domingo, 5 de dezembro de 2010

A morte épica do leão

Em seu bonito poema sobre a morte de Tolstoi, Mario Quintana errou por dois anos a idade do defunto (que já tinha 82), mas acertou no fundamental: o “grande Velho” talvez tenha morrido feliz, por haver concretizado, enfim, um sonho de infância: fugir de casa. O Conde Leão Tolstoi apagou de vez sob o teto do chefe da estação de trem da modesta Astapovo, que há 90 anos leva o nome de quem a tornou mundialmente conhecida. Fugia de casa, da mulher, dos adulões, em busca de uma reclusão monacal, mas não viajou nem morreu sozinho, abandonado num dos “bancos lustrosos” da gare, aludidos por Quintana. Com ele estavam seu médico particular e Sasha, a filha caçula.

Seria impossível ao mais célebre e cultuado russo daquele tempo desaparecer discreta e solitariamente. Muito menos em meio a uma fuga que, tão logo iniciada, dez dias antes, transformara-se numa épica caçada internacional, com a participação de jornalistas de toda a Europa. Tolstoi sucumbiu às consequências de uma pneumonia, ao raiar o dia 20 de novembro de 1910, às 6h05, hora que para sempre ficou congelada nos relógios da gare de Astapovo. Uma multidão acompanhou o velório, o cortejo, o enterro e, antes disso, a tumultuosa chegada de Sofia, a esposa abandonada, a quem só permitiram ver de perto o marido quando ele já estava inconsciente.

A morte de Tolstoi foi o primeiro grande evento midiático da Rússia acompanhado por câmeras fotográficas e cinematográficas, relatado por telegramas e imagens de cinejornais, as primeiras das quais chegaram a Paris em apenas 48 horas, com o selo da Pathé Films. Até hoje o circo que se armou em Astapovo é motivo de curiosidade e inspiração para historiadores (vide The Death of Tolstoy, de William Nickell, lançado em maio) e até ficcionistas, que o consideram o marco divisório entre a Rússia czarista que então definhava e a Rússia moderna que sete anos depois surgiria no rastro da revolução bolchevique.

Em 1917, o correspondente em Moscou do New York Times atribuiu a sublevação comunista aos “tolstoístas”, fanáticos seguidores das ideias vagamente “de esquerda” do escritor, tolice só em parte desculpável pelo pouco que se conhecia dos bolcheviques, ainda vistos por observadores de fora como uma malta de mujiques ripongas. O czar Nicolau pôs o escritor sob a vigilância de seus secretas, tentou censurar seus escritos e boicotar seu funeral, Lenin viu em sua obra um reflexo dos ideais revolucionários comunistas, mas a influência de Tolstoi e sua morte sobre os acontecimentos que culminaram com a tomada do poder pelos bolcheviques foi sobretudo (ou apenas) simbólica.

Em sua notável estreia na ficção, The Comisariat of Enlightment: A Novel (O Comissariado das Luzes: Um Romance), Ken Kalfus reconstitui a Revolução de Outubro e a posterior doutrinação em massa do povo russo por Lenin e Stalin a partir do frenesi jornalístico que sacudiu a mansidão de Astapovo, na terceira semana de novembro de 1910. No mesmo vagão de um trem, Kalfus alojou um cinegrafista russo, Kolya Gribshin, subordinado a Georges Meyer, o verdadeiro cameraman encarregado pela Pathé de cobrir a chegada de Sofia a Astapovo, o correspondente de um jornal britânico e o anatomista Vladimir Vorobev, a quem mais tarde caberia embalsamar Lenin e Stalin.

