senti, naquele dia, que eu estava ingressando em algo muito maior. A Unicamp era uma galáxia e eu estava muito feliz com isso. Continuo satisfeito.
A sensação voltou agora. Um veículo como o Estadão é maior do que as tiragens dos meus livros, do que o número de alunos regulares ou de seguidores virtuais. Não me deram uma gaveta maior: trocaram o armário e redefiniram a própria concepção de espaço.
Com esta coluna, entrarei nas casas todos os domingos e centenas de milhares de famílias irão me receber. Também serei acessado via internet e lido de forma randômica. Abro espaço para ser conhecido, e, consequência inevitável, mal interpretado.
Com medo e com orgulho, assino esta primeira coluna. Nela, há uma fórmula que tem sido a minha em textos não acadêmicos e palestras. Se o leitor atento percebeu, sob a prosa despretensiosa existe uma reflexão sobre a vaidade, sobre mídia, censura e conhecimento de si. Com fios de cultura formal e observações do mundo ao meu redor, teço estas palavras na minha Ítaca da Rua Cotoxó. Busco dizer coisas com humor e inteligência (só busco, oh, meus incipientes patrulheiros).
Sem humor e sem inteligência, a vida fica insuportavelmente monótona. Tenho um misto de medo e de entusiasmo. Toda partida tem um Velho do Restelo, venerando e aziago. Quase sempre ele tem razão, mas não haveria epopeia se o medo nos guiasse. Também não haveria naufrágios. Minha felicidade nunca esteve nas ondas rasas. Sempre aceitei o jogo ambíguo do risco e do desafio. Um bom domingo a todos vocês!

  Leandro Karnal

Fonte : O Estado de São Paulo.


Amanhecer

Norah Lange.
Buenos Aires
23 de outubro de 1905
5 de agosto de 1972.

Amanhecer

No coração de cada árvore
se estremeceu a meia-noite.
A noite se emigalha
em procissão lenta de névoa.
Todas as tardes terminam seu cansaço.
Os letreiros luminosos dormem
o susto de suas cores
e antecipam a contemplação de cada pobre.
Em toda esquina vela o sonho
e tua lembrança é a única aflição
que humilha a arrogância das calçadas.
Longe, o primeiro mendigo
trai a entrada onde dormiu.
E a cidade se abre como uma carta
para contarmos a surpresa de suas ruas.


(tradução de Ricardo Domeneck)

LA VERDAD


La verdad es la media naranja que le falta
a la naranja. La fracción del silencio
que le sobra a la media naranja
que tienes en la mano
es solo la respuesta que quieres engullir.
La idea es una cáscara
ya sin pulpa, espiral
a la piel
del silencio.

La mano que sostiene la verdad es un río
azafrán que lleva, a veces,
cálculos de mentira
a ese dolor del mundo
que se cae de un árbol
—oh Tántalo: tus manzanas de oro.

©Antonio Arroyo Silva.

Química del error 2.