O romance, lançado em 2004, é uma tragicomédia com personagens reais e imaginários, na qual Sofia, rompendo com o clichê, não é reduzida a uma mulher impossível, a uma louca insuportável que Tolstoi já deixou tarde. São grandes as suspeitas de que ela, sra. Tolstoi durante 48 anos, tenha sido injustiçada pelos que se ocuparam de manter o escritor, imaculado, num pedestal messiânico. Ambos tinham defeitos, mas por que tanta intransigência com uma mulher que afinal pariu 13 filhos do conde, serviu-lhe de copista e resignou-se a aturar o isolamento rural, o estilo de vida espartano e o vegetarianismo por ele impostos ao casal, mais as hostilidades de Chertkov, assistente e xodó do escritor, e as constantes romarias de tietes até o retiro de Iasia Poliana?

Os diários de Sofia, só há pouco divulgados, e as recentes biografias escritas por Rosamund Bartlett (sobre Tolstoi) e Alexandra Popoff (sobre Sofia), nos revelam uma mulher bem diferente daquela a quem até já acusaram de haver envenenado o marido. Em outro expressivo début literário, The Possessed: Adventures with Russian Books (Os Possuídos: Aventuras com Romances Russos), publicado no início deste ano, a americana de origem turca Elif Batuman levanta a tese de que Tolstoi teria sido assassinado, mas não incrimina Sofia. Os “possessed” do título são uma referência aos “demônios” de Dostoievski, que na canônica tradução de Constance Garnett para o inglês viraram “possuídos”.

Batuman concentra suas suspeitas nas ameaças por carta que Tolstoi recebeu, em 1897, por haver defendido os religiosos de uma seita camponesa. Mas, a despeito das perseguições que a Igreja Ortodoxa e o czar lhe moveram, a tese de assassinato não se sustenta sob o peso da idade e do histórico cardíaco do escritor. Se não morreu feliz, tranquilo desta Tolstoi se foi, pois já se sabia imortal. Um mês depois, segundo Virginia Woolf, “o ser humano” mudou e o modernismo nasceu. Tolstoi desdenhava os modernistas, que no entanto muito lhe devem. Seus monólogos interiores anteciparam o fluxo de consciência de Joyce. Também em suas obras brotou o distanciamento crítico de Brecht. O leão do realismo literário fechou um passado e abriu um futuro.

Sergio Augusto

Prosa de Sábado-O Estado de S.Paulo

O elogio puro da beleza fugaz

Baudelaire vê o artista ”em meio à multidão”


Se a crítica fosse apenas uma atividade de frustrados que procuram defeitos nos outros, o maior poeta francês do século 19 não teria sido também o maior crítico. E Charles Baudelaire (1821-1867) foi ambos. Além de ter sido o primeiro a dar o devido valor a Edgar Allan Poe, o poeta, contista e crítico que os EUA ainda não sabiam valorizar, Baudelaire foi fundamental na crítica de arte. Fundamental, no sentido puro: ele foi aos fundamentos da atividade, de seu papel na interpretação da arte e, por extensão, na interpretação da vida, que a arte recria, critica e enriquece. “Por sorte”, escreve Baudelaire, “surge de tempos em tempos quem coloque as coisas no devido lugar: críticos, amantes da arte, espíritos inquisitivos.”

A frase está no livro O Pintor da Vida Moderna, escrito por ele em 1863 e só agora digno de uma bela edição brasileira, da editora Autêntica, por iniciativa da dupla Tomaz Tadeu (tradução e organização) e Jérôme Dufilho (posfácio e organização). O Homem na Multidão, o célebre texto de Poe, foi sabiamente acrescido ao volume, que é todo ilustrado a cores, tem capa dura e papel cuchê. Curiosamente, depois de tanto tempo ignorada, esse é o terceiro livro produzido nos últimos três anos no Brasil com a crítica de arte de Baudelaire. Em 2008, um trabalho de 1992 de Plínio Augusto Coelho, a tradução dos Escritos Sobre Arte, foi relançado pela editora Hedra. Em 2010, graças a Daniela Kern, a Sulina publicou Paisagem Moderna, com as resenhas dos salões de arte por Baudelaire, acompanhadas de outro material inédito em português, os ensaios de John Ruskin sobre Turner e outros artistas.

E quem era o pintor da vida moderna referido no título? Era Constantin Guys (1802-1892), aquarelista e ilustrador, cronista visual do Segundo Império francês, que provavelmente estaria esquecido hoje se não fosse pelo ensaio de Baudelaire. O autor de As Flores do Mal (1857), porém, não estranharia o fato: ele mesmo se encarrega de dizer que Guys não era um gênio, um Rafael a falar com toda a posteridade, mas um grande talento voltado a seu tempo. “O prazer que extraímos da representação do presente”, diz Baudelaire logo no começo, “deve-se não apenas à beleza de que pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente.” E então ele se põe a analisar as maneiras como Guys captou a essência do presente que vivenciou.

Baudelaire fala das “gravuras de moda” como vinhetas de época animadas pela sensibilidade poética de Guys, que encontrava nessas roupas um “imortal apetite pelo belo” em constante metamorfose e, mais importante, um pretexto para o artista manifestar sua curiosidade sobre o mundo, com suas variáveis morais, políticas e estéticas, com sua diversidade de hábitos, gostos e semblantes. “Imaginem um artista que estivesse sempre, espiritualmente, em estado de convalescença”, continua, “e terão a chave do caráter do Sr. G.” Como uma criança, estava sempre alerta para as novidades, sem preconceito de gênero ou classe, e isso se expressa em linhas ágeis, tintas coloridas, registros sem acabamento, urgentes, de poucos mas significativos detalhes.

Olhando os desenhos e aquarelas reproduzidos no livro, vemos justamente essa vitalidade de Guys, que, como um Daumier mais lírico e menos satírico, prenuncia o impressionismo de Degas ou Lautrec. Na Mulher com Lenço Amarelo, ele ignora as demais cores e não se detém em definir os limites do amarelo a uma peça de roupa; por isso mesmo, nos sugere todo o movimento, a graça, o caráter transeunte e transitivo da cena. Baudelaire defende o gosto feminino por moda, para “pairar acima da natureza”, não para “rivalizar com a juventude”, e Guys como seu cronista civilizado. Ele parece “inebriado”, quase “anárquico”, mas essa velocidade é seu trunfo, porque associada ao dom da contemplação – tanto que suas cenas de guerra ou de sua viagem à Turquia refletem a mesma preocupação com a explosão de luzes e a riqueza de detalhes. No Brasil, intelectuais diriam que isso tudo não passa de frivolidade; não espanta que não vejam o talento gráfico de um Millôr Fernandes.

Quando escreveu sobre um pintor maior, Delacroix (que foi para ele o que Turner foi para Ruskin: a síntese pictórica de todas suas inquietações estéticas), Baudelaire destacou também essa qualidade “mundana”, lembrando a frase dele de que um artista deveria ser hábil o bastante para “fazer um croquis de um homem que se atira pela janela durante o tempo que ele leva para cair do quarto andar ao solo”. Ou seja: a rapidez da percepção, a aptidão gráfica, não faria de um pintor um grande artista, mas seria necessária para um artista moderno, urbano, interessado em renovar as linguagens. Não existe apenas a beleza clássica, das formas gerais; existe também a beleza passageira, das formas particulares – e a modernidade é indissociável dessa atenção ao que é fugaz e móvel.

Não por acaso a centena de poemas de As Flores do Mal é o que é: um mosaico clássico composto de pastilhas modernas – ou, como disse João Cabral de Melo Neto, “está tudo ali”. Não por acaso foi em Baudelaire que Walter Benjamin examinou a figura do flâneur, do observador que caminha pela metrópole e se relaciona com o mercado de consumo, em meio à multidão, e como o homem de Poe passa a ver “com particular interesse as inumeráveis variedades de acessório, roupa, aparência, andar, rosto e expressão facial”. E não por acaso, em 1895, um famoso dândi se baseou em Baudelaire para elogiar Guys numa comparação com Whistler, ainda que este hoje seja reconhecido como melhor pintor – e esse dândi se chamava Robert de Montesquiou, modelo para o Barão de Charlus de outro escritor e crítico de arte, Marcel Proust, admirador e tradutor de Ruskin. Os grandes artistas modernos, enfim, não são nada senão críticos, amantes da arte, espíritos inquisitivos

Daniel Piza
Fonte : O Estado de S.Paulo

Ana de Amsterdam

Composição: Chico Buarque/Ruy Guerra

Sou Ana do dique e das docas

Da compra, da venda, das trocas de pernas

Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas

Sou Ana das loucas

Até amanhã

Sou Ana

Da cama, da cana, fulana, sacana

Sou Ana de Amsterdam

Eu cruzei um oceano

Na esperança de casar

Fiz mil bocas pra Solano

Fui beijada por Gaspar

Sou Ana de cabo a tenente

Sou Ana de toda patente, das Índias

Sou Ana do oriente, ocidente, acidente, gelada

Sou Ana, obrigada

Até amanhã, sou Ana

Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos

Sou Ana de Amsterdam

Arrisquei muita braçada

Na esperança de outro mar

Hoje sou carta marcada

Hoje sou jogo de azar

Sou Ana de vinte minutos

Sou Ana da brasa dos brutos na coxa

Que apaga charutos

Sou Ana dos dentes rangendo

E dos olhos enxutos

Até amanhã, sou Ana

Das marcas, das macas, da vacas, das pratas

Sou Ana de Amsterdam

O Tango

Onde estarão? Pergunta a elegia

Sobre os que já não são, como se houvesse

Uma região onde o Ontem pudesse

Ser o Hoje, o Ainda, o Todavia.

Onde estará (repito) esse selvagem

Que ergueu, em tortuosas azinhagas

De terra ou em perdidas plagas,

A seita do punhal e da coragem?

Onde estarão aqueles que passaram,

Deixando à epopeia um episódio,

Uma fábula ao tempo, e que sem ódio,

Lucro ou paixão de amor se esfaquearam?

Procuro-os na lenda, na apagada

Brasa que, como uma indecisa rosa,

Conserva dessa chusma valorosa

De Corrales e Balvanera um nada.

Que escuras azinhagas ou que ermo

Do outro mundo habitará a dura

Sombra daquele que era sombra escura,

Muranã, essa faca de Palermo?

E esse Iberra (tenham dele piedade

Os santos) que na ponte duma via,

Matou o irmão, Ñato, que devia

Mais mortes que ele, ficando em igualdade?

Uma mitologia de punhais

No esquecimento aos poucos se desgasta.

E dispersou-se uma canção de gesta

Em sórdidas notícias policiais.

Há outra brasa, outra candente rosa

Dos seus restos totais conservadores;

Aí estão os soberbos matadores

E o peso da adaga silenciosa.

Embora a adaga hostil ou essa adaga,

O tempo, os dispersassem pelos lodos,

Hoje, p’ra além do tempo e da aziaga

Morte, no tango vivem eles todos.

Na música prosseguem, na mensagem

Das cordas da viola trabalhosa,

Que tece na toada venturosa

A festa, a inocência da coragem.

Vejo a roda amarela circular

Com leões e cavalos, oiço o eco

Desses tangos de Arolas e de Greco

Que vi bailar no meio da vereda,

Num instante que emerge hoje isolado,

Sem antes nem depois, contra o olvido,

E que tem o sabor do que, perdido,

Perdido está mas foi recuperado.

Os acordes conservam velhas cousas:

Ou a parreira ou o pátio ancestral.

(E por trás das paredes receosas

O Sul tem uma viola, um punhal.)

O tango, essa rajada, diabrura,

Os trabalhosos anos desafia;

Feito de pó e tempo, o homem dura

Menos que a leviana melodia,

Que é tempo somente. O tango cria

Um passado irreal, real embora.

Recordação que não pôde ir-se embora

Morta na luta, algures na periferia.



Jorge Luis Borges



Jorge Luis Borges in Poemas Escolhidos. Edição bilingue. Selecção e Trad. Ruy Belo.

Dom Quixote, Lisboa, 2003, pp.43-